sexta-feira, 10 de novembro de 2023

EDU LOBO OITENTA - LANÇA ÁLBUM DUPLO COMEMORATIVO


Quando Edu Lobo fez 70 anos, dez anos atrás, realizou-se no Teatro Municipal um espetáculo que buscava – como se fosse preciso – ressaltar a excelência de sua obra. Lá, com orquestra de cordas e as participações nobres de Maria Bethânia, Chico Buarque, Mônica Salmaso e de seu filho Bernardo Lobo, de “Chegança” (1964) a então novíssima “Coração Cigano” (Edu Lobo/Paulo César Pinheiro) passou-se em revista no principal palco do país e de forma cronológica os seus incontáveis clássicos fornecidos ao cancioneiro brasileiro. 

E com o objetivo, repito, pois fui eu que roteirizei e dirigi o espetáculo, de mostrar como Edu é excelente. O espetáculo virou CD e DVD, canções clássicas registradas como nunca, excelência confirmada. Como se fosse preciso. 

Já “Oitenta” – e, como mais ou menos escreveu Edu no encarte do disco, ver seu nome ao lado do número 80 prescindiria de qualquer comentário, oitenta é idade que prova que tudo foi e é possível, é idade de garoto (enquanto 70 é idade séria, madura) – o novo álbum duplo e novamente comemorativo vai numa ideia digamos oposta. Não, calma: não que não haja excelência pois isso seria impossível em relação à música de Edu. Nem que não haja clássicos no repertório – “Beatriz” (Edu Lobo/Chico Buarque), por exemplo, reaparece, magnífica, interpretada pelo compositor e pela voz mais bonita da atualidade, Mônica Salmaso, com o mesmo piano de Cristóvão Bastos que emoldurou a gravação original pela voz mais bonita daquele momento, 1983, Milton Nascimento. Mas o que se busca agora em “Oitenta” é ressaltar a ousadia e a abrangência estética dessa obra, talvez a mais importante da música brasileira contemporânea. E se nos anos 70, o show virou disco, agora este álbum duplo será a base do show comemorativo dos seus oitenta anos, em novembro no Rio e em São Paulo. 

Para o álbum, e para dar conta dessa abrangência estética, Edu escolheu a dedo outras 23 canções, além do clássico “Beatriz”, que talvez não tenham tocado tanto no rádio, não tenham sido tão regravadas ou comentadas por aí, os tais lados B, canções que muitas vezes ficaram esquecidas no meio dos discos – e que são lindas, fortes, como os clássicos. Esse foi o critério. 

E aí, a título de bom exemplo, reaparece a balada “Branca Dias”, feita para uma peça de teatro, a épica “Canudos” e a igualmente nordestina “Gingado Dobrado” – todas em parceria com o poeta Cacaso e lançadas no álbum “Camaleão” (1978) – que nunca fizeram o sucesso de “Lero Lero”, do mesmo disco e da mesma parceria, por isso estão aqui. E que indicam um dos muitos caminhos estéticos da obra de Edu, uma visão própria do vasto universo da música nordestina – não fosse ele, embora carioca, filho de pernambucanos e que, em sua formação, viveu estadias de três meses por ano no Recife. Não por acaso o tema “Casa Forte”, mesmo sem letra abre este disco remontando explicitamente essa vivência pernambucana. 

No mesmo sentido de buscar o lado B, da imensa parceria com Paulo César Pinheiro, Edu escolheu sobretudo canções originalmente compostas para o público infantil: “Primeira Cantiga” e “Salabim”, feitas para a trilha-sonora do programa da TV Cultura “Rá-tim-bum”, e “Terra do Nunca”, para um musical de teatro sobre “Peter Pan”. Alumbramento para quem não as conhece, viagem proustiana para quem as conheceu na infância. Ao jogar luz sobre esse viés infantil de sua obra, que é reforçada pela presença da comunicativa “Ciranda da Bailarina” (”O Grande Circo Místico”), percebe-se o cuidado, o mesmo cuidado harmônico e melódico devotado à sua produção normal. 

A ousadia não está apenas na escolha do repertório. Para gravar “Oitenta”, Edu montou também a dedo um combo de quatro vozes e oito instrumentistas para acompanhá-lo. De diferentes gerações, dividem-se em solos, duetos e trios, com ou sem a participação do compositor, Zé Renato, revelado por Edu justamente no álbum “Camaleão” como integrante do conjunto vocal Boca Livre, que fazia sua estreia; Mônica Salmaso, considerada por Edu a mais bela voz brasileira da atualidade e já sua parceira há 20 anos; e as duas maiores revelações vocais da música brasileira contemporânea, a paulista Vanessa Moreno, jazzística, inventiva, e musicalmente perfeita, e o pernambucano Ayrton Montarroyos, um crooner como há muito não surgia, versátil e também musicalmente impecável. 

Os instrumentistas, todos eles solistas e os principais de seus instrumentos na cena carioca, formam uma pequena orquestra de formação inusitada, onde nada parece faltar: há desde o acordeão de Kiko Horta (criador do Cordão do Boitatá) e o violão de oito cordas de Paulo Aragão (do Quarteto Maogani) ao naipe de multi-sopros de Carlos Malta e Mauro Senise. Na seção rítmica, o trio que acompanha Edu há décadas: Cristóvão Bastos (além de pianista, arranjador e diretor musical), Jorge Helder (contrabaixo) e Jurim Moreira (bateria), acrescido da percussão de Marcelo Costa (que dá um molho novo ao som de Edu, como os também “novatos” Kiko Horta e Paulo Aragão). 

Nota-se o espírito inventivo da banda em cada faixa, mas pegue ao acaso uma faixa qualquer, um samba como “Ave Rara”, representando a parceria de Edu com Aldir Blanc, em versão quase samba jazz, o samba levado por Jurim no prato, Vanessa Moreno cantando esticando as notas e brincando com o ritmo, o solo de Senise no sax soprano. Outro samba que também passeia de forma quase subliminar pelo jazz – aliás como a letra de Chico Buarque enfatiza – é “Nego Maluco”, cantado por Zé Renato e com surpreendentes desenhos de sopros, solos de sax (Carlos Malta) e flauta (Senise), a banda toda tocando. 

O repertório e as invenções musicais são puro deleite para os conhecedores da obra de Edu – e de surpresas, como se fossem canções novas para quem a conhece superficialmente. De seus trabalhos mais populares, Edu pinça de fato os lados B. De “O Corsário do Rei”, por exemplo, em vez do clássico “Choro Bandido”, Edu recupera a sacra “Salmo”, cantada pelo mesmo Zé Renato que a estreou em 1985, e um surpreendente “Tango de Nancy”, teatral na nova versão com uma Vanessa Moreno dialogando com o acordeão de Kiko Horta. Além de ele próprio revisitar um “Bancarrota Blues” mais blues do que nunca. 

Do “Grande Circo Místico”, a belíssima canção “O Circo Místico” traz um Ayrton Montarroyos tão impecável quanto a versão original de Zizi Possi, de 40 anos atrás. O jovem e corajoso cantor também encara, do mesmo balé, “Sobre Todas as Coisas”, aparentemente esgotada pela voz e o violão de Gil, e a reinventa num arranjo novo e exuberante de Cristóvão Bastos.

O repertório segue pinçando composições dos trabalhos memoráveis de Edu com Chico Buarque. Do balé “Dança da Meia Lua” vem “Na Ilha de Lia, no Barco de Rosa”. Da peça “Cambaio”, recriações cheias de coragem e frescor: novamente o bravo Ayrton Montarroyos sutil e delicado em “A Moça do Sonho” (consagrada por Bethânia); Mônica e Vanessa juntas a Edu numa versão literalmente de sonhos da  “Cantiga de Acordar”; e desta vez a corajosa é a Mônica Salmaso a dar um toque de embolada em “Veneta”, criada por ninguém menos que Gal Costa, aqui tendo a sua nordestinidade realçada. Isso para não falar de “Uma Canção Inédita”, recriada por Edu com um arranjo novo para violão escrito por Paulo Aragão – sem dúvida a maior revelação do instrumento no Brasil nos últimos anos – e a reforçar, já a partir da letra de Chico, como essas canções, todas já mais ou menos conhecidas, soam neste álbum duplo: “para sempre inéditas”. Como a última canção que fez sobre poema de Vinicius de Moraes, “Silêncio”, que faz par com a primeira música que compôs com o poeta, “Só me Fez Bem”, um samba bossa nova de quando tinha 20 e que continua novinha em folha, leve como a folha, como inédita, quando cantada aos 80.


Texto de Hugo Sukman -  jornalista, escritor e crítico de música

 

 


 

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