sexta-feira, 14 de junho de 2024

EM 2024 CELEBRAMOS 60 ANOS DO LANÇAMENTO DA OBRA “VERÃO NO AQUÁRIO” DE LYGIA FAGUNDES TELLES, 1964. 2º ROMANCE DA AUTORA.

 



Nesse segundo romance de Lygia Fagundes Telles, a autora aprofunda os temas que tinha explorado em Ciranda de pedra. Mas avança ainda mais no domínio formal do seu ofício. Escrito no início da década de 1960 e publicado em 1964, tempo de transformações profundas no Brasil e no mundo, o livro se afasta da narrativa convencional.

 

SOBRE O LIVRO

De um lado, uma jovem indecisa em tempos de crise de valores. De outro, sua mãe, presença forte e independente. Uma paixão irresistível virá aquecer o conflito entre as duas, num dos romances mais perturbadores da autora.

No verão mais quente e abafado de sua juventude, Raíza oscila entre a memória do pai, que entregara sua vida ao alcoolismo, e a figura um tanto alheia de sua mãe, Patrícia, escritora madura que se dedica à criação de mais um romance. O sentimento de rejeição e rivalidade que se apossa de Raíza aumenta diante da ligação misteriosa de Patrícia com o ex-seminarista André - um rapaz tão tímido quanto atraente. Serão amantes? Forma-se assim, na imaginação angustiada de Raíza, o triângulo amoroso que prenderá o leitor de Verão no aquário da primeira até a última página.

A autora adota o ponto de vista hesitante e aflito de Raíza: experiências, recordações e devaneios se entrecruzam, formando o mosaico desordenado de uma geração colhida pelo desmoronamento da família tradicional, sem que nenhum modelo bem definido viesse ocupar o lugar dela. Assim aquecidas, as paredes do aquário ameaçam se quebrar a qualquer momento.


LEIAM UM TRECHO DA OBRA


Ele veio vindo silenciosamente. Inclinou-se sobre a minha cama. Seus dedos transparentes quase tocaram no meu ombro: “Raíza, Raíza!”. Tinha uma rosa em lugar do rosto, mas o hálito adocicado era de hortelã. Papai, você bebeu outra vez! Tive vontade de dizer-lhe. Foi quando senti um perfume moribundo de rosas e lembrei-me então de que ele tinha morrido. Quis abraçá-lo, paizinho, que saudade, que saudade!… Quando ergui os braços ele já tinha desaparecido. Senti o travesseiro úmido de lágrimas. Contudo, fora um bom sonho. A única coisa estranha era aquela rosa em lugar do rosto, mas assim mesmo cheguei a achar natural vê-lo com a cara desabrochada em pétalas. Voltei-me para a porta por onde ele entrara. Estava fechada. Na escuridão do quarto, só a porta tinha o contorno marcado pela frincha de luz que se filtrava por baixo: era como a tampa do enorme caixão de um enterrado vivo acordando com a noite em redor. E vendo pelas frestas o sol a brilhar lá fora. 

 Acendi o abajur. Marfa agitou-se ao meu lado. — Amanheceu? Dormia seminua, de bruços sobre o travesseiro. Achei- -a grande demais. Branca demais naquela meia nudez. Tive ímpetos de jogá-la para fora da cama. — Precisava beber tanto? Hein? Ela entreabriu as pálpebras pesadas. — Estou podre, compreende? Já é dia? Sentei-me na cama. Agora podia ouvir o ruído da máquina, mamãe estava escrevendo, André ainda não tinha chegado para o chá. André, André. Ele tinha o olhar dourado. Como era possível alguém ter o olhar assim dourado? Era preciso me apressar antes que chegassem a ser amantes, se é que ainda não… Seria concebível uma amizade assim branca? Dentro de alguns anos ela já estaria velha. Teria tido forças para resistir àquele jovem esbraseado e ainda por cima casto?! Casto… Está claro que já se amavam como loucos, os hipócritas. Ela, principalmente, tão distinta, tão correta. E tão devassa. Marfa gemeu afastando as cobertas. — Calor infernal, compreende? Que horas são? — Mais de duas da tarde, minha mãe já está escrevendo. Ela sorriu mansamente. E de mãos postas sob a face, como uma criança que acabasse de rezar, fechou os olhos e dormiu. Na fisionomia, aquela mesma expressão inefável de tio Samuel recortando as damas do baralho. Cobri-lhe o seio nu. Tinha a falsa lucidez dos loucos mas não chegaria a enlouquecer, falava em suicídio mas não chegaria a se matar. Enlacei as pernas. Por que a rosa em lugar do rosto? Voltei-me para o retrato dele em cima da mesinha de cabeceira. Meu pai. Com as mãos enfurnadas nos bolsos do sobretudo, ele sorria no meio de um jardim. Que jardim seria aquele? Uma ligeira névoa velava sua face. Em redor, os arbustos também estavam velados. Que jardim é este? perguntei-lhe quando achei o retrato. 

 Estávamos os três no sótão: ele, tio Samuel e eu. Tio Samuel recortava com sua tesourinha de unhas todas as damas que ia achando no baralho. E meu pai limpava os livros que ia tirando do caixote para colocá-los na estante. Cada livro que punha na prateleira fazia a estante vacilar como um castelo de cartas prestes a se desfazer. Que jardim é este, pai? insisti, mostrando-lhe a fotografia. Ele sacudiu um dicionário. Um verme lustroso caiu de dentro e ficou a se contorcer no chão. Delicadamente meu pai o colheu num pedaço de papel e atirou-o pela janela. Ficou ainda um instante imóvel, como se esperasse ouvir o ruído da queda do verme lá fora. E voltou a ajoelhar-se diante da pilha de livros. Teve um sorriso reticente: “Ah, Raíza, esse jardim… Imagine você que sonhei que estava passeando num jardim completamente desconhecido. Lembro-me de que estava de sobretudo porque o sol não aquecia e ventava muito. Em dado momento alguém, que se escondia atrás de uma árvore, tirou meu retrato. Cheguei a ouvir o clique da máquina. Acordei e não pensei mais nisso. Um dia, folheando um livro, adivinha o que encontrei?”. Aproximei-me até sentir-lhe o hálito de hortelã. “Adivinha o que encontrei?”, repetiu ele num tom tão baixo que tio Samuel teve que tirar os óculos para ouvir melhor. Este retrato? perguntei. Meu pai afastou da fronte uma mecha alourada de cabelo. “Este retrato. Reconheci imediatamente, era o mesmo jardim do sonho. Não é extraordinário?” Calou-se e recomeçou a limpar os livros. Tio Samuel deu um suspiro e recolocando os óculos, continuou a picotar, com a ponta da tesoura, a cabeleira vermelha de uma Dama de Copas. Guardei o retrato no bolso do avental, um avental com morangos bordados por Dionísia. Nesse bolso eu guardava retalhos de seda que tia Graciana punha fora, caixas de fósforos com besourinhos dentro, cromos, pedrinhas… Lá também guardei o retrato enquanto ouvia a voz tremida de tia Graciana na cantiga do cavalheiro do parque: “Oh! o cavalheiro que encontrei no parque…”. 

 O quarto de tia Graciana ficava exatamente debaixo do sótão da nossa antiga casa. Eu poderia descer e pedir para ficar ao seu lado, vendo-a reformar no manequim de pano — um manequim peitudo que parecia usar espartilho — os vestidos do tempo em que ela era ainda mocinha. Se tivesse sorte, poderia surpreendê-la preparando suas misteriosas essências: “Fique quietinha aí, Raíza, que não gosto que descubram meus segredos. Quando o perfume ficar pronto, o primeiro vidrinho será seu”. Era emocionante vê-la indo e vindo com seu avental azul, toda atarefada com as experiências nos tubinhos de líquidos turvos. E se eu conseguisse a fórmula? De vez em quando, ela se voltava e eu então fingia estar contando as flores do papel da parede, umas vagas guirlandas de miosótis que desciam enleados em laçarotes de fitas, como convém ao quarto de uma mocinha. Mas de uma mocinha que passou muitos anos fora e que, ao voltar, continuou como se nada tivesse mudado, cantarolando distraidamente as mesmas cantigas em meio dos móveis carunchados e cortinas comidas por traças. Adiante, ficava a saleta da minha mãe, aquela mãe silenciosa, sempre vestida de branco, uns vestidos tão leves que me faziam pensar na história da sereiazinha que se transformara em espuma. Soube bem mais tarde que herdara aqueles vestidos de uma prima que tinha morrido em meio da promessa que fizera de só vestir roupas brancas até se curar. Eu podia estender-me no chão e ali ficar desenhando nas folhas que ela me atirasse, pena não saber o que era esfinge para então desenhar uma e seria esse o retrato da minha mãe. “É uma esfinge!”, disse dona Leonora à mulher dos tricôs. “Esfinge?…”, repetiu a mulherzinha parando as agulhas no ar. “E o marido?” Dona Leonora bateu com o leque fechado na minha mão martelando as teclas do piano: “Mais atenção, menina, trata-se de uma valsa, são fadas que dançam, pense em fadas!”. E voltando-se para a amiga, no mesmo tom com que me falara das fadas: “É um farmacêutico fracassado, bebe demais, você não sabia? Está sempre escondido no sótão em companhia do irmão, um tipo meio louco que vive cortando coisas, a família inteira é esquisitíssima. Esquisitíssima! A mãe ainda é a única que me inspira confiança, diz que é escritora…”. 

A mulher dos tricôs recomeçou a trabalhar, eu podia ouvir agora o som metálico das agulhas a se buscarem por entre a malha: “Mas escreve o quê?”. E dona Leonora, batendo impaciente com o leque no piano para marcar o compasso: “Quem é que sabe? A mulher é uma esfinge”. Pois eu podia deitar-me aos pés dessa esfinge e ficar desenhando. Podia ainda ir à cozinha para conversar com Dionísia enquanto ela bordava em algum pano os morangos vermelhos, era bom vê-la bordar. Ou polir as caçarolas até refletirem, como num espelho, sua face furiosamente negra. Tudo — o quarto de tia Graciana, a saleta da minha mãe, a cozinha — tudo era mais alegre do que o sótão. Mas era no sótão que eu queria ficar, sentada ao lado do meu pai que para lá subia quando ficava cheirando a hortelã, ao lado de tio Samuel que se refugiava com sua loucura entre os móveis imprestáveis e caixotes de livros nos quais os bichos cavavam galerias. Era ali o meu lugar. E para certificar-me disso, bastava ver o velho espelho apoiado na parede, um espelho redondo todo cheio de manchas porosas como esponjas embebidas em tinta. Nele eu ficava amarela também, eu, meu pai, tio Samuel, todos da mesma cor do cristal doente, enfeixados no círculo da moldura dourada. Então meus olhos se enchiam de lágrimas porque eu tinha medo de que um dia o espelho se quebrasse e nos perdêssemos um do outro. Quem cuidaria do meu pai, delicado como uma folha murcha, dessas que caem ao primeiro vento?! E do tio, balofo como um fruto que apodreceu antes de amadurecer, quem cuidaria dele, quem? No espelho, só no espelho eu via que fazíamos parte da mesma árvore, a árvore detestável que minha mãe aceitava em silêncio e que tia Graciana, distraidamente, fingia não ver. Para que as duas irmãs ficassem em paz — minha mãe com seus livros e minha tia com suas costuras — era preciso que os dois irmãos  ficassem longe de suas vistas. No sótão, por exemplo. Sim, a casa era enorme mas nós três não cabíamos dentro dela. Mas cabíamos dentro do espelho. E éramos felizes quando nos encontrávamos nele embora parecêssemos três afogados na superfície de uma água vidrada. — Por que dormi aqui? — perguntou Marfa. Abri os olhos. O passado desapareceu com a rapidez dos vermezinhos que espiavam e se recolhiam nos furos dos livros do sótão. Encolhi as pernas e apoiei o queixo nos joelhos. “Raíza, Raíza!”, ele chamara. E embora sua face fosse uma rosa, senti o hálito de hortelã. — Você bebeu demais, não podia voltar daquele jeito para o pensionato. Ela sorriu. Espreguiçou-se. — Não podia por quê? As freirinhas me adoram, compreende? É aquela velha história, atração do abismo… Tem uma que é masoquista, quando chego ela vem depressa ao meu quarto e fica me devorando com os olhos, sentindo em mim cheiro de homem. E me faz cada pergunta… Um dia quase desmaiou quando viu uma mancha roxa no meu pescoço. — Não sei como você ainda não foi expulsa. — Nunca, meu bem. Sou para elas uma espécie de penitência, compreende? As outras pensionistas são sonsas, quando passam a noite fora, entram de madrugada com chave falsa e chegam ainda em tempo de assistir à primeira missa. Eu não faço mistério. Pois é esta ovelha a mais amada. A vida inteira lidei com freiras, tenho um jeito todo especial para levá-las direitinho… Quando a Madre Luzia perde a paciência, caio em tamanha depressão que ela chega a recear que eu enlouqueça como meu pai. E me perdoa. É da maior conveniência ter, às vezes, um pai louco. — Sonhei com meu pai. Ela virou-se de bruços na cama. A cabeleira negra espalhou-se no travesseiro. — Pois eu não tenho morto nenhum para sonhar. 

Nem me lembro das feições da minha mãe, sei que tinha cabelos também pretos e que era meio estrábica, como eu, só isso que sei. E se amanhã meu pai morrer, pensarei nele apenas como num homem que me dava medo quando eu era criança mas que agora não me provoca mais nada. Nada. Que me importam os mortos? Eu também vou morrer, compreende? E quero saber agora se alguém vai se lembrar de me pôr no sonho. Acendi um cigarro. Minha mãe me velaria com uma expressão magoada. Mas distante. Não, não precisaria nem de chazinhos nem de amigas, as amigas que por sinal nunca teve. André chegaria em silêncio e ficaria ao lado dela, vigilante. Então ela descansaria no regaço as belas mãos serenas e ficaria me olhando. Apenas olhando. Meu perfil — vago como um fio de linha desenrolado no ar — meu perfil não conseguiria comovê-la. Nem minhas mãos falsamente compungidas. Nem meu corpo apaziguado. Ela me olharia como olhou para meu pai morto. E de tudo o que fui e de tudo o que fiz conservaria apenas a lembrança do reflexo da chama da vela em meus cabelos. De tudo, ficaria apenas aquele efeito de luz no meu cabelo. E que um dia ela poderia aproveitar numa das suas personagens que morreu jovem. — Ele veio me acordar, mas não falamos. Como os mortos são solitários! Meu Deus, como são solitários! Marfa levantou-se e deu alguns passos arrastados em direção à porta. Vestia apenas o paletó do meu pijama. As pernas muito brancas vacilaram. Fez então meia-volta e desabou novamente na cama. — Tenho nojo dos mortos, compreende? Por mais que se ame um morto, é preciso prender a respiração para beijá-lo. Na noite em que tomei aquele tubo, vi bem como Eduardo fez. Nem morta eu estava, nem morta… Quis viver quando vi então que estava morrendo sem ter ninguém ao menos para segurar a mão. — Fez uma pausa. E baixando a voz pesada, um pouco rouca: — Você se lembra daquela história da ânfora de lágrimas? As lágrimas que o príncipe chorou pela princesa foram tantas, tantas que a ânfora até transbordou. 

Pois o anjo que for incumbido de recolher as lágrimas que chorarem por mim terá que se valer de uma fonte, compreende? — A tia faria uma bela mortalha — eu disse. E não pude deixar de rir ao pensar em tia Graciana toda entretida com os retalhos de tafetás e rendas, cosendo com seu ar distraído a mortalha de virgem. Não chegaria a cantar. Mas de vez em quando, ao pregar um alfinete nos panos ajustados no manequim, mentalmente repetiria o estribilho da canção do cavalheiro do parque. E por mim? Quem choraria por mim? Não minha mãe. Nem André, pálido, os maxilares contraídos mas os olhos secos. Nem tia Graciana, com mais vontade de sofrer do que sofrendo realmente, meio assustada com a sensação de alívio que teria ao me ver solucionada, afinal. Sobre o problema resolvido, respingaria um pouco daquelas suas essências, Deus sabe o que faz… Dionísia ficaria pensando na menina que ela levava pela mão nos dias de procissão e choraria sentidamente mas com saudades da menina parecida com a morta ali na frente. Marfa mergulharia numa bebedeira atroz e iria dormir com Eduardo. Ou com Fernando, para distraí-lo. Fernando. Iria com ela? Iria, sim, mas antes ficaria algum tempo defronte do gesso em cima da cômoda, olhando perdidamente para a cabeça de Germaine mas pensando na minha: o carneirinho louro. 

Por essa altura, já estaria com uma pequena ao lado e que ao vê-lo chorar assim, seria muito compreensiva, mas muito mesmo. E chegaria a me elogiar com essa grata ternura que as mulheres têm para com as mortas, as únicas que não constituem nenhum perigo e que nem em sonhos voltarão para ameaçá-las. Ele então pousaria a cabeça no peito da moça. E ficaria vendo as próprias lágrimas escorrerem por entre os seios dela como rios, exatamente, como rios. Em meio da sonolência, ele acharia esse lugar-comum de uma beleza rara, as lágrimas descendo como rios por entre os montes, Meu carneirinho!… E a pequena já começaria a se sentir um carneirinho também. — Queria vomitar — disse Marfa.



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