A oração “Prece”, de Leão Zagury, é um diálogo direto com Deus, mas não é uma súplica tradicional. Não há pedidos de cura, proteção ou bênçãos. Há, sim, uma pergunta que se repete como um eco existencial: “Por que eu?” Essa interrogação não busca explicações teológicas, mas uma resposta íntima, quase desesperada, para o mistério da dor e da sobrevivência. Não é louvor, não é revolta. É um desabafo nu, sem ornamentos, sem escudos. Uma oração que não se ajoelha: se expõe.
Leão Zagury, com sua pena sensível e sua alma inquieta, escreveu um texto que não se lê, se escuta. Cada verso parece sussurrado por alguém que, diante do espelho da existência, pergunta: “Por que eu?” Não como quem busca explicações divinas, mas como quem tenta entender o próprio enigma de estar vivo.
A crônica da vida que se desenha em “Prece” é feita de antíteses e fragilidades. O eu lírico não se vangloria de feitos nem se esconde atrás de virtudes. Pelo contrário: ele se apresenta como alguém que falhou, que fugiu, que chorou, que não soube cantar nem ouvir música. Alguém que não teve a obstinação dos bois, essa metáfora tão brasileira para a persistência bruta, e que se refugiou em filmes, livros e móveis antigos. Um homem que não soube odiar, mas também não soube amar a vida.
É nesse paradoxo que reside a força da oração. Zagury não constrói um herói trágico, mas um homem comum. E é justamente na banalidade da dor que o texto se torna universal. Quem nunca se sentiu inadequado, deslocado, covarde? Quem nunca se perguntou por que continua vivo depois de tantas porradas da vida?
A estrutura do poema é simples, quase coloquial. Cada verso carrega uma densidade emocional que só pode vir de alguém que viveu intensamente, mesmo que tenha vivido à margem, em silêncio, em dúvida. A repetição da pergunta “Por que eu?” funciona como um mantra, uma batida que ecoa no peito de quem lê. E a resposta, que nunca vem, é substituída por mais confissões, mais lembranças, mais feridas.
A beleza da criação de Leão Zagury está justamente na recusa de respostas fáceis. Ele não tenta justificar a dor, nem transformá-la em redenção. Não há catarse, não há epifania. Há apenas a constatação de que, apesar de tudo, permanece vivo. E esse “apesar de tudo” é o que dá à oração sua dimensão poética e filosófica.
Ao
receber a menção honrosa da ABRAMES, “Prece” não foi apenas reconhecida como
obra literária, foi acolhida como testemunho. Porque Leão Zagury não escreve
para impressionar, mas para compartilhar. Sua escrita é um gesto de entrega,
uma oferenda de vulnerabilidade. E isso, num mundo que valoriza máscaras e
performances, é um ato de coragem.
A crônica que se desenha a partir da “Prece” é a de um homem que não se encaixa, mas que insiste. Que não entende, mas que sente. Que não vence, mas que permanece. E essa permanência, mesmo sem glória, é um milagre cotidiano.
Leão Zagury nos lembra de que viver não é triunfar, é suportar. E que há beleza naquilo que não brilha, mas pulsa. Sua oração é um espelho para todos os que já se perguntaram “por que eu?” e não encontraram resposta. Porque talvez a resposta não esteja nas palavras, mas no ato de continuar perguntando.
© Alberto
Araújo
PRECE, o texto da minha inspiração
Prece
Leão Zagury
Senhor, por
que eu?
que só
queria cinquenta e seis anos
como meu pai,
que recebeu tão pouco
e merecia tanto.
Eu, que
nunca tive a obstinação dos bois,
e tremi de
medo tantas vezes.
Desafinado,
feio, magro e desengonçado.
Eu que nunca
consegui cantar, nem ouvir uma música
sequer...
Por qual
razão eu?
Que recebi
apelidos humilhantes
e por isso, tantas
vezes, chorei.
Eu, que não
aprendi a rezar nem a nadar,
me engasguei
com cigarros,
e admirei móveis
antigos.
Eu, incapaz
de perceber a falsidade e a perfídia,
só agora
entendo que o mundo não tem remédio.
Eu, que recusado
pelo exército
me entreguei
às fraquezas da vida e
tentei fugir
do amor para não sofrer.
Por que motivo
eu?
Apenas apto
a lutar por causas perdidas.
Capaz de acreditar
na concha da mão como arma da justiça.
Eu, que
assisti a filmes de caubói e sofri com os índios.
Eu, que
recebi ofensas e não revidei.
Eu, o filho
renegado na hora da morte.
Justamente
eu?
Que me sentei
com criados,
torci pelos
touros,
cumprimentei
cachorros.
E fui tão mal goleiro!
Por quê?
Eu que
contrai poliomielite
e fui
obrigado a me tornar canhoto.
Eu que perdi
todos os gols.
Logo eu, que
nunca amei a vida.
Senhor
Porque eu,
precisamente eu,
que levei
tantas porradas
permaneço
vivo?
Leão Zagury ganhou com esse texto a Menção
Honrosa no Concurso da ABRAMES – 2025

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