Naquela
noite singular, o café não recebia clientes comuns, mas visitantes ilustres:
personagens que Machado de Assis concebeu e que, agora, se reuniam frente a
frente, como velhos conhecidos convocados para um banquete imprevisto.
Brás
Cubas, com seu sorriso enviesado, foi o primeiro a se pronunciar:
—
Meus senhores e senhoras, que prazer inusitado! Um defunto autor presidindo um
encontro entre vivos de papel. Não vos parece uma deliciosa ironia?
Capitu,
recostada na cadeira, deixou escapar um olhar que parecia atravessar a sala
inteira. Com voz baixa, mas firme, replicou:
—
Ironia maior é estar eternamente julgada por olhos que nunca souberam ver além
da própria sombra.
Bentinho,
já trêmulo, bateu a xícara no pires:
—
Sempre essa evasiva, Capitu! Até aqui, entre paredes que nem existem, preciso
eu ainda perguntar?
Brás
Cubas riu alto:
—
Ah, Bentinho, o ciúme é o verdadeiro defunto que não se enterra nunca.
Sofia,
elegante, interferiu, olhando para Palha com cumplicidade:
—
Deixem de lado essas paixões gastas. A vida é mais produtiva quando se pensa em
ganhos. Não é, Palha?
Palha,
ajeitando o colete, completou:
—
O amor passa, minha cara, mas os lucros ficam. Quem não aposta nisso perde o
jogo.
O
Conselheiro Aires pigarreou, levantando os olhos de seu diário:
—
Meus amigos, vosso encontro é raro. Vejo aqui um mosaico da própria humanidade:
a paixão desconfiada, a ambição desmedida, a ironia resignada… e, por trás de
tudo, um autor invisível a nos observar.
Capitu
voltou-se a ele com seus olhos insondáveis:
—
Então escreva, Conselheiro, mas escreva com justiça. Porque até hoje ninguém
conseguiu dizer quem eu fui de verdade.
Aires
sorriu com melancolia:
—
Minha senhora, a justiça é uma palavra que, no papel, obedece mais ao leitor do
que à personagem.
O
silêncio caiu sobre a mesa, pesado e doce. Só Brás Cubas ousou quebrá-lo:
—
Pois eu vos digo: não há verdade, senão a que se inventa. E, no fim das contas,
ao vencedor…
Sofia
interrompeu, rindo, como quem rouba a fala alheia:
—
… as batatas.
E
todos, por um instante, até mesmo Bentinho, riram como se partilhassem de um
segredo eterno.
Mas
a paz durou pouco. Bentinho, incapaz de se conter, levantou-se abruptamente.
Seu olhar fixo em Capitu ardia de uma febre antiga:
—
Dize-me, Capitu! Agora, diante de todos, diante de quem quiser ouvir… responde!
Foi ou não foi?
A
sala pareceu prender o fôlego.
Capitu,
sem se abalar, ajeitou lentamente os cabelos e devolveu o olhar com firmeza.
Sua voz soou clara como o estalar de um cristal:
—
Bentinho, não percebes? A dúvida é a tua verdadeira esposa. Foi ela que
deitaste no leito, foi ela que embalaste nos braços. Eu, eu nunca te bastaria.
Brás
Cubas gargalhou, batendo as mãos na mesa:
—
Bravo! A dúvida é a legítima herdeira do matrimônio! Vede, senhores, eis a mais
fiel das companheiras!
Sofia,
entediada com a cena, comentou:
—
Enquanto discutem sombras, o mundo gira. Há quem prefira perder a vida em
perguntas, e quem prefira ganhá-la em negócios.
Palha
completou, erguendo o cálice:
—
Quem aposta na dúvida perde sempre. Eu, ao menos, aposto na vantagem.
O
Conselheiro Aires, conciliador, interveio:
—
Meus caros, cada um de vós carrega em si um espelho partido. Talvez seja essa a
grande lição: a vida é feita de fragmentos, e cabe ao leitor juntá-los, ou não.
Capitu
voltou a falar, desta vez não a Bentinho, mas a todos:
—
Eu nunca pedi para ser julgada. Fui escrita assim: metade verdade, metade
mistério. Se me quereis decifrar, sabei que cada um de vós me enxergará com os
próprios olhos.
De
repente, como se obedecessem a um mesmo impulso, todos ergueram as taças —
Bentinho com as mãos trêmulas, Capitu serena, Sofia e Palha com malícia, Brás
Cubas com ironia, e Aires com melancolia.
Brás
Cubas declarou, com solenidade zombeteira:
—
Pois brindemos, meus caros, ao destino que nos uniu! À dúvida que nos sustenta,
à ambição que nos move, ao amor que nos envenena, e, sobretudo, ao autor
invisível que, de algum canto, nos observa e sorri.
As
taças tilintaram, como se ecoassem não só no Café Capitu, mas na eternidade
literária.
EPÍLOGO
E
quando a última gota de vinho foi sorvida e o eco das taças já não se ouvia, o
Café Capitu começou a dissolver-se como uma miragem. As paredes, antes vivas de
palavras, transformaram-se em sombras. As cadeiras vazias rangiam, como se
quisessem guardar para si o segredo daquela noite impossível.
Brás
Cubas se despediu com um aceno zombeteiro, prometendo narrar tudo, ainda que a
morte já lhe houvesse roubado a pressa. Capitu caminhou altiva, seus olhos de
ressaca ainda lançando enigmas na penumbra. Bentinho a seguiu, sempre dividido
entre o amor e a dúvida. Sofia e Palha desapareceram em sussurros de conchavos.
O Conselheiro Aires fechou o diário, satisfeito por ter anotado não os fatos,
mas os silêncios.
Por
fim, restou apenas a figura discreta de Machado de Assis. Ele fechou o livro
invisível que estivera folheando e, com seu sorriso irônico, deixou escapar em
voz baixa:
—
O que importa não é o que foi dito, mas o que ficará na memória de quem leu.
E
então, leitor, o café se apagou de vez. Você, que ousou atravessar esse portal
da imaginação, retorna agora à realidade, mas talvez com uma estranha sensação:
a de que, em algum lugar secreto da literatura, os personagens ainda conversam,
rindo de nós, como nós rimos deles.
Porque
assim é o legado de Machado: eterno, ambíguo, fascinante e sempre à espera de
um leitor disposto a embarcar nessa viagem.
©
Alberto Araújo