sábado, 29 de novembro de 2025

O HOMEM QUE PERGUNTA O POR QUÊ CRÔNICA DE ALBERTO ARAÚJO - INSPIRADA EM PRECE DE LEÃO ZAGURY

A oração “Prece”, de Leão Zagury, é um diálogo direto com Deus, mas não é uma súplica tradicional. Não há pedidos de cura, proteção ou bênçãos. Há, sim, uma pergunta que se repete como um eco existencial: “Por que eu?” Essa interrogação não busca explicações teológicas, mas uma resposta íntima, quase desesperada, para o mistério da dor e da sobrevivência. Não é louvor, não é revolta. É um desabafo nu, sem ornamentos, sem escudos. Uma oração que não se ajoelha: se expõe. 

Leão Zagury, com sua pena sensível e sua alma inquieta, escreveu um texto que não se lê, se escuta. Cada verso parece sussurrado por alguém que, diante do espelho da existência, pergunta: “Por que eu?” Não como quem busca explicações divinas, mas como quem tenta entender o próprio enigma de estar vivo. 

A crônica da vida que se desenha em “Prece” é feita de antíteses e fragilidades. O eu lírico não se vangloria de feitos nem se esconde atrás de virtudes. Pelo contrário: ele se apresenta como alguém que falhou, que fugiu, que chorou, que não soube cantar nem ouvir música. Alguém que não teve a obstinação dos bois, essa metáfora tão brasileira para a persistência bruta, e que se refugiou em filmes, livros e móveis antigos. Um homem que não soube odiar, mas também não soube amar a vida. 

É nesse paradoxo que reside a força da oração. Zagury não constrói um herói trágico, mas um homem comum. E é justamente na banalidade da dor que o texto se torna universal. Quem nunca se sentiu inadequado, deslocado, covarde? Quem nunca se perguntou por que continua vivo depois de tantas porradas da vida? 

A estrutura do poema é simples, quase coloquial. Cada verso carrega uma densidade emocional que só pode vir de alguém que viveu intensamente, mesmo que tenha vivido à margem, em silêncio, em dúvida. A repetição da pergunta “Por que eu?” funciona como um mantra, uma batida que ecoa no peito de quem lê. E a resposta, que nunca vem, é substituída por mais confissões, mais lembranças, mais feridas. 

A beleza da criação de Leão Zagury está justamente na recusa de respostas fáceis. Ele não tenta justificar a dor, nem transformá-la em redenção. Não há catarse, não há epifania. Há apenas a constatação de que, apesar de tudo, permanece vivo. E esse “apesar de tudo” é o que dá à oração sua dimensão poética e filosófica. 

Ao receber a menção honrosa da ABRAMES, “Prece” não foi apenas reconhecida como obra literária, foi acolhida como testemunho. Porque Leão Zagury não escreve para impressionar, mas para compartilhar. Sua escrita é um gesto de entrega, uma oferenda de vulnerabilidade. E isso, num mundo que valoriza máscaras e performances, é um ato de coragem.

A crônica que se desenha a partir da “Prece” é a de um homem que não se encaixa, mas que insiste. Que não entende, mas que sente. Que não vence, mas que permanece. E essa permanência, mesmo sem glória, é um milagre cotidiano. 

Leão Zagury nos lembra de que viver não é triunfar, é suportar. E que há beleza naquilo que não brilha, mas pulsa. Sua oração é um espelho para todos os que já se perguntaram “por que eu?” e não encontraram resposta. Porque talvez a resposta não esteja nas palavras, mas no ato de continuar perguntando. 

© Alberto Araújo

  

PRECE, o texto da minha inspiração 


 Prece

Leão Zagury

 

Senhor, por que eu?

que só queria cinquenta e seis anos

como meu pai, que recebeu tão pouco

e merecia tanto.

 

Eu, que nunca tive a obstinação dos  bois,

e tremi de medo tantas vezes.

Desafinado, feio, magro e desengonçado.

Eu que nunca consegui cantar,  nem ouvir uma música sequer...

 

Por qual razão eu?

Que recebi apelidos humilhantes

e por isso, tantas vezes, chorei.

Eu, que não aprendi a rezar nem a nadar,

me engasguei com cigarros,

e admirei móveis antigos.

 

Eu, incapaz de perceber a falsidade e a perfídia,

só agora entendo que o mundo não tem remédio.

Eu, que recusado pelo exército

me entreguei às fraquezas da vida e

tentei fugir do amor para não sofrer.

 

Por que motivo eu?

Apenas apto a lutar por causas perdidas.

Capaz de acreditar na concha da mão como arma da justiça.

Eu, que assisti a filmes de caubói e sofri com os índios.

Eu, que recebi ofensas e não revidei.

Eu, o filho renegado na hora da morte.

 

Justamente eu?

Que me sentei com criados,

torci pelos touros,

cumprimentei cachorros.

E fui tão mal goleiro!

Por quê?

Eu que contrai poliomielite

e fui obrigado a me tornar canhoto.

Eu que perdi todos os gols. 

Logo eu, que nunca amei a vida.


Senhor

Porque eu, precisamente eu,

que levei tantas porradas    

permaneço vivo?


Leão Zagury ganhou com esse texto a Menção Honrosa no Concurso da ABRAMES – 2025

 



 

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