O ENIGMÁTICO SOUSÂNDRADE OU O ENIGMA DE SUA DECIFRAÇÃO? POR LUIZA
LOBO.
O maranhense Joaquim de Sousa Andrade
(1832-1902) é um poeta de ampla e importante produção que, no entanto corre o
risco de ficar conhecido por uma só obra, O guesa; ou pior, por apenas dois
trechos cômicos escritos em versos limerick (os conhecidos "Inferno de
Taturema" (Canto II) e "Inferno de Wall Street" (Canto X),
insertos neste imenso poema épico de 350 páginas.
As diferentes formas de assinar o
nome, Sousa Andrade, Souza-Andrade, Souzandrade e finalmente Sousândrade, como
se tornou conhecido no final da vida em São Luís, devem-se a seu desejo, como
ele próprio explicava, de ter um nome com idêntica acentuação proparoxítona e
idêntico número de letras ao de seu muito admirado Shakespeare (ver Frederick
Williams, Sousândrade: vida e obra). Desde 1857 começou a se dedicar ao grande
sonho de escrever o grande poema épico e sua principal obra, O guesa. Seu
fascínio pela linguagem também o fez mudar constantemente sua denominação:
Guesa errante, no momento da publicação dos primeiros fragmentos no Semanário
Maranhense, em 1856, e nas duas edições nova-iorquinas parciais de Nova York,
em 1876 e 1877; depois, O guesa, na edição londrina de 1884, quase meio século
após iniciar o projeto, em constante revisão, co¬mo ocorreu com Whitman em
Folhas de relva; finalmente, pouco antes de morrer, publica um último
complemento: as novas estrofes de cunho republicano de "O guesa, o
Zac". Explica-se o epíteto "Zac": o índio muísca colombiano,
visto como herói da América, chegara a sacerdote máximo de seu povo e religião.
Explica-se também o afã do poeta em sempre aperfeiçoar-se: O guesa representa o
périplo do herói subjetivo, romântico, autobiográfico, que caminha por três
continentes, e que está sempre complementando seus versos a cada minuto de
vida. Sua preocupação com o existencial é tão forte que cada canto se inicia
com uma data que sinala uma fase de sua vida (ver meu Épica e modernidade em
Sousândrade).
Trata-se então de um excêntrico! —
dirão alguns. Sim, na medida em que O guesa é uma tentativa quase louca de inovar,
em todos os aspectos, a épica romântica, como se fosse uma paidéia da cultura
maranhense. São Luís, terra do tradutor de Virgílio e Homero, Odorico Mendes
(1799-1864), trazia, graças ao lucro com o plantio do arroz e algodão,
companhias inteiras de ópera vindas da Europa.
O guesa acaba sendo penalizado com a
minguada recepção que merece por empregar tantas intertextualidades e fontes. A
comparação com o modernismo de Pound, nos Cantos (ver Revisão de Sousândrade,
de Augusto e Haroldo de Campos, 1964, 2.ed. revista), acaba por limitar o
conhecimento de sua obra a apenas um ângulo, os dois fragmentos cômicos dos
cantos II e X, em detrimento de sua concepção geral. O guesa é obra
originalíssima dentro do panorama da literatura brasileira e universal no
sentido de tecer-se como uma rede de apropriações e de intertextualidades, de
um modo avassaladoramente pioneiro com relação a seu tempo. O guesa reúne,
através de citações e apropriações textuais, a Teogonia, de Hesíodo, a
Odisseia, de Homero, o Cântico dos cânticos, de Salomão, a Farsália, de Lucano,
Os lusíadas, de Camões, o Childe Harold, de Byron, o Atta Troll, de Heine,
referências a Gonçalves Dias, citações de Castro Alves, Lamartine, Emerson e
Whitman, entre muitos outros autores. Opondo-se à idéia de que a obra literária
é sagrada, Sousândrade incorporou no poema recursos gráficos próprios da
imprensa — alguns empregados apenas em 1897 por Mallarmé em "Um lance de
dados jamais abolirá o acaso". Sousândrade tornou-se moderno e cosmopolita
muito antes de Pound. Num lampejo da polifonia, o poeta introduz em seu longo
poema diversos sinais tipográficos que representam diferentes vozes poéticas: o
eu subjetivo da épica romântica é apresentado pelas aspas, o narrador externo o
é pelo texto sem marcação, os diferentes personagens dos dois trechos em
limerick são indicados, como no texto para teatro, por um, dois ou três
travessões —, entre muitos outros recursos inovadores.
Os dois trechos acima referidos rompem
com o cânone épico ao introduzir versos curtos e cómicos, inovando na forma
como no locus onde se dá a descida no Inferno, que passa a ser a floresta
amazônica (Canto II) e a balbúrdia de Wall Street, onde se situa a Bolsa de
Valores de Nova York (Canto X). Tal inovação já havia sido ensaiada por
românticos como Heine, em Atta Troll, por Goethe, no início do Segundo Fausto,
e por Espronceda, em "El diablo mundo", no entanto dentro de poemas
líricos e dramáticos. Entretanto, a ruptura torna-se muito mais ousada se considerar-se
a grandiosidade do poema épico, e mais revolucionária e desconstrutora se torna
a utilização dos irreverentes versos em limerick. Evidencia-se o grande projeto
de carnavalizaçâo a que se lançou conscientemente o poeta, terminando por
abraçar o simbolismo metafórico, imagético e repleto de inovações formais, na
rima e na métrica, e por trocar as influências portuguesas típicas dos poetas
brasileiros tradicionais por outras, mais incomuns, como a incorporação do
limerick — um verso popular inglês. O nonsense daí derivado foi acrescido às
palavras, muitas das quais rimou com o
tupi-guarani, latim, francês e inglês.
Então sua obra é puro nonsense! —
poderão exclamar outros. Foi isso o que atraiu o poeta para a irreverência dos
versos em limerick que atacam a um tempo o imperador do Brasil e os grandes
políticos norte-americanos, permitindo-lhe inserir, através deste verso
popular, os fatos que lia nos jornais de Nova York, onde viveu de 1871 a 1884,
estocando, a torto e a direito, tanto o monarquismo quanto a democracia e a
República.
Sousândrade foi vítima de seu destino
de romântico nascido na província distante do eixo da corte; cedo órfão dos
pais, antimonarquista num país ainda longe de obter a autonomia e a República,
sonhador original que esbarra no anonimato do auto-exílio na Europa e em Nova
York. Melhor recepção teria obtido fixando-se em Coimbra ou Lisboa. Mas aí já
não seria mais o ousado, o pretensioso, o licencioso, o cidadão do mundo
Joaquim de Souza Andrade.
Trata-se de um poeta hermético -
insistem - repleto de referências enigmáticas, incompreensíveis. O hermetismo
de seus versos, eivados de referências intertextuais e amplas leituras,
esbarra, sempre, no problema da recepção. Publica em português em Nova York e
Londres, pois odeia o imperador e a monarquia brasileira. Não tem a sorte de
Domingos Gonçalves de Magalhães, cujos Suspiros poéticos e saudades contaram
com o financiamento e beneplácito do imperador. Ou de Gonçalves Dias, cujas
obras obtinham o mesmo empenho do imperador, cumprido o ritual de elogio e
aceitação, típico da sociedade de subserviência e troca de favores herdada da
colónia, ao que o outro maranhense não queria submeter-se. Problema de recepção
que permanece até hoje, uma vez que seus livros não estão disponíveis ao grande
público, nem figuram nos manuais escolares. Fracassaram as tentativas de
enquadrar Sousândrade nas provas de vestibular: ele resiste aos moldes dos
estilos de época e géneros literários — percorreu-os todos, numa grande
Stilvermischung.
A trajetória do poeta se torna, para
comprovar este crescente alijamento de Sousândrade com relação ao público (o
que, aliás, nunca o fez esmorecer), cada vez mais complexa e hermética, quiçá
tresloucada, semelhantemente ao simbolista Pedro Kilkerry (1885-1917) ou ao precursor
do teatro do nonsense, Qorpo Santo, os quais também alteraram a grafia de seus
nomes. São versos de grandes profetas românticos, bodes expiatórios,
incompreendidos, que portanto se querem incompreensíveis. Vê-se que a obra do
autor se inicia com poemas ingénuos e de leitura transparente, no estilo de
Casimiro de Abreu, em Harpas selvagens (1857). Mas, quarenta anos depois, após
a proclamação da República, quando retorna ao Brasil, Sousândrade publica um
poema político republicano intitulado Novo éden (1893), que é de leitura
difícil, árida e repleta de referências pouco claras (como o título Helé, novo,
em hebraico).
Mais uma vez, dirão seus
detratores: poemas ilegíveis porque ruins. Mais uma vez se poderá afirmar: a
estética não é o resultado do conhecimento, que só se obtém pela repetição da
forma, pela memorização, até se criar um gosto e se constituir um cânone?
Portanto, mais uma vez, é o problema da recepção de uma obra poética
desconhecida num país que não soube reuni-la, republicá-la, valorizá-la,
interpretá-la. O Finnegans Wake de Joyce continua sendo citado e respeitado,
embora pouco lido; o Lance de dados é tido por obra-prima, apesar de sua
polissemia ser tão infinita que soa hermética para os não-iniciados. Não faltará
a nós a humildade, a intimidade com as letras e a ousadia da iniciação? Não
estaremos acomodados com a leitura referencial e descritiva do outro — o famoso
e bem-sucedido poeta épico que deixou, no entanto, Os timbiras inacabado? Poema
calcado na ideia do índio como simulacro do branco, um índio
"selvagem" mas dócil aos valores do outro, como é veiculado também na
obra de Alencar. O cânone sempre se apoia na ideia de didatismo, de temor ao
irreverente e de respeito aos códigos — conforme nos mostra Bakhtin em seu
magistral estudo diacrónico sobre a formação dos géneros na literatura
europeia, obedecendo aos ditames da Igreja Católica (ver A palavra poética em
Dostoievski). Repetimos o sagrado Dias e repelimos o profano Sousândrade, cuja
poesia era impossível de memorizar. Admiramos o político Alencar, que buscou a
corte, e rejeitamos a voz do exílio ou da província, arauto solitário e absurdo
da invenção. Não é por acaso que a obra completa e depurada de Gregório de
Matos, outro poeta que possui muitas passagens e aspectos antididáticos e
anticanônicos, ainda espera nos diversos códices.
Em contraste com a concepção linear,
descarnada, idealizada de "I-juca pirama", que iguala a imagem do
índio ao branco, Sousândrade empreende um projeto imenso e renovador de
reescrita da épica brasileira romântica. Esta visa, por um lado, a recuperar o
índio, não apenas no seu perfil amazônico, mas também como símbolo mítico das
Américas, representado ora pela figura do inca dominado por Cortez, ora do
guesa, menino a ser sacrificado em rituais muíscas, na Colômbia, com flechadas
no coração: por outro lado, visa a compreender a história brasileira através da
identificação subjetivista e romântica entre este índio da Amazónia e o destino
do "poeta errante", nos moldes do Childe Harold, de Byron. Como os
incas, ele também é um dos "inocentes filhos da Criação", um errante.
A partir deste duplo traçado, O guesa,
entre outras obras do autor, constitui-se num poema pós-colonial antiépico, que
traça o destino do continente dominado em seus diversos momentos: seja na festa
do Taturema, seja na grande débâcle que é o encontro do poeta com a sociedade
norte-americana. No final do poema, no Canto XII, ocorre a decepção com os
costumes libertários e licenciosos que, aparentemente, chocam o
personagem-narrador, através das figuras ousadas, coquetes, aventurescas e
cosmopolitas das Leilas, Minnies e Lalas nova-iorquinas, assim como com a
República e a democracia nos anos da política capitalista do laissez-faire.
A
história do guesa não se limita ao mito local do sacrifício entre os muíscas,
uma vez que o personagem se transforma no Cristo-Prometeu dos Lamartines
românticos — o que já deveria bastar para inseri-lo entre os grandes poetas
brasileiros. O tom externo e descritivo de seu plano épico empregando como
temática as noções de independência, República e democracia norte-americanas
alia-se ao tom intimista da voz autobiográfica do bardo romântico. A épica
toma-se antiépica quando o grande périplo do herói redunda numa viagem de
conhecimento interior, e os topói da viagem deslocam-se da Grécia para o
trajeto da sua fazenda, em Tucumã, na província do Maranhão, para a corte do
Rio de Janeiro; do transcurso para além-mar, em Paris, Londres (1856-57), via
África, depois Caribe e Nova York (1871-1886), até o Chile e América Latina
(1886), sempre em busca da prometida liberdade republicana. Este ambicioso
périplo topográfico tem o seu correlato simbólico na ascese política de um
Brasil monarquista e pós-colonial, que deseja atingir a modernidade e o
cosmopolitismo do país do Norte. O sonho da imprensa livre, do poder
democrático e do capitalismo financista com base na Bolsa de Valores (ver
"Inferno de Wall Street"), logo se desfaz como projeto utópico e ideológico
do poeta confrontado com a realidade.
O pharmakós ou bode expiatório — índio
ou herói romântico, rebelde ou incompreendido — pode significar remédio ou
veneno, este destilado após dois anos passados na Europa e quinze no exílio
voluntário de Nova York. Permanece, no entanto, sua ambígua polissemia após o
retorno do poeta a sua terra natal. Enquanto vendia pedras do muro de sua
quinta da Vitória, herdada de antigos tempos de grandeza dos pais para as
firmas de construção, já abandonado pela família, que se mudara para São Paulo,
seguindo os novos ventos da modernização, mal se sustentando com algumas aulas
de grego no liceu do governo, o poeta se transforma, como seu próprio
personagem, em pharmakós, bode expiatório da carência de leitura e consequente
falta de recepção. A partir de uma épica ao avesso e uma utopia política
fracassada, que bem se retratam em sua vida e obra, talvez possamos perguntar
àqueles críticos de Sousândrade que o leram: o problema estará na estética do
texto, no domínio da técnica da versificação, na concepção original do poema e
seu valor histórico, enfim, na sua qualidade intrínseca, ou na falta de sua
leitura e ausência de público adequado, redundando tudo isso na repetição do
cânone reverente ao já conhecido?
Página
publicada em abril de 2018. EXTRAÍDO DA OBRA. POESIA SEMPRE - Ano 6 – Número
9 - Rio de Janeiro - Março 1998.
Fundação BIBLIOTECA NACIONAL – Departamento Nacional do Livro - Ministério da Cultura. Editor Geral: Antonio Carlos Secchin. Ex. bibl. Antonio Miranda
UM
POUCO SOBRE SOUSÂNDRADE
Joaquim
Manuel de Sousa Andrade, mais conhecido por Sousândrade nasceu em Guimarães, 9
de julho de 1833 faleceu em São Luís, Maranhão, 21 de abril de 1902, foi um
escritor e poeta brasileiro.
Formou-se
em Letras pela Sorbonne, em Paris, onde fez também o curso de engenharia de
minas.
Republicano
convicto e militante, transferiu-se, em 1870, para os Estados Unidos.
Publicou
seu primeiro livro de poesia, Harpas Selvagens, em 1857. Viajou por vários
países até fixar-se nos Estados Unidos em 1871, onde publicou a obra poética O
Guesa, em que utiliza recursos expressivos como a criação de neologismos e de
metáforas vertiginosas, que só foram valorizados muito depois de sua morte,
sucessivamente ampliada e corrigida nos anos seguintes. No período de 1871 a
1879 foi secretário e colaborador do periódico O Novo, dirigido por José Carlos
Rodrigues, em Nova York (EUA).
De
volta ao Maranhão, aderiu com entusiasmo à proclamação da República do Brasil
em 1889. Em 1890 foi presidente da Intendência Municipal de São Luís. Realizou
a reforma do ensino, fundou escolas mistas e idealizou a bandeira do Estado,
garantindo que suas cores representassem todas as raças ou etnias que
construíram sua história. Foi candidato a senador, em 1890, mas desistiu antes
da eleição. No mesmo ano foi presidente da Comissão de preparação do projeto da
Constituição Maranhense.
Morreu
em São Luís, abandonado, na miséria e considerado louco. Sua obra foi esquecida
durante décadas.
Resgatada
no início da década de 1960 pelos poetas Augusto e Haroldo de Campos,
revelou-se uma das obras mais originais e instigantes de todo o nosso
Romantismo, precursora das vanguardas históricas.
Em
1877, escreveu: Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa Errante será lido 50
anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50 anos antes.
UM
POUCO SOBRE LUIZA LOBO
Luiza
Leite Bruno Lobo Possui graduação em Didática Inglesa pela Faculdade Santa
Úrsula da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968), graduação
em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1970), mestrado em
Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976),
doutorado em Literatura Comparada pela University of South Carolina (1978) e
pós-doutorado pela New York University (1985) e pela Universidade Livre de
Berlim (1995). Foi Pesquisadora do Centro de Estudos Brasileiros da
Universidade de Oxford em 2000, e da Universidade de Nantes, em 2001.
Professora Titular do Departamento de Letras Portuguesa, Brasileira e Africanas
da Universidade de Poitiers, por concurso, em 2009-2010. Membro da
pós-graduação do Programa de Ciência da Literatura da UFRJ. Ministrou cursos de
pós-graduação em diversas universidades brasileiras, de Salzburg, Berlim,
Aarhus (Dinamarca) e Nantes e Poitiers (França), Berlim (1995). Foi professora
titular de Letras na Faculdade da Cidade, de Literatura Brasileira nas
Faculdades Integradas Simonsen e colaborou na pós-graduação do IFCS da UFRJ na
disciplina História Social da Literatura. É pesquisadora do CERLA (Centre des
Recherches Latino-Américaines) do MSHS da Universidade de Poitiers, participa
de um projeto de épica com professores de Bochum (Alemanha) e de literatura
feminista com a Universidade Autónoma de Barcelona. Em 2014, teve bolsa de
Visiting Scholar da Fulbright na Universidade de Massachusetts. É editora de
livros e periódicos, tradutora e escritora de ensaio e ficção. É editora do
projeto on-line Literatura e Cultura, contendo a Revista Mulheres e Literatura
(1-B Qualis) e Literatura e Cultura, com resenhas e textos de autores
brasileiros em tradução.
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