A
Carta de Pero Vaz de Caminha é o documento no qual Pero Vaz de Caminha
registrou as suas impressões sobre a terra que posteriormente viria a ser
chamada de Brasil. É o primeiro documento escrito da história do Brasil.
Costuma ser considerada marco inicial da obra literária brasileira, apesar de,
formalmente, ser documento de mero registro, já que traz em suas linhas a
escrita da época, o estilo; e, nas entrelinhas, conta muito da história oculta
do descobrimento.
Escrivão
da frota de Pedro Álvares Cabral, Caminha enviou a carta para o rei D. Manuel I
(1469-1521) para comunicar-lhe o descobrimento das novas terras. Datada de
Porto Seguro (no litoral da atual Bahia de acordo com Francisco Adolfo de
Varnhagen), no dia 1 de maio de 1500, foi levada a Portugal por Gaspar de
Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota.
A
carta conservou-se inédita por mais de dois séculos no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, em Lisboa. Foi descoberta, em 1773, por José de Seabra da Silva
e publicada pelo historiador Manuel Aires de Casal na sua Corografia Brasílica
(1817).
Em
2005, foi inscrita no Programa Memória do Mundo da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
EIS
O TEXTO
Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam
a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta
navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa
Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o
saiba pior que todos fazer. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa
vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui
mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho
não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos
devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A
partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março.
Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as
Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à
vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez
horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor,
da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto. Na noite
seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com
sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o
capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu
mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que,
terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita
Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns
sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os
mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E
quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste
dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande
monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal
e à terra – a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco
braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em
dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à
quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à terra, indo os
navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze,
dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em
frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais
ou menos. Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito,
segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora
os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do
Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a
Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá,
acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que,
ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram
pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos
traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau
Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde
deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa.
Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na
cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave,
compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e
outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer
de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com
isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por
causa do mar. Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez
caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas,
pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar
âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes
amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e
bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos
minguasse, mas por aqui nos acertarmos. Quando fizemos vela, estariam já na
praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam
juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios
pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para
as naus, que amainassem. E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do
sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um
recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga
entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um
pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e
ancoraram em onze braças. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles
navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso,
meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens
da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia
um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas;
mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau
foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos,
maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus,
sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e
nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de
baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento
duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um
furador. Metemnos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre
o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte
que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos
seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de
sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de
cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui
basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos
cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de
maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não
fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram,
estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda,
Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos,
sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram
sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs
olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois
para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um
castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o
castiçal como se lá também houvesse prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que
o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como
quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso.
Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão;
e depois a tomaram como que espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe
cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada
daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes
vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas;
acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois
tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas
e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto
tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria
as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho
havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera. Então estiraram-se
de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas
vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas
e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da
cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e
eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Ao sábado pela manhã mandou o Capitão
fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a
sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças
– ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se
nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas,
todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a
Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois
homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada
um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de
osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou
com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que
chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras.
E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à
praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e
setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e
pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal
pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com
eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam
a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita
água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim
correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali
pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel,
o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os
outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Então se
começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que
mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós
levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos
chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós
tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho
cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de
maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles
arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que
homem lhes queria dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não
vimos mais. Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam
aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os
beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha;
outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí
andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor,
e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de
escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis,
com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas,
tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não
tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala ou entendimento
com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia
ninguém. Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do
rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos
barris de água que nós levávamos e tornamonos às naus. Mas quando assim
vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e
não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou
três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não
cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu
Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o
deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós
trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo
cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião.
Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de
verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura;
e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão
graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha,
por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como
nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu
batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a
folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o
Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu — ele com
todos nós — em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui
vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode
ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma
hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram
peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite. Ao domingo
de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação
naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e
fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e
dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer
missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual
missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual
esteve sempre levantada, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o
padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou
uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual
tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da
Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.
Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente,
pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava
folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados
nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e
começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias —
duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi;
somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou
esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam
tomar pé. Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis,
com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos
ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão,
Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar
levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. Como
viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se
nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles
os iam logo pôr em terra; e outros não. Andava aí um que falava muito aos
outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham
acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas,
e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e
pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor.
E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes,
quando saía da água, parecia mais vermelha. Saiu um homem do esquife de
Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe
mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em
terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a
comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles
tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde
fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e
muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco
e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão
grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de
berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que
comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor,
com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos
parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio
dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós
agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E entre muitas falas que no
caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E
nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes
parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa
Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados. Sobre isto
acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral
costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de
tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra
dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se
os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a
falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam,
quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar
ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e
apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o
Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e
também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira
conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e,
antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e
acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra,
passaramse logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de
mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e
meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a
coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com
suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes
davam. Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles,
que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde
outros estavam. Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou
o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a
costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns
daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem,
nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém
do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e
resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali
para as naus muitos arcos e setas e contas. Então tornou-se o Capitão aquém do
rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de
preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo,
pareciam bem assim. Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças,
nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do
joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto,
tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim
tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta
inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha. Também andava aí
outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei
de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as
pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. Depois andou o Capitão para
cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho,
que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele,
perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas
que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra
havia. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um
grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora
esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com
ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um
pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela
pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra.
Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a
Vossa Alteza. Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito
boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons
palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo
para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos
deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E
faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de
Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso
com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de
dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real,
de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito
os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e
foram-se para cima. E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e
fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma
lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela
ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de
passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se
recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou,
lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que
eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como
pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem
mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O Capitão ao
velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre
ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de
passar o rio, foise logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os
outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais
aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão
esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E
naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais
faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão
limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir
que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz
tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas. Mandou o
Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele
foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e
não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram
nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas
amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo
após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que
não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito
grandes, como de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase
noite, a dormir. À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a
tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já
muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois
pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles
se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma
carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem
vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos
estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de
penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de
mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam
com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos
quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados;
outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com
os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns
traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de
castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos
pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de
que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos
ficavam. Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e
pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta,
que parece uma fita preta, da largura de dois dedos. E o Capitão mandou aquele
degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre
eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos
degredados mandou que ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram
entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação,
em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como
esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de
palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham
dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta,
em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada
casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada
casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que
lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e
outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde
fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda,
segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e por outras
coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e
formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de
penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza
todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele
disse. E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus. À terça-feira, depois de
comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia,
quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que
chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que
seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que
alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os
nossos e tomavam muito prazer. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois
carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou. Muitos
deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem
a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles
não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas
como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal
maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas
foram, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta, que
quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. O Capitão mandou a dois
degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas
delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os
mandassem. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,
atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos,
grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra.
Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de
Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os
arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por
esse sertão haja muitas aves! Cerca da noite nos volvemos para as naus com
nossa lenha. Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da
feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também
compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por
alguns que – eu creio — o Capitão a Ela há de enviar. À quarta-feira não fomos
em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a
despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à
praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi,
seriam obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o
Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de
noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e
outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os
rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele
alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol.
Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram;
e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram
aquela noite. E assim não houve mais este dia que para escrever seja. À
quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em
terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou
Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido,
puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada
um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente
lacão cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer
que o não bebiam bem. Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles
conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem
revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria
segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço
detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha
tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em
terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando
saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me
que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Traziam
alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer
coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles
vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão
de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas
tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa
vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós,
do que nós andávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por
este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era
esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um
pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto,
tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há
entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos
do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava
encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é
sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles
verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que
aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós,
seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em
nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem
bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção
de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual
praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa
simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como
a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa
Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua
salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram,
nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem
qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem
senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e
as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o
não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. Neste dia, enquanto
ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos
nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem
acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira
que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta
noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de
Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira
vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com
ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como
de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar. E hoje, que é
sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa
bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que
seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o
lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele com
todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a
trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de
procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos
viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos
o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio
obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta
ou mais. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que
primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre
frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos,
assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com
as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando
assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando
levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos,
como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que,
certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até
acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o
Capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, quando
estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles,
homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que
ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para
o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa
de bem; e nós assim o tomamos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de
cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos
pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da
pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a
devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando
para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns
vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse
muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda,
houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre
frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada
em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a
isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
Isto acabado – era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer,
trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança
para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe
uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras. E, segundo que a mim e a
todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã,
senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós
mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E
bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande,
que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier,
não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais
conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os
quais, ambos, hoje também comungaram. Entre todos estes que hoje vieram, não
veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um
pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não
fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a
inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não,
ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos assim perante
eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer. Creio, Senhor, que com estes
dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no
esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque
de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida. Esta terra, Senhor, me
parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o
norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela
bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas
partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima
toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia
parma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito
grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos,
que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro,
nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em
si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e
Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são
muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela
se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse
mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria.
Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto
deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé. E nesta maneira, Senhor,
dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me
alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez
assim pôr pelo miúdo.
FONTE:
MINISTÉRIO
DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro
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