O tema do homem que deixa a pátria para aventurar-se em
terras estrangeiras, por diferentes motivos, atravessa a literatura universal.
Desde a “Odisseia” de Homero, com Ulisses, partindo e retornando a Ítaca dos
seus sonhos, até a saudade dos poetas românticos com as “Canções do
exílio” de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, e, no Modernismo, com as
recriações de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Mário Quintana, Vinicius
de Moraes, Moacyr Félix, Drummond e outros, o tema do exilado, paralelo ao do
imigrante - apenas diferente na causa do afastamento da pátria - desliza,
normalmente, na obra de grandes escritores.
De igual modo, Nélida Piñon, representada no
livro “A República dos Sonhos’’ pela escritora Beta, transformou a
Galícia e a vida do imigrante num dos motivos centrais de sua ficção.
Isso, graças à intensa ligação com avô Daniel, inspirador do personagem
Madruga, ao viver a experiência do imigrante em terras brasileiras e aqui
triunfar.
Num extenso painel narrativo de memórias, travessia
marítima, estilos, cruzamentos culturais, jogo de espaço, de tempos conjugados
e bem construídos, a obra “A República dos Sonhos” transita da arqueologia das
origens galegas, berço familiar da autora, à realidade brasileira da época
do terrível AI5.
No adensamento de situações dramáticas com signos
políticos embutidos nas situações narrativas – pois a escrita plural,
poliédrica de Piñon circula em múltiplos horizontes – o livro traz um
caudal de reminiscências, de sonhos, mas também um pequenino toque de certo
desencanto, inclusive em Eulália, a matriarca do clã. É ao mesmo tempo
traça uma reflexão do Brasil da época, das mazelas sociais descritas em
compasso com questões humanas atemporais.
No brilho da palavra bem colocada, a eloquente
exposição de memórias pessoais, ancestrais de marcas psicológicas e políticas
do mundo do clã dos Madruga, simboliza também nossa humana
condição e “o sentido teatral do mundo”.
Como acontece ao término de um livro e também em vários
outros, a narrativa de Nélida Piñon, semelhante ao Proteu da lenda, sempre
passa por metamorfoses e retorna reabastecida de inovadoras
cintilações, sem, contudo, perder as marcas do passado. Também
igual a um camaleão, sua arte absorve inusitadas cores, viaja por desconhecidas
trilhas, capta o que pulsa nos movimentos artísticos e culturais do mundo e
estabelece a ligação interativa com áreas afins de sua literatura.
Além disso, a escrita de Nélida é mercurial.
Possui a química fluida daquele elemento que forma criativos
compostos e se adapta, com mobilidade e ligeireza, a diversos envoltórios,
a deslizar por diversificadas formulações estéticas. O termo
mercurial logo lembra Mercúrio, o deus dos romanos, o Hermes dos gregos,
responsável pela eloquência, pelo comércio, pelas viagens, além de
possuir o caduceu, a vara dos arautos e dos emissários.
Com asas nos pés para as grandes travessias, o mensageiro
dos deuses liga-se ao argentum
vivum que os alquimistas representam como símbolo do planeta.
Implicitamente, todos esses símbolos gravitam no verbo da escritora, ao
construir “A república dos Sonhos’’ em philia dialógica
com tantos saberes.
Transformando sentimentos em letras, há passagens de
“A república dos sonhos” em que o leitor pressupõe estar “vendo” a cena
desenrolar. Já em outras é o sentimento humano que nela palpita a
conhecida asserção do poeta latino Terêncio(190-159 a.C.): “Homo sum: humani
mihi a me alienum puto”. (Sou homem: julgo que tudo que seja do humano
não é a mim indiferente).
Em verdade, tudo é importante nessa obra de tantos
matizes. Com signos e emblemas humanos e imagens vindas à escritora pelo
navio do afeto, “A República dos Sonhos tornou Nélida a embaixatriz
de dois espaços culturais tão distantes, mas para ela tão próximo:
o Brasil e a Galícia. Ao cumprir à altura a missão que lhe foi
confiada por Daniel, seu verdadeiro avô, Nélida retirou acanhadas aldeias
galegas da obscuridade e deu-lhes a devida dignidade nesta
magistral obra épica, lírica e dramática.
Hoje é o quarto encontro,
término da sequência proposta por Alberto Araújo para que eu
escrevesse sobre “A República dos Sonhos”. Impossível
me foi transmitir a força da linguagem poética que extravasa das letras
da autora, bem como tentar detalhar as filigranas da complexa e tão bem
articulada trama composta com 761 páginas da minha primeira
edição. Apenas alinhavei alguns aspectos, bem aligeirados desse livro,
que eu conheci antes de sair publicado, e que volto a ele, descobrindo sempre e
sempre algo novo, que me fascina e me conduz a
proclamar ser Nélida Piñon, uma das vozes significativas da cultura literária
da atualidade.
Dalma Nascimento
Texto publicado em 31 de janeiro de
2022,
postagem ao Focus Portal Cultural do editor Alberto Araújo