sexta-feira, 18 de setembro de 2020

"REMINISCÊNCIAS" DA POETISA E ESCRITORA NEIDE BARRO RÊGO

 





DESTAQUE DO FOCUS PORTAL CULTURAL TEXTO "REMINISCÊNCIAS" DA POETISA E ESCRITORA NEIDE BARRO RÊGO, PUBLICADO NO SITE http://www.nitcult.com.br/neide2.htm

 


REMINISCÊNCIAS...

 

 

Visitando os escaninhos da minha memória, encontro retalhos da infância, alguns ligados aos meus pais.

Orgulho-me de haver nascido na pequena São Tomás de Aquino, Minas Gerais, onde permaneci até a idade de doze anos.

Em cidades do interior, é comum as pessoas falarem errado. Papai nos advertia sempre para que pronunciássemos corretamente as palavras e nos corrigia quando não obedecíamos à concordância. Tínhamos que falar os vocábulos inteiros, com “s” e “r” finais. Nada de “ocê”, “nós vai”, “nós vem”, “nós foi”.

Ele preparava alunos para exames de admissão ao curso ginasial das cidades vizinhas, aonde meus irmãos mais velhos iam estudar. No Grupo Escolar Olegário Maciel, o ensino só ia até a quarta série. Estudávamos a geografia do mundo pelo mapa. Sabíamos os nomes dos países, capitais, rios, mares, montanhas, vulcões. Conhecíamos o Brasil de norte a sul, tudo na base da “decoreba”, inclusive as datas da História e a tabuada, que papai adorava nos “tomar”.

Tirávamos sempre as maiores notas. Quando terminamos o primário, Nilde, minha irmã gêmea, foi escolhida para ser a oradora. A festa realizou-se no único clube da cidade. Ainda recordo o começo do discurso (escrito por Dona Amelinha, a nossa professora). Iniciava-se assim:

“Guindada à altura desta solenidade, eu me sinto no momento confundida, e ao mesmo tempo orgulhosa, por poder dirigir-vos a minha palavra de respeito, gratidão e homenagem.” Imaginem: uma menina de dez anos dizendo com ênfase essas palavras!

Nosso pai fora seminarista, o que lhe proporcionou muitos conhecimentos. Ele falava bem e, aos setenta e nove anos, idade com que faleceu, ainda tinha boa memória e conservava o sotaque cearense. Declamava “A Lágrima” e “O Melro”, ambos de Guerra Junqueiro, além de outros poemas extensos.

Ele chegara àquela cidade como instrutor de Tiro de Guerra. Conheceu a bela primogênita da família Martini, minha mãe, que também possuía um bom vocabulário, adquirido através da leitura de romances. Casaram-se em 1929. Interessante é lembrar que as cunhadas não o tratavam por você, mas por  “senhor”.

Na década de cinquenta, mudamo-nos para Niterói. Aqui, anos depois, comemoramos com uma linda festa suas bodas de ouro. Ele, numa cadeira de rodas, mas muito feliz.

Quando moço, fora acometido de doença grave, crônica, adquirida em treinamentos militares. Nas crises, sofria dores terríveis. Não posso esquecer a nossa aflição ao ouvirmos seus gemidos e gritos, principalmente à noite.

Para aliviar as dores, que ele chamava de “pontadas”, submeteu-se a um tratamento que consistia em colocar, no lado externo da perna, charutos de pano que ele mesmo acendia, os quais iam queimando aos poucos, resultando em feridas que purgavam durante algum tempo.

Mamãe sempre ao seu lado, sem reclamar. Dizíamos que ela — tão calma, humilde e dedicada à família — era “a mãe da paciência”.

Quando estava bem,  papai, sempre assobiando e cantando “Sertaneja”, “Chuá, Chuá” e “Luar do Sertão” , cuidava da horta com seus canteiros verdinhos de alface, couve e outras verduras, além do milho e da mandioca.

Conhecido por “Tenente”, era considerado uma das personalidades mais cultas da cidade. Das pessoas simples ao juiz e ao prefeito, todos gostavam de conversar com ele, que quase não saía de casa.

 Reformado pelo Exército e com nove filhos (Nildo, Nídio, Nêdra, Nilce, Nilde, Neide, Nilo, Nara e Naida), vivíamos com dificuldades. Ajudávamos mamãe nos afazeres domésticos e ela costurava para a família. Papai fazia para nós alpercatas de couro com sola de pneu — o que me faz pensar hoje que elas foram as precursoras das sandálias “havaianas”; tomava muito café e preparava seus cigarros de palha com fumo de rolo.

Minhas primeiras palavras em francês, aprendi-as com ele: “Dieu dans la nature” (Deus na natureza). Era o nome de um livro, de Camille Flammarion. Do papai veio a nossa orientação religiosa. Fundador do Centro Espírita Otília Amaral, foi, durante anos, seu presidente. Lembro-me de algumas frases escritas nas paredes, emolduradas com desenhos de pergaminhos: “Fora da Caridade não há salvação”, “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Nunca apanhamos de nossos pais, nem brigávamos entre nós. Não me lembro de beijos e abraços, mas havia respeito, disciplina, educação. Não nos faltou também a formação moral e cívica.

Por ser papai doente, e mamãe não trabalhar fora, nos habituamos a sabê-los sempre em casa. Francisco das Chagas Barros e Wanda Páschoa Martini de Barros foram nossos mestres, nossos incentivadores, nossos conselheiros, nosso porto seguro.

Eles marcaram a nossa infância e fazem parte das minhas reminiscências e da minha saudade.

 

Neide Barros Rêgo

 

 



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