sexta-feira, 6 de agosto de 2021

10 POEMAS DE MANOEL DE BARROS



O LIVRO SOBRE NADA


É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste.

Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

A inércia é meu ato principal.

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.

Peixe não tem honras nem horizontes.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

Eu queria ser lido pelas pedras.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.

Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.

Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.



O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS



Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.



RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA



A maior riqueza

do homem

é sua incompletude.

Nesse ponto

sou abastado.

Palavras que me aceitam

como sou

— eu não aceito.

Não aguento ser apenas

um sujeito que abre

portas, que puxa

válvulas, que olha o

relógio, que compra pão

às 6 da tarde, que vai

lá fora, que aponta lápis,

que vê a uva etc. etc.

Perdoai. Mas eu

preciso ser Outros.

Eu penso

renovar o homem

usando borboletas.



O FAZEDOR DE AMANHECER



Sou leso em tratagens com máquina.

Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.

Em toda a minha vida só engenhei

3 máquinas

Como sejam:

Uma pequena manivela para pegar no sono.

Um fazedor de amanhecer

para usamentos de poetas

E um platinado de mandioca para o

fordeco de meu irmão.

Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias

automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.

Fui aclamado de idiota pela maioria

das autoridades na entrega do prêmio.

Pelo que fiquei um tanto soberbo.

E a glória entronizou-se para sempre

em minha existência.



TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO



A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado.

Sou fraco para elogios.



PREFÁCIO



Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —

sem nome.

Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.

Insetos errados de cor caíam no mar.

A voz se estendeu na direção da boca.

Caranguejos apertavam mangues.

Vendo que havia na terra

Dependimentos demais

E tarefas muitas —

Os homens começaram a roer unhas.

Ficou certo pois não

Que as moscas iriam iluminar

O silêncio das coisas anônimas.

Porém, vendo o Homem

Que as moscas não davam conta de iluminar o

Silêncio das coisas anônimas —

Passaram essa tarefa para os poetas.



OS DESLIMITES DA PALAVRA



Ando muito completo de vazios.

Meu órgão de morrer me predomina.

Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.

Está rengo de mim o amanhecer.

Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.

Atrás do ocaso fervem os insetos.

Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu

destino.

Essas coisas me mudam para cisco.

A minha independência tem algemas


APRENDIMENTOS


O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura

é o caminho que o homem percorre para se conhecer.

Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim

falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas

di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas

das árvores servem para nos ensinar a cair sem

alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado

sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente

aprender o idioma que as rãs falam com as águas

e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos

do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de

ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros

do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara

nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,

no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.

Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno

grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!

Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —

esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.

Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que

achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam

que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas

são donzelas. E que a Beleza se explica melhor

por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei

sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.



O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA



Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino

que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira

era o mesmo que roubar um vento e

sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo

que catar espinhos na água.

O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces

de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

gostava mais do vazio, do que do cheio.

Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino

que era cismado e esquisito,

porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que

escrever seria o mesmo

que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu

que era capaz de ser noviça,

monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios

com as suas peraltagens,

e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!



UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO


I


Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

etc.

etc.

etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.

Dar ao pente funções de não pentear. Até que

ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou

uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham

idioma.

III

Repetir repetir — até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas

por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a cor dos

passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos —

O verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em

Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso

partir de um torpor animal de lagarto às

3 horas da tarde, no mês de agosto.

Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer

em nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até

o mato sair na voz .

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

 



 



 

MANOEL WENCESLAU LEITE DE BARROS  nasceu em Cuiabá, 19 de dezembro de 1916 e faleceu em Campo Grande, 13 de novembro de 2014, foi um poeta brasileiro do século XX, pertencente, cronologicamente à Geração de 45, mas formalmente ao pós-Modernismo brasileiro, se situando mais próximo das vanguardas europeias do início do século e da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia de Oswald de Andrade. Com 13 anos, ele se mudou para Campo Grande (MS), onde viveu pelo resto da sua vida. Recebeu vários prêmios literários, entre eles, dois Prêmios Jabutis e foi membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. É o mais aclamado poeta brasileiro da contemporaneidade nos meios literários. Enquanto ainda escrevia, Carlos Drummond de Andrade recusou o epíteto de maior poeta vivo do Brasil em favor de Manoel de Barros. Sua obra mais conhecida é o "Livro sobre Nada" de 1996.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário