O
burburinho da Rua do Ouvidor mal chegava aos ouvidos do velho bibliotecário,
Senhor Antunes. Enclausurado entre estantes empoeiradas e o cheiro
inconfundível de papel antigo, ele se sentia mais à vontade do que em qualquer
salão da corte. Há décadas dedicava-se àquela biblioteca particular, um
verdadeiro labirinto de sabedoria acumulada por gerações de uma mesma família.
Um
dia, porém, algo quebrou a monotonia de sua existência. Dona Adelaide, a última
herdeira da linhagem, uma senhora de saúde frágil e olhar melancólico, chamou-o
ao seu gabinete.
"Senhor
Antunes," começou ela, a voz um fio de seda, "encontrei algo...
peculiar. Algo que me deixou deveras perturbada."
Sobre
a mesa de mogno, repousava um caderno de capa simples, quase desbotada. Dona
Adelaide hesitou antes de abri-lo, como se temesse o que suas páginas pudessem
revelar.
"Estava
guardado em um cofre antigo, no sótão. Nunca o vi antes. A caligrafia... parece
familiar, mas não consigo precisar de quem seja."
Senhor
Antunes pegou o caderno com cuidado. As páginas amareladas rangiam levemente
sob seus dedos. A caligrafia era elegante, cursiva, com um toque de formalidade
que lhe era vagamente conhecido. Começou a ler a primeira frase, e um arrepio
percorreu sua espinha.
"Confesso,
sob o véu da mais profunda discrição, que fui o algoz da própria
felicidade."
As
palavras seguintes descreviam uma história intrincada de amores proibidos,
ambições secretas e escolhas tortuosas, tudo narrado com a maestria de um
observador arguto e uma ironia sutil que lhe eram inconfundíveis. Os
personagens, embora fictícios, pareciam ganhar vida sob a pena daquele escritor
anônimo, com suas fraquezas expostas e suas motivações dissecadas com uma
precisão quase cirúrgica.
Quanto
mais Senhor Antunes lia, mais a certeza o invadia: aquela era a mão de Machado
de Assis. Mas como? O caderno não continha datas, mas o estilo, a cadência das
frases, a profundidade psicológica dos personagens... tudo gritava o nome do
Bruxo do Cosme Velho.
A
surpresa não residia apenas na descoberta de um texto inédito do mestre. O
verdadeiro enigma estava em como aquele caderno fora parar naquele cofre
esquecido. A família de Dona Adelaide não possuía nenhuma ligação conhecida com
Machado de Assis. Senhor Antunes, um estudioso da obra machadiana, jamais
ouvira falar de qualquer manuscrito perdido com aquelas características.
Dona
Adelaide observava o bibliotecário com apreensão. "O que pensa, Senhor
Antunes? Quem poderia ter escrito isso?"
Ele
ergueu os olhos, perplexo. "Dona Adelaide, com quase toda a certeza...
este é um trabalho de Machado de Assis."
Um
silêncio denso se instalou no gabinete. A incredulidade estampada no rosto de
Dona Adelaide era o reflexo da confusão que tomava conta de Senhor Antunes.
Como um texto tão característico, tão imbuído do espírito machadiano, poderia
ter permanecido oculto por tanto tempo, em um lugar tão improvável?
Nos
dias que se seguiram, Senhor Antunes mergulhou em pesquisas frenéticas.
Consultou biografias, correspondências, artigos acadêmicos. Nada. Nenhuma
menção àquele caderno, àquela história. A caligrafia, comparada com fac-símiles
de manuscritos de Machado, apresentava semelhanças inegáveis, mas a ausência de
qualquer registro era um mistério desconcertante.
A
hipótese mais plausível, embora ainda surpreendente, era que Machado de Assis,
em algum momento desconhecido, tivesse tido algum contato com a família de Dona
Adelaide – talvez através de algum amigo em comum, ou em alguma ocasião social
discreta – e por alguma razão obscura, aquele caderno tivesse sido deixado para
trás, esquecido no labirinto do tempo.
O
enigma da biblioteca esquecida ecoava na mente de Senhor Antunes. Aquele
caderno, com suas páginas carregadas de um talento inconfundível, era uma janela
inesperada para a genialidade de Machado de Assis, um lembrete de que mesmo o
mestre mais estudado ainda podia reservar surpresas, escondidas nos recantos
mais inesperados da história. E para Senhor Antunes, o velho bibliotecário,
aquela descoberta improvável era a prova de que o universo da literatura, assim
como a vida, era capaz de tecer tramas surpreendentes, onde o acaso e o gênio
se encontravam de maneiras absolutamente inesperadas.
A
pergunta ecoou no gabinete de Dona Adelaide, pairando sobre o caderno de capa
desbotada: de quem era, afinal, aquele tesouro literário?
Senhor
Antunes, após dias de pesquisa infrutífera nos registros oficiais e na história
pública de Machado de Assis, decidiu mudar a abordagem. Começou a mergulhar na
história da própria família de Dona Adelaide. Revirou árvores genealógicas
empoeiradas, analisou correspondências antigas guardadas em caixas empoeiradas
no sótão – o mesmo sótão onde o caderno fora encontrado.
A
chave para o mistério surgiu de um lugar inesperado: um retrato a óleo,
pendurado em um corredor pouco iluminado da mansão. A figura retratada era um
homem de olhar melancólico e bigodes finos, com uma semelhança vaga, mas
perturbadora, com algumas fotografias mais jovens de Machado de Assis.
Intrigado,
Senhor Antunes questionou Dona Adelaide sobre a identidade do homem. Ela
hesitou, lembrando-se vagamente de histórias de família sobre um tio-avô
excêntrico, um intelectual recluso que havia vivido na propriedade no final do
século XIX. Seu nome era Alberto de Sá.
Com
essa nova pista, Senhor Antunes intensificou a busca nos arquivos da família.
Encontrou cartas trocadas entre Alberto de Sá e outros membros da família,
revelando um homem de grande erudição e sensibilidade, mas também de saúde
frágil e vida solitária. Em uma dessas cartas, endereçada a um primo distante
que vivia no Rio de Janeiro, uma frase chamou a atenção de Senhor Antunes:
"Tenho
me dedicado à escrita, prezado primo, encontrando nas palavras um refúgio para
as agruras da alma. Admiro profundamente o trabalho de um certo Machado, cuja
pena perspicaz e ironia fina me causam tanto deleite quanto inveja."
A
menção a "Machado" era um indício, mas não a prova definitiva. A
confirmação veio de um achado ainda mais surpreendente: um pequeno diário,
escondido dentro de uma edição antiga de poemas franceses que pertencera a
Alberto de Sá. Nele, em meio a reflexões pessoais e citações literárias, havia
esboços de personagens, fragmentos de diálogos e anotações que guardavam uma
semelhança impressionante com a narrativa encontrada no caderno misterioso.
A
caligrafia do diário, embora um pouco menos formal que a do caderno,
apresentava as mesmas características distintivas. E, crucialmente, em uma das
últimas páginas, havia uma anotação rabiscada a lápis:
"A
história de meu desengano... talvez um dia encontre um leitor compreensivo. Por
ora, repousa segura, como um segredo bem guardado."
A
verdade, então, começou a se desenhar. Alberto de Sá, o tio-avô esquecido, era
o autor do surpreendente manuscrito. A admiração por Machado de Assis era
evidente em seu estilo e na profundidade de suas observações sobre a natureza
humana. O caderno, encontrado no cofre, era o fruto de sua paixão pela escrita,
um segredo guardado por décadas.
A
surpresa, portanto, não era a descoberta de um Machado inédito, mas sim a revelação
de um talento adormecido dentro da própria família de Dona Adelaide,
profundamente influenciado pelo mestre. O "enigma da biblioteca
esquecida" desvendava a história de um homem que, à sombra de um grande
gênio, também havia encontrado na escrita uma forma de dar voz aos seus
sentimentos e reflexões.
Dona
Adelaide, emocionada com a descoberta, decidiu que o caderno e o diário de seu
tio-avô deveriam ser preservados e estudados, revelando ao mundo a história
surpreendente de um escritor até então desconhecido, cuja obra ecoava, de
maneira fascinante, a genialidade de Machado de Assis. A descoberta de uma nova
voz literária, um tributo silencioso ao Bruxo do Cosme Velho, escondido nas páginas
empoeiradas de uma biblioteca esquecida.
©
Alberto Araújo