ENTRE ÁGUAS E VINHOS
Há
homens que nascem da fonte.
Outros, repousam em barris de silêncio.
O
primeiro corre leve, sem esperar caminhos.
É
rio de mãos abertas,
generoso
como o orvalho na planta sedenta.
Chega
sem ser chamado,
acolhe
sem perguntar.
Se
dá inteiro,
como
quem foi feito para servir e seguir.
É
o homem-água:
transparente
em sua entrega,
cristalino
no coração.
Não
guarda reservas,
flui
por entre pedras com doçura,
lava
feridas, irriga esperanças.
Mesmo
sujo, se refaz —
porque
sua missão é limpar o mundo.
É
o consolo dos sedentos,
o
alívio das terras ressecadas.
Ele
não cobra, não se impõe,
apenas
se oferece,
como
a bênção das chuvas inesperadas.
Mas
há também o homem que envelhece em silêncio.
Firme,
profundo, denso.
Guarda
em si um mundo decantado.
Não
se derrama com facilidade,
é
preciso merecê-lo,
saber
esperar o tempo certo.
É
o homem-vinho:
reservado,
sóbrio, seguro de seu valor.
Não
se mistura,
é
vertido com cuidado em taças escolhidas.
Carrega
consigo o peso do amadurecimento,
o
rigor da colheita,
a
arte da paciência.
Não
se dá — é convidado.
Não
se curva — orienta.
Não corre — permanece.
Ambos
são necessários.
O
que sacia de imediato
e
o que permanece no paladar da memória.
O
que cura a sede e o que celebra a vida.
Dois
modos de ser,
dois
gestos de existir.
E
entre águas que passam
e
vinhos que ficam,
a humanidade vai se escrevendo.
© Alberto Araújo
RECORDAÇÃO CULTURAL – 40 ANOS DE SAUDADE DE CORA CORALINA
Em 10 de abril de 2025, completou-se 40 anos da partida de Cora Coralina, uma das vozes mais autênticas e comoventes da literatura brasileira. E o Focus Portal Cultural, através de sua série Recordação Cultural, reverencia esta mulher de palavra viva e alma ancestral, que transformou os becos de Goiás em poesia e a simplicidade do cotidiano em eternidade.
Nascida Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, Cora publicou seu primeiro livro aos 75 anos, provando que o tempo nunca é obstáculo para quem tem dentro de si a chama da criação. Poetisa, contista, doceira, mulher do povo — ela soube traduzir o Brasil profundo em versos que ainda hoje tocam, inspiram e renovam esperanças.
Cora viveu entre tachos e palavras, entre o ofício e o sonho. Escreveu como quem planta, como quem cuida, como quem reza. E ainda hoje, quatro décadas após sua partida, sua presença se faz sentir — firme, serena, luminosa — em cada canto onde se lê poesia com o coração aberto.
Que
a memória de Cora Coralina siga sendo celebrada, lida e amada.
Porque há mulheres que não morrem: viram voz, viram caminho, viram chão.
CORA CORALINA — 40 ANOS DE ETERNIDADE NA PALAVRA
Em 10 de abril de 1985, o Brasil se despedia de uma de suas almas mais singelas e profundas: Cora Coralina. Quarenta anos depois, em 2025, sua partida não representa ausência, mas permanência. Porque Cora nunca foi apenas uma mulher, uma doceira, uma escritora tardia. Ela foi e é a voz do Brasil interior, das pedras dos becos, das mãos calejadas, das receitas que curam a alma.
Sua poesia nasceu da terra, da lida, da fé, da infância, da perda, da coragem. Com palavras simples, ela escreveu a grandeza das coisas pequenas. Com versos despretensiosos, eternizou a sabedoria de quem viveu com os pés no chão e o coração atento.
Cora Coralina publicou seu primeiro livro aos 75 anos, provando que nunca é tarde para florescer. E agora, quatro décadas após sua travessia, suas sementes continuam germinando em cada leitor que reencontra a esperança em sua voz mansa e firme.
A poesia de Cora não envelhece. Vive. Vive nas escolas, nos saraus, nas cozinhas, nos livros de cabeceira. Vive em cada mulher que resiste, em cada homem que acolhe, em cada criança que sonha.
A casa onde viveu, à beira do Rio Vermelho, é hoje museu e altar da memória. Mas é nas páginas de seus poemas que sua alma continua acesa, iluminando caminhos.
Cora
Coralina — 40 anos sem sua presença física, mas com sua palavra cada vez mais
viva no coração do Brasil.
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HOMENS - CORA CORALINA
Em água e vinho se definem os homens.
Homem
água. É aquele fácil e comunicativo.
Corrente,
abordável, servidor e humano.
Aberto
a um pedido, a um favor,
ajuda
em hora difícil de um amigo, mesmo estranho.
Dá
o que tem
– boa vontade constante, mesmo dinheiro, se o tem.
Não
espera restituição nem recompensa.
É
como água corrente e ofertante,
encontradiça
nos descampados de uma viagem.
Despoluída,
límpida e mansa.
Serve
a animais e a vegetais.
Vai
levada a engenhos domésticos em regueiras, represas e açudes.
Aproveitada,
não diminui seu valor, nem cobra preço.
conspurcada
seja, se alimpa pela graça de Deus
que
assim a fez, servindo sempre
e
à sua semelhança fez certos homens que encontramos na vida
–
os Bons da Terra — Mansos de Coração.
Água
pura da humanidade.
Há
também, lado-a-lado, o homem-vinho.
Fechado
nos seus valores inegáveis e nobreza reconhecida.
Arrolhado
seu espírito de conteúdo excelente em todos os sentidos.
Resguardados
seus méritos indiscutíveis.
Oferecido
em pequenos cálices de cristal a amigos
e
visitantes excelsos, privilegiados.
Não
abordável, nem fácil sua confiança.
Correto.
Lacrado.
Tem
lugar marcado na sociedade humana.
Rigoroso.
Não
se deixa conduzir — conduz.
Não
improvisa — estuda, comprova.
Não
aceita que o golpeiam,
defende-se
antecipadamente.
Metódico, estudioso, ciente.
Há
de permeio o homem-vinagre,
uma
réstia deles,
mas
com esses, não vamos perder espaço.
Há lugar na vida para todos.
CORA CORALINA – A VOZ DOS BECOS E DAS MIUDEZAS DO BRASIL
Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nasceu em 20 de agosto de 1889, na antiga Vila Boa de Goiás, atual cidade de Goiás, e faleceu em 10 de abril de 1985, em Goiânia. Poetisa e contista brasileira, é considerada uma das vozes mais autênticas e sensíveis da literatura nacional.
Embora escrevesse desde a juventude, sua estreia literária só ocorreu tardiamente, aos 75 anos, com a publicação do livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, em junho de 1965. Seu reconhecimento, porém, não se fez esperar: sua escrita atravessou gerações, encantando leitores pela simplicidade, pela força das palavras e pela verdade enraizada no cotidiano do povo.
Cora foi, antes de tudo, uma mulher do interior. Doceira por ofício, moldava palavras como moldava os doces que vendia para sustentar a família. Viveu longe dos grandes centros urbanos e do circuito oficial da literatura, alheia a modismos ou academias, mas com uma alma profundamente conectada à essência do Brasil profundo — seus becos, suas pedras, suas gentes.
Sua poesia é feita de coisas pequenas: o quintal, o fogão à lenha, a criança que corre, o tempo que passa. Mas dessas miudezas, ela tirava grandeza e sabedoria. Em seus versos, a vida pulsa com ternura e coragem, revelando a beleza da simplicidade e o valor das experiências vividas.
Depois de sua morte, sua casa, situada às margens do Rio Vermelho, na Cidade de Goiás, transformou-se no Museu Cora Coralina, guardando objetos, manuscritos e a memória de uma mulher que soube ser poeta com o que tinha e com o que era. Em 2001, essa mesma morada foi declarada Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO, um reconhecimento à história, à cultura e à poesia que ela representa.
Cora Coralina permanece viva em seus versos: uma mulher do povo que escreveu como quem planta flores nos becos, deixando o perfume da resistência, da ternura e da sabedoria espalhado pelo tempo.
©
Alberto Araújo
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