O entardecer tem esse dom curioso de abrir janelas invisíveis no tempo. Há algo na luz dourada que escorre pelas paredes, no silêncio que se instala entre os ruídos do dia, que nos convida a revisitar o que fomos. Entrei no YouTube como quem folheia um velho álbum de fotografias, sem saber o que vai encontrar. E ali estava ela: Shirley Bassey, com sua voz que não canta — invade. A música era Something, dos Beatles, mas em sua boca soava diferente. Parecia minha juventude voltando para me visitar.
A primeira nota me deteve. A segunda me levou. E, quando percebi, já não estava mais em 2025. Estava em algum ponto entre os anos 70 e 80, talvez numa sala de luz baixa, talvez num carro com os vidros embaçados. Something in the way she moves… e eu me movia também, por dentro.
Shirley não interpreta Something: ela a revive. E, ao fazê-lo, trouxe de volta um pedaço de mim. A juventude, com seus amores e promessas sussurradas ao pé do ouvido, veio sentar-se ao meu lado. A música não era apenas melodia — era memória. Era o cheiro de um domingo, o toque de uma mão, o olhar que dizia tudo sem dizer nada.
Fiquei ali, imóvel, como quem visita um lugar sagrado. Na tela, números: 364 mil visualizações, 3,1 mil likes, 22 mil inscritos, canal de Debra Skinner. Mas o que importava não estava ali. Estava no arrepio que me percorreu, no nó que se formou na garganta, na lágrima que não caiu, mas quis. Estava na lembrança de um tempo em que tudo parecia possível, quando cada canção era trilha sonora para sonhos ainda em construção.
Há músicas que não envelhecem. Apenas aguardam o momento certo para nos lembrar de quem fomos — e de quem ainda somos, por dentro. Shirley Bassey, com sua voz feita de veludo e tempestade, abriu passagem para esse lugar esquecido. E eu fui. Fui inteiro. Fui com a alma.
Quando a última nota se desfez no ar, permaneci em silêncio. Não por falta de palavras, mas por respeito ao que foi vivido. Algumas canções são portais. E hoje, ao entardecer, entre um clique e outro, fui transportado. Não para longe, mas para dentro.
Talvez seja isso que a arte faz de melhor: devolve-nos a nós mesmos — com mais profundidade, com mais verdade. Shirley cantou Something, mas o que ecoou em mim foi tudo. Tudo o que fui, tudo o que senti, tudo o que ainda pulsa no coração.
© Alberto Araújo
Gilda Uzeda disse:
“Alberto
A Música tem poderes que nem imaginamos. É mágica! É como o oceano de um mundo paralelo por onde navegamos com o intérprete, a conduzir, a escolher o rumo e a velocidade... Então, tudo vira magia!
E lá vamos nós!
Mas, há sempre alguém que traduz em palavras tais momentos. Foi o que aqui aconteceu. Porque a maneira como você usa as palavras e frases neste texto sobre "Something" interpretado por Shirley Bassey, revelam uma travessia no tempo, na própria experiência de vida, talvez, num sonho. Não importa. É uma travessia que flutua nas vagas ondulantes da memória do coração.
Parabéns, Alberto, o seu texto é muito bom.
Abraço, Gilda🌸
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Maravilha, como não dizer que você é uma incentivadora e apoiadora em ideias e inspirações dos companheiros. Amiga Gilda sua perspicácia é algo sublime e junto com a sua sapiência torna-se divina. Você tem o dom de sentir, amar e enxergar a Beleza em tudo. Somente pessoas raras que carregam essa essência. Gratidão pela constante manifestação, gratidão por tudo. Abraços do Alberto Araújo ❤
Zeneida Seixas disse: Alberto, que bom ouvir alguém descreve seus sentimentos que é capaz de encher a alma e ser
transportada para outra época.
Isso significa que são pessoas de
alma felizes. Parabéns!
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Muito bom receber o seu comentário amiga Zeneida. Você é uma Lady
e tem o coração bondoso e feliz. A prova está que é muito solicitada em
presidir instituições filantrópicas. Obrigado. Abraços do Alberto Araújo