sábado, 11 de outubro de 2025

CRÔNICA DE ICARAÍ - ENTRE O TEMPO E A ETERNIDADE @ ALBERTO ARAÚJO

A fotografia em preto e branco, resgatada do baú da memória e colorida pelas mãos de quem deseja devolver-lhe o sopro da vida, não é apenas um registro. É um portal. Nela, Icaraí dos anos 50 se revela em sua juventude urbana: a praia ainda serena, o mar como um espelho da Guanabara, as casas de telhados baixos, as ruas arborizadas que se abriam como promessas de futuro. Pessoas caminhavam pela areia sem pressa, como se o tempo fosse mais generoso, e os morros ao fundo guardavam em silêncio a história que se escrevia. 

Essa imagem, extraída da internet e compartilhada por Dulce Mattos, do acervo de Thereza Christina Bittencourt, não é só memória coletiva é também um gesto de afeto. Porque cada bairro, cada rua, cada esquina, só se torna eterno quando alguém o ama o suficiente para narrá-lo. E eu, que aqui cheguei há anos, fui acolhido por Icaraí como quem encontra um lar depois de longa travessia. Ao lado de Shirley, minha companheira de vida, aprendi a reconhecer neste bairro não apenas um endereço, mas um território de pertencimento. 

Icaraí, palavra que vem do tupi e significa “rio sagrado” ou “rio dos acarás”, carrega em si a força da ancestralidade. Antes de ser bairro nobre, antes de ser vitrine de comércio, cultura e lazer, foi terra dos tupinambás, palco de batalhas, doações e resistências. O tempo passou, e a areia que um dia foi margeada por pitangueiras e cajueiros se transformou em orla cosmopolita, onde hoje milhares caminham diariamente, entre exercícios, encontros e contemplações. 

Mas a fotografia dos anos 50 nos lembra de um tempo em que a modernidade ainda não havia tomado conta por completo. O trampolim de concreto armado, ousadia arquitetônica que se erguia no meio da praia, simbolizava a audácia de uma cidade que queria se lançar ao futuro. O Cinema Icaraí, em estilo art déco, era templo de sonhos projetados em película. O Hotel Balneário Casino Icarahy, antes de ser derrubado, foi palco de noites de brilho e música. Tudo isso compõe a tessitura de um bairro que nunca deixou de se reinventar. 

Hoje, Icaraí é sinônimo de qualidade de vida. Suas ruas: A antiga Moreira César (Ator Paulo Gustavo), Gavião Peixoto, Lopes Trovão, são corredores pulsantes de comércio e serviços. O Campo de São Bento, nosso “Central Park”, é refúgio verde em meio ao concreto, onde crianças correm, idosos caminham, artistas expõem, e a vida se renova em cada manhã de domingo. O Museu de Arte Contemporânea, obra-prima de Niemeyer, ergue-se como nave futurista à beira da baía, lembrando-nos que a arte também é uma forma de habitar o tempo.

Mas o que faz de Icaraí mais do que um bairro é sua capacidade de ser espelho e abrigo. Espelho, porque reflete a história de Niterói e do Brasil: da sesmaria de Arariboia à urbanização do século XIX, da modernidade dos anos 30 e 40 à explosão demográfica do século XX. Abrigo, porque acolhe quem chega, como me acolheu, oferecendo não apenas infraestrutura, mas também uma sensação de comunidade, de vizinhança que resiste mesmo em meio à pressa contemporânea.

Ao caminhar pelo calçadão, vejo mais do que prédios altos e comércio vibrante. Vejo camadas de tempo sobrepostas: os rapazes que mergulhavam do trampolim, a família que se reunia para um piquenique no Campo de São Bento, o casal que se encontrava à porta do Cinema Icaraí, os pescadores que ainda hoje se equilibram nas pedras da Itapuca. Cada geração deixou sua marca, e todas elas convivem, invisíveis, no presente. 

E é por isso que a fotografia colorizada ganha tanto sentido. Porque colorir o passado é também um ato de resistência contra o esquecimento. É dizer que Icaraí não é apenas cenário, mas personagem. É afirmar que a memória não se apaga, apenas muda de tonalidade. 

Eu, que aqui vivo e escrevo, sei que cada crônica, cada poema, é uma tentativa de agradecer. Agradecer ao bairro que me deu raízes, que me ofereceu horizontes, que me ensinou a ver beleza tanto no concreto quanto no mar. Agradecer ao lugar onde caminho de mãos dadas com Shirley, onde construí minha vida, onde aprendi que o verdadeiro luxo não está apenas nos prédios ou nas vitrines, mas na possibilidade de viver em um espaço que une história, cultura e afeto. 

Icaraí é, ao mesmo tempo, passado e futuro. É a fotografia em preto e branco e a imagem colorida. É a memória dos índios tupinambás e o traço ousado de Niemeyer. É o trampolim demolido e o calçadão que resiste. É o bairro que se reinventa sem perder sua essência. 

E enquanto houver quem o ame, quem o escreva, quem o celebre, Icaraí continuará sendo mais do que um bairro nobre de Niterói. Continuará sendo um rio sagrado de memórias, um espelho da Guanabara, um lar que se eterniza em cada palavra, em cada olhar, em cada fotografia que atravessa o tempo.

 

© Alberto Araújo















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