PÁGINAS DE ABERTURA DE ESQUISSE, ROMANCE AINDA INÉDITO,
PUBLICADAS HOJE. 16 DE MAIO DE 2020, NA CAPITOLINA REVISTA/ CAPITOLINABOOKS, DE
LONDRES.
ESQUISSE
GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO
1
Encontro o parente na entrada da Saint Patrick’s Cathedral,
em Nova York. Foi ideia dele. Às 14 horas ele deve chegar. Porque exatamente
neste lugar não sei. Parece filme policial. É que ali não tem erro, num café
poderia gerar confusão, são parecidos, a catedral todo mundo conhece,
explicações dele no whatsapp, eu ainda no Rio de Janeiro. Examino as torres, li
terem cem metros de altura, comparo as portas e a rosácea com as de Veneza, que
visito em breve pela mesma razão da vinda a Nova Yok: herança. A Saint
Patrick’s Cathedral se embaralha, a minha visão se turva, pode ser pelo fato de
ter levantado a cabeça para olhar detidamente as torres, não sei, traços de
quadros de Jheronimus Bosch debruam as quinas da igreja, morcegos entram e saem
indecisos e histéricos pela porta central, o céu escurece, a cidade escurece,
os prédios em volta escurecem, a catedral se incendeia, rubra entre o breu ,
entre trevas, entre o nada, o inferno, me puxam para dentro , alguém me toca as
costas, não, não quero ir, diabo, não me empurra , acho que desmaiei, de baixo
para cima vejo rostos próximos ao meu, vários, órbitas de várias cores, bocas ,
narizes, sempre me perguntei como um nariz, uma boca e dois olhos podem
construir rostos tão diferentes, me disseram que a combinação de palavras
também, agora era o caso, quantas caras distintas umas das outras me olham? Um
braço mais amigo me levanta, fala em português, está melhor? Es tou, obr igado,
a língua me acalma, até então naquela posição subjugada só ouvia oh my God.
Claro, era o parente. Reconhecível pela barba aparada, os olhos esverdeados, o
cabelo liso alourado da minha avó, cara de meio perdido, me lembrou algu é m do
Brasil , claro, a nossa família toda vem do Vêneto, não lembra, sim, sim,
lembro, Belluno, Veneza, Trento, Bérgamo, por ali. Claro, Sordi. Digo o nome
dele pela primeira vez, como o ator de cinema italiano da minha época , ele diz
o meu, sim primo Luiggi. A semelhança com certas pessoas do meu país não me cai
bem, sinto azia, por que desmaiei? Ele abre o celular, minha cara no visor,
reconheci você na hora, me diz, abro o meu aparelho, custo a me concentrar nas
teclas, Sordi aparece afinal, sorridente, parece franco na foto, ele é honesto?
Examino-o como examinei as torres da catedral, ele olha para o chão, tímido até
agora, propõe logo um café nas cercanias. Antes o clássico aperto de mão , o
jogo começa, segura meu braço, tapinha nas costas. Ator italiano dos anos 60
caricaturado. Quer ir ao Hospital? Não, não, estou ok, de vez em q u ando tenho
isso, já estou acostumado.
2
Atravesso a rua no sinal fechado, uma mulher de cabelo
curto, loiro, ao volante de um carro de marca japonesa me acena, retribuo o
gesto algo hesitante, ela põe o indicador na orelha e gira, louco eu? Me dou
conta que ela limpava o para-brisa embaçado, o lenço servia para isso, termino
a travessia constrangido, entro num café perto do terminal de ônibus, na
calçada a placa Veneza- Noale, o último cheiro de gasolina e escapamento, logo
só gôndolas, lanchas e o vaporeto de transporte público. Daqui a pouco o hotel
na rua Mandola, perto do Campo Sant’Angelo. No café o conhaque desce tal uma
barata se arrastando devagar no esgoto, é assim que me vejo, no esgoto, caído
na sarjeta. Escrevo algumas linhas no guardanapo de papel, será meu epitáfio ou
minhas memórias? Confissões de um derrotado moralmente, profissionalmente,
eticamente, o esboço do Bosch co mo a min ha vida, um looser, um projeto
rudimentar de vida que não se concretizou, um esboço de existência, uma
esquisse de quadro. Grandioso em alguns sonhos. Só em sonhos. O que estou
fazendo aqui, meu Deus? Por que alimentar a esquizofrenia da família?
A quem estou enganando? O encontro será em Veneza, não rolou
com o Sordi em Nova York, agora tem que continuar, Luiggi. Um dos tios ainda
diz a frase chavão e de mau gosto “se só tem tu vai tu mesmo “. O parente
desconhecido, desta vez, que cara terá? As fotos nas redes sociais são dele
mesmo? As feições regulares, o bigode fino, cabelo ruivo, enferrujado se dizia
na minha escola, tinha vários no colégio, ele vai me passar a esquisse do Bosch
assim? A gente permuta um apartamento de duzentos e cinquenta metros quadrados
na Avenida Beira- Mar Norte em Florianópolis, três quilômetros de terra na
beira da BR-470 entre Navegantes e Blumenau, um quarto e sala quase esquina da
praia do Leblon no Rio de Janeiro e um apart hotel de trinta metros quadrados
em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, todas propriedades de meu avô deixadas
para a família, pela esquisse . Olho as escritu ras, tudo em dia, já passadas
para o seu nome, um nome longuíssimo, Alessandro De Angelis Palumbo Marchetti
de Santis Marini Coutinho, só falta minha assinatura , o inventariante. Em
troca ele passa o Bosch com uma declaração de que a obra lhe foi ofertada de
boa-fé por um contraparente, obra que estava com a família dele desde 1901.
Alessandro se compromete a assinar, no cartório de Veneza, a devolução aos
verdadeiros proprietários, a família Coutinho Sorrentino Caruso, nomeadamente os
herdeiros Matilde, Alberto ,Gianfranco e Júlio. Sei o script de cor e salteado,
repito ele há semanas. Os advogados das duas partes já resolveram o contencioso
jurídico.
Do Campo Sant’ Angelo pego uma ruela e vou até o Campo San
Fantin, do Teatro La Fenice . Em cartaz Fausto , dirigido por Frédéric Chaslin.
Amanhã será o encontro com Alessandro no Ristorante al Theatro, ali pertinho.
Mensagem para Ana Júlia, conversa afetiva dessa vez, querida, amável,
produtiva, se diz mergulhada nos versos de Paul Éluard, Breton e Augusto dos
Anjos , estou torcendo aqui por você aí em Veneza, meu amor, pergunto a ela
porque ela não veio comigo, como eu poderia, Luiggi? E o trabalho? E além disso
não quero me meter nessa história de herança da família de vocês, não tenho nada
com isso e essas coisas sempre dão rolo, é briga na certa, o teu irmão podia
ter te acompanhado, isso sim, é verdade, mas ele nunca quer nada, Ana Júlia,
está sempre deprimido, pois é, Luiggi, a família de voc&a mp;e circ;s é
desse jeito. Não gostei da observação negativa sobre a minha família, não disse
a ela, mas não gostei, desliguei.
Ligo para a Fabiana, colega da Universidade Federal de Santa
Catarina, ela organizou uma conferência para mim na universidade Ca ‘ Foscari,
falo sobre pintura brasileira do século XIX, vou dar força ao quadro A Primeira
Missa no Brasil, do Victor Meirelles. Sordi insistiu, em Nova York, que eu
deveria sempre realçar Victor Meirelles, Cruz e Sousa, Anita Garibaldi, o monge
João Maria e o naturalista Fritz Muller como grandes expoentes catarinenses da
história do Brasil, e agora, com a posse do Bosch, vocês serão a sexta
referência brasileira. Não desgostei dessa proposta, à noite senti a culpa
cristã de sempre pela vaidade e narcisimo. A sexta personalidade cultural só por
sermos proprietários de uma quadro do Bosch, que nem terminado está, é apenas
uma esquisse, que vergonha pensar isso, o que que os meus camaradas de esquerda
pensariam? Tomo aperol em cima de a perol no bar Brasilia , não poderia não ir
com esse nome, perto do hotel, já tinham me recomendado, Sestieri San Marco
3658, antes passei na livraria na mesma ruazinha, mais um depósito de livros do
que uma livraria, consegui uma edição antiga, de 1901, em super bom estado, de
La Divinna Commedia, Dante me persegue desde o Ensino Médio . Leio o canto XXV
do Paraíso - Vinca la crudeltà che fuor mi serra/ Del bello ovile ov’io dormi
agnello,/ Nimico ai lupi che ci danno guerra. As esferas, a oitava, as visões
de Cristo e da Virgem Maria me sossegam, a Igreja triunfa, com Dante os
remédios para as minhas aflições funcionam mil vezes mais.
Posto mensagem carinhosa para Ana Júlia. Como agirá
Alessandro? Será como o Sordi? No bar do aperol uma mesa de brasileiros discute
a política do Brasil, aplaudem o esforço para pôr no seu devido lugar o exagero
do espaço do saber universitário, a arte esquerdista hipervalorizada, a ciência
dimensionada equivocadamente, devia-se realçar, isso sim, a sabedoria popular
haurida não nos livros, mas na experiência própria, menos livros e mais saber,
esse é o meu lema, gritou uma senhora de Ribeirão Preto, secundada por Deus
acima de tudo, completou o marido gordo de bochechas arroxeadas , quase do tom
das duas garrafas de vinho engolidas.
No calçadão à beira mar entre a praça San Marco e Giardini –
conto vir com Ana Júlia na próxima Bienal de Veneza - andorinhas do mar
passavam umas para as outras, em pleno voo, pedaços de peixe numa experiência
de comunidade surpreendente. Os brasileiros comiam caviar , as andorinhas do
mar me fizeram lembrar deles. Arlequins voam nas minhas retinas. Não vou
desmaiar. Ainda tenho que telefonar para os herdeiros, inclusive a minha mãe.
Talvez também ao Aldo, mas o meu irmão vive em outro planeta.
( Os dois capítulos desta publicação fazem parte do livro
Esquisse, ainda inédito)
GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO é um escritor e professor
universitário brasileiro, formado em Letras e Altos Estudos Internacionais pela
Sorbonne. Atua, como docente, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
autor de vários ensaios e romances, entre eles Ana e a margem do rio:
confissões de uma jovem Nauá, O Bruxo do Contestado, Amores Exilados
(originalmente Pedaço de Santo), Cruz e Sousa: o poeta alforriado, Grito, A
Ficcionista, O menino oculto, publicado na França e segundo lugar no Prêmio
Jabuti.
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