ESTA COMOVENTE MENSAGEM FOI ENVIADA COMO UMA SAUDAÇÃO NATALINA AO FOCUS
CULTURAL PELO DOUTOR NORBERTO SERÓDIO BOECHAT, ILUSTRE MÉDICO GERIATRA DE
NITERÓI, ALÉM DE ESCRITOR, COM VÁRIOS LIVROS PUBLICADOS. POR SER UM TEXTO, QUE
ME DISSE MUITO AO CORAÇÃO, PARTILHO COM
VOCÊS :
Die Erwartete (The Expected; 1860
pintura de Ferdinand Georg Waldmüller
UMA VELHA, UM MENINO NA SUBIDA DO
CALVÁRIO
Norberto Seródio Boechat
Época de Natal. Em frente ao edifício
do Cine Monte Líbano em Bom Jesus. Um cartaz exibia em tamanho natural a imagem
do caminho do calvário. Cruz. Coroa de espinhos. Sangue escorrendo pela testa.
A mídia de então aproveitava a visão dramática para veicular o filme.
Esperávamos pelo jipe com meus pais.
Fôramos à cidade escolher os presentes que Papai Noel nos daria. Casa Mansur,
na esquina da Beira Rio.
De repente, no burburinho de pessoas
e sacolas, uma velha e um garotinho caminhavam, distraidamente, em nossa
direção. Pararam diante do Cristo. Maltrapilhos e descalços. Pobreza extrema.
Incompatíveis com o momento no qual se expressava, graças aos embrulhos
coloridos, o poder do consumo.
Ela, um embornal na mão. Ele, um porretinho
tal qual guerreiro guardião. Estancaram diante da via crucis. Firmaram o olhar
no homem arrastando o madeiro. Começaram a chorar. Ela mais que ele. Choraram
como se nada houvesse ao redor. Ignoraram em sua dor o resto da
(des)humanidade.
Marcaram-me definitivamente.
Transbordava naquele instante o
sentimento puro, o que flui da simplicidade. O mundo ao redor não existia. As
lágrimas foram as mais sentidas que
presenciei. Sofridas e impregnadas de ingenuidade. Mistura de sofrimento pelo
nazareno e, talvez, por si mesmos na tragédia da vida desafiadora. Imaginei que
poderiam ter entrado na cena e se misturado à multidão. Uns em contido
silêncio, outros vergastando.
Teriam, assim, feito parte da história do
homem que mudaria o mundo. Súbito, o menino percebeu que Cristo parou. Viu Seu
olhar cruzando com o de uma mulher. A troca foi tão intensa que ele sentiu, ali
a quintessência do amor e da dor, semelhantes aos que o unia à mãe. Levavam,
também, uma cruz, não tão pesada, mas uma cruz. Seguiram. Caminhos e caminhos.
Apesar de serem de Pirapetinga, não
lhes conhecia bem. Julgava serem uma viúva e seu filho. Sempre os dois, de mãos
dadas. Essas representavam a força que os unia, a certeza de que juntos se
identificavam numa família. De mãos dadas, nada os demoveria. Integravam suas
armas, suas defesas. Elas estabeleciam definitiva corrente.
Nem precisavam falar, os dedos
entrelaçados conversavam entre si, dividiam as ocasiões de angústia, de penúria
na silente solidão. Chamava-me a atenção o olhar do menino para mim. Um misto,
quem sabe, de admiração, de encantamento diante da visão que eu representava,
da vida que ele não tinha. Peregrinos de histórias. Dois mundos.
Nunca me aproximei deles, não tive o
impulso. Eram diferentes, estranhos, pareciam irreais. No entanto, era real a
absoluta pobreza. Onde morariam? Quem seriam seus patrões? Jamais soube.
Apareciam e ficavam em frente ao coreto, colocando-se na paisagem igual a
espantalhos da existência.
Não sei qual foi seus destinos, se
ele cresceu, casou e se ela pôde segurar netos no colo. Não sei... Quando penso
neles, invade-me a sensação de que algo não foi feito, de que algo ficou para
trás, certa impotência por não ter mudado o estabelecido ou, até mesmo, um
resquício de arrependimento pelo comodismo, pela falta do simples gesto de
repartir, de ter dado algo.
Não, nada dei. Deixei que a vida fosse indo,
infalível e dramática, com cada qual segurando as rédeas possíveis. Mas, jamais
os esquecerei. Sobretudo no Natal.
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