terça-feira, 26 de dezembro de 2017

UMA VELHA, UM MENINO NA SUBIDA DO CALVÁRIO TEXTO DE NORBERTO SERÓDIO BOECHAT. EMOCIONANTE!!


ESTA COMOVENTE MENSAGEM FOI ENVIADA COMO UMA SAUDAÇÃO NATALINA AO FOCUS CULTURAL PELO DOUTOR NORBERTO SERÓDIO BOECHAT, ILUSTRE MÉDICO GERIATRA DE NITERÓI, ALÉM DE ESCRITOR, COM VÁRIOS LIVROS PUBLICADOS. POR SER UM TEXTO, QUE ME DISSE MUITO AO CORAÇÃO, PARTILHO COM  VOCÊS :
 
 
 
Die Erwartete (The Expected; 1860
pintura de Ferdinand Georg Waldmüller

 

 

 
 
UMA VELHA, UM MENINO NA SUBIDA DO CALVÁRIO
 
 
 
 
 
Norberto Seródio Boechat
 
 
 
 
 
 
Época de Natal. Em frente ao edifício do Cine Monte Líbano em Bom Jesus. Um cartaz exibia em tamanho natural a imagem do caminho do calvário. Cruz. Coroa de espinhos. Sangue escorrendo pela testa. A mídia de então aproveitava a visão dramática para veicular o filme.
Esperávamos pelo jipe com meus pais. Fôramos à cidade escolher os presentes que Papai Noel nos daria. Casa Mansur, na esquina da Beira Rio.
De repente, no burburinho de pessoas e sacolas, uma velha e um garotinho caminhavam, distraidamente, em nossa direção. Pararam diante do Cristo. Maltrapilhos e descalços. Pobreza extrema. Incompatíveis com o momento no qual se expressava, graças aos embrulhos coloridos, o poder do consumo.
 Ela, um embornal na mão. Ele, um porretinho tal qual guerreiro guardião. Estancaram diante da via crucis. Firmaram o olhar no homem arrastando o madeiro. Começaram a chorar. Ela mais que ele. Choraram como se nada houvesse ao redor. Ignoraram em sua dor o resto da (des)humanidade.
 
 
 

 
 
 
Marcaram-me definitivamente.
Transbordava naquele instante o sentimento puro, o que flui da simplicidade. O mundo ao redor não existia. As lágrimas  foram as mais sentidas que presenciei. Sofridas e impregnadas de ingenuidade. Mistura de sofrimento pelo nazareno e, talvez, por si mesmos na tragédia da vida desafiadora. Imaginei que poderiam ter entrado na cena e se misturado à multidão. Uns em contido silêncio, outros vergastando.
 Teriam, assim, feito parte da história do homem que mudaria o mundo. Súbito, o menino percebeu que Cristo parou. Viu Seu olhar cruzando com o de uma mulher. A troca foi tão intensa que ele sentiu, ali a quintessência do amor e da dor, semelhantes aos que o unia à mãe. Levavam, também, uma cruz, não tão pesada, mas uma cruz. Seguiram. Caminhos e caminhos.








Apesar de serem de Pirapetinga, não lhes conhecia bem. Julgava serem uma viúva e seu filho. Sempre os dois, de mãos dadas. Essas representavam a força que os unia, a certeza de que juntos se identificavam numa família. De mãos dadas, nada os demoveria. Integravam suas armas, suas defesas. Elas estabeleciam definitiva corrente.
Nem precisavam falar, os dedos entrelaçados conversavam entre si, dividiam as ocasiões de angústia, de penúria na silente solidão. Chamava-me a atenção o olhar do menino para mim. Um misto, quem sabe, de admiração, de encantamento diante da visão que eu representava, da vida que ele não tinha. Peregrinos de histórias. Dois mundos.



 
Nunca me aproximei deles, não tive o impulso. Eram diferentes, estranhos, pareciam irreais. No entanto, era real a absoluta pobreza. Onde morariam? Quem seriam seus patrões? Jamais soube. Apareciam e ficavam em frente ao coreto, colocando-se na paisagem igual a espantalhos da existência.
Não sei qual foi seus destinos, se ele cresceu, casou e se ela pôde segurar netos no colo. Não sei... Quando penso neles, invade-me a sensação de que algo não foi feito, de que algo ficou para trás, certa impotência por não ter mudado o estabelecido ou, até mesmo, um resquício de arrependimento pelo comodismo, pela falta do simples gesto de repartir, de ter dado algo.
 Não, nada dei. Deixei que a vida fosse indo, infalível e dramática, com cada qual segurando as rédeas possíveis. Mas, jamais os esquecerei. Sobretudo no Natal.
 
 


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