José
Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, de Teresa
Cristina Cerdeira é produto de urna tese de doutoramento orientada pela
professora Cleonice Berardinelli e apresentada em 1987 na Faculdade de Letras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Trata-se
de uma estimulante investigação centrada na análise de três romances de José
Saramago (Levantado do Chão, Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo
Reis), reflete sobre o modo como essas ficções se interligam com a realidade
histórica.
TRECHO
DO LIVRO PARA VOCÊ TER A NOÇÃO DA OBRA
“NÓS
VIVEMOS DENTRO DE UMA POSSIBILIDADE DE VER QUE É NOSSA” Quando publicou o
primeiro romance José Saramago talvez estivesse tomado da mesma ansiedade
dominante dos sentidos de todo aquele que desde muito cedo é movido pelo ímpeto
do literário e almeja ver-se realizado através de um livro. Tinha vinte e
quatro anos e devia contar mais com o espírito afoito da juventude, que o
parcimonioso que só adquirimos na alvorada da maturidade; tanto que aceitou de
prontidão substituir o título da “história de uma senhora viúva” por Terra do
pecado, embora nunca tenha se acostumado a ele. Mais tarde, ele próprio
recordaria o que possivelmente havia se passado nos bastidores para depois
demovê-lo do nome original para a obra: a Editorial Minerva, que assumiria o
interesse da publicação embora os originais tivessem sido entregues à Parceria
António Maria Pereira, tinha A viúva como desinteressante à curiosidade
imediata dos leitores.
É
que apesar de escrever poemas e contos, gesto de toda a década de sua estreia
como escritor e pelo menos as três seguintes, e embora alguns desses primeiros
textos figurassem em revistas e jornais, outro agravante contribuía, segundo a
editora, para o problema de um título inapropriado, porque sem atrativo
comercial: o desconhecimento sobre o autor.
Nos
anseios do jovem escritor devia passar também as flores do primeiro ou do
reconhecimento imediato. Mas, o romance passou despercebido na cena cultural.
Se não saber quem era o seu autor constituía um fator determinante para o
silêncio, uma série de outros elementos terá contribuído para queimar a largada
entusiasta ou o desafio assumido ainda adolescente à roda de amigos. É que
Terra do pecado se mostra uma emulação das leituras realizadas pelo escritor
nas horas noturnas na Biblioteca Municipal do Palácio das Galveias, desde
quando descobre a poesia de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa em quem
primeiro acreditou ser um poeta com existência jurídica comprovada; bebe,
sobretudo, ESTUDOS SARAMAGUIANOS 18 do realismo de Eça de Queirós: na mesma
linha da narrativa de O primo Basílio, por exemplo, aparece aí, uma criada
cujas feições e gestos muito se assemelham à Juliana e o imbróglio do amor
proibido, tal como o de Luísa e Basílio, acontece entre uma jovem e seu
cunhado. Leu-se mais tarde, apressadamente, que esta obra se filiava à linha do
que se praticava em Portugal na época: o neorrealismo. Não bastasse o problema
de corte anacrônico, porque o romance de 1947 vê-se, não tinha nada de
neorrealista, neste período, os nomes fundamentais desse movimento dominavam a
cena portuguesa e, de outra parte, a literatura flertava com o idioleto
surrealista. Este silêncio que se fez em torno da obra de estreia se repetirá
durante longo tempo. José Saramago publicava – não mais romances porque entre o
de estreia e Manual de pintura de caligrafia, que assinala uma retomada nesta
forma literária, se passará mais de três décadas. O retorno, entretanto, era
minguado. Outros problemas agravavam-lhe a ignorância contra sua obra. Era
parte numa sociedade de círculos muito fechados e mantidos à base de certo
status quo financeiro e intelectual, atributos dos quais era, à vista dos
dominantes, um carente. Talvez por isso, quase tudo na biografia do escritor,
por sua condição social, exceto a força de vontade para o literário, se passou
tarde. O que nos leva ainda a conjeturar que Saramago dedicou à literatura
sério interesse – desde sempre; sabia, portanto, que o tempo lhe garantiria a
formação fundamental esperada de todo criador. Na altura da construção de seu
nome para o Prêmio Nobel, apesar de haver vencido essas barreiras, em parte
impostas do mercado, ainda rareava uma bibliografia que garantisse o respaldo
acadêmico sobre sua obra; era comentado pela imprensa, lido e traduzido, mas
não dominava certo receio das universidades em estudá-lo. Parte disso se devia
também ao contexto: foi válido durante muito tempo entre os estudos literários
a ideia de consolidação da obra como garantia para as abordagens acadêmicas, e,
por sua vez, essa estabilidade só se alcançava depois da morte do escritor.
Saramago, portanto, está entre os que contribuíram para a academia se desfazer
Teresa Cristina Cerdeira 19 desta visão. Os tímidos estudos iniciais sobre as
obras mais lidas, traduzidas e comentadas logo abriram lugar e mais
pesquisadores se encontraram interessados no projeto literário e criativo do
escritor. Depois da atribuição do galardão pela Academia Sueca, a condição da
crítica especializada em torno de sua literatura era outra...
UM
POUCO SOBRE A AUTORA
Teresa
Cristina Cerdeira é PROFESSORA TITULAR DE LITERATURA PORTUGUESA da Faculdade de
Letras da UFRJ e Pesquisadora 1B do CNPq. Possui graduação em Letras Português
Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), mestrado em
Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1979), mestrado em Littérature Comparée - Université de Toulouse II - Le
Mirail (1974) e doutorado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1987). Atua em Literatura Portuguesa , com ênfase
nos séculos XX e XXI, sobretudo em temas relaçionados à intertextualidade,
relações intersemióticas, autobiografia, literatura e história. É autora dos
seguintes livros: JOSÉ SARAMAGO: ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO UMA SAGA DE
PORTUGUESES (Dom Quixote, Lisboa, 1989), O AVESSO DO BORDADO (Caminho, Lisboa,
2000), e A TELA DA DAMA (Presença, Lisboa, 2013). A MÃO QUE ESCREVE (Rio de
Janeiro. Casa da Palavra, 2014). Organizadora e autora do livro de ensaios
coletivos sobre a obra de Helder Macedo - A EXPERIÊNCIA DAS FRONTEIRAS ( EdUU,
2002) e co-organizadora de dois livros de homenagem: CLEONICE CLARA EM SUA
GERAÇÃO (Ed UFRJ,) e A PRIMAVERA TODA PARA TI (PRESENÇA, LISBOA, 2004). Foi
Regente da CÁTEDRA JORGE DE SENA (2005-2011) e editora da Revista METAMORFOSES
(números 7, 8, 9, 10.1. 10.2. 11.1, 11.2, 12.1, 12.2).
CLICAR NA IMAGEM ACIMA OU NO LINK ABAIXO PARA ASSISTIR A ENTREVISTA DA AUTORA TERESA CRISTINA CERDEIRA DA SILVA:
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