quarta-feira, 6 de abril de 2022

AINDA REVIVÊNCIAS DE LYGIA - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO





AINDA REVIVÊNCIAS DE LYGIA – TEXTO DE DALMA NASCIMENTO

 

 

Prezados amigos, já lhes contei em postagem anterior  que tive o privilégio de ter, no Congresso Internacional de Cali (Colômbia) junto a mim, a grande escritora daqueles contos que tanto me falavam à alma. Eis alguns fragmentos tão relevantes do SER de Lygia.

 

O Congresso colocou-me no  requintado apartamento a ela destinado. Subimos juntas e no quarto havia duas camas bem posicionadas, mas  uma delas de melhor localização Ali, sua sutil delicadeza de novo se manifestou, ao deixar comigo a escolha das camas, o que evidentemente não aceitei. Em pequeninos gestos ou falas – aqueles nadas” submersos, mas que dizem tudo – a escritora, com singela leveza, demonstrava a finura de sua educação.

 

Prática e rápida pelas costumeiras viagens, Lygia logo começou a arrumar seus pertences. De sua pequena bagagem foram surgindo roupas de excelente corte, mas nada em excesso. Tudo bem dosado: da roupa de gala ao traje esporte. Eu, novel viageira, transportava enorme e pesada mala. Ao dividir os cabides do armário, vendo tantas roupas minhas sobre a cama, ofertou-me grande parte deles, ajudando-me também a pendurar as toaletes mais finas.

 

Já era tardinha. Desci para conhecer detalhes do majestoso hotel. Ela preferiu descansar para o solene jantar de abertura do Congresso. No lobby repleto de rumores, expoentes internacionais da narrativa preenchiam seus dados na recepção. Soube depois ser a delegação da Argentina. Mais distante, sentado numa poltrona da entrada, reconheci, pela lembrança de uma foto, o mexicano Juan Rulfo, o autor de ‘Pedro Páramo’, livro de que eu tanto gostara, lido em tradução brasileira. Depois, no decorrer do congresso, ele me ofertou seu livro na língua-mãe com expressiva dedicatória.

 

Maravilhada diante de tudo, retornei ao quarto. Era o momento de preparar-me para o solene jantar. Nova surpresa de Lygia. Ela, com a arrumadeira do hotel, por medida de higiene, flambara a banheira. Por fim, elegantemente vestidas – já íntimas amigas – descemos, ambas de longos, e aguardamos Clarice no lobby para, juntas, entrarmos no deslumbrante salão.

 

A semana do Congresso, politicamente efervescente, foi riquíssima de acontecimentos e de intercâmbios humanos e sociopolíticos. Concorridíssimas foram as sessões no amplo e majestoso anfiteatro da Universidade de Cali. Boa parte dos escritores das três Américas estava em Cali, lamentando-se a ausência de Gabriel Garcia Marques e de Nélida Piñon, já fulgurante no horizonte nacional.

 

O Congresso representou para mim uma reviravolta intelectual. Em decorrência da ditadura militar no Brasil, eu escrevera minha dissertação de mestrado, justamente sobre Vidas secas, obra politicamente engajada do mestre Graciliano Ramos à luz dos pressupostos ontológicos do filósofo Martin Heidegger. Nada, portanto de exegeses sociais proibidas pelo regime ditatorial.

Mas, em Cali, que diferença! Cada palestrante ou conferencista dava o seu recado político a partir da nova literatura da América Latina, sendo sempre muitíssimo aplaudido. À noite, conforme relatei em post anterior, conversávamos muito. Entrávamos em reflexões metafísicas, mescladas a sociais, analisando a eterna problemática de a humanidade estar inerme diante das forças transcendentes.

 

Conscientizei-me do domínio eurocêntrico autocrático a obscurecer o valor dos povos latino-americanos. Percebi o valor da diferença das civilizações ameríndias no aspecto mágico da nova literatura que se produzia nos países ibero-americanos.

 

Com grande mestria, ela transformou em letras o panorama de uma época em seu livro  « As Meninas » verdadeiro documento histórico da ditadura militar no Brasil e dos países ibero-americanos em situações similares. Publicado numa época da transição do governo de Médici para o de Geisel, ela foi corajosa. Captou as pulsações de momentos cruciais da História do Brasil e driblou a censura.

 

Retornei da Colômbia impregnada da literatura que desabrochava e esplendia nas Américas. Aprendi nas sessões do Congresso e, sobretudo com as fecundas conversas com Lygia, o que – hoje é mais que óbvio para todos, mas em 1974 ainda era enevoado para mim –, como a nova literatura latino-americano lançava o grito de liberdade do neoimperialismo europeu.

 

Minha nova amiga trouxe para nossa conversa noturna o pioneirismo ideológico e libertário de Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Enfatizava que ambos não assumiram atitude parasitária diante do Velho Mundo, mas valorativa das "coisas nossas''. Desde então comecei a pensar que Macunaíma teria sido um livro precursor do realismo mágico ou fantástico segundo a nova visão e as diretrizes discutidas no Congresso.

 

Contei-lhe que meses antes, no Brasil, eu fizera uma palestra na UFRJ focalizando Macunaíma em cotejo com os mitos gregos. Lygia me estimulou a escrever outro texto sobre o livro de Mário segundo meu novo olhar e a publicá-loMas ainda sem base teórica para desenvolvê-lo, aguardei momento oportuno.

 

Com tal ideia dentro de mim, passaram-se os anos. Em 2008, interessada por adaptações cinematográficas, li Literatura através do cinema, de 2005, de Robert Stam, professor titular da Universidade de Nova Iorque. Na página 415, no subcapítulo, ele destaca em caixa alta: “A “MÃE” DO REALISMO MÁGICO: MACUNAÍMA”, e complementa já no primeiro parágrafo: “embora raramente reconhecido como tal”. Hoje me arrependo de não ter seguido o conselho de Lygia para divulgar meu pensamento, apesar de ainda embrionário. Foi mais uma lição que dela recebi. Não deixar de divulgar um texto para consignar nossa presença.

 

Quanto à cobertura do Congresso para o Jornal de Brasília, redigi enorme reportagem, – hoje preciosa para este meu relato – sobre problemas políticos e sociais da América Latina. Estávamos no regime militar brasileiro da ditadura de 1964 -1985, embora, com a entrada do general Ernesto Geisel, os ânimos já começassem, muito de leve, a minorar pressões e prisões. Porém ainda era jogo duro. Na matéria jornalística mencionei a díspar situação daquela cidade na Colômbia: luxo em excesso e miséria gritante pelas ruas, tóxicos vendidos livremente nas bancas de jornais. Escrevi, sem reservas, detalhando minúcias das ocorrências do país e dos debates. No entanto, o texto não foi publicado e perdi até os vínculos com o periódico. Torno a dizer: estávamos em 1974.

 

 





 

Um comentário:

  1. Maravilhoso texto envolvendo grandes escritoras, Lygia Fagundes Teles e Dalma Nascimento.

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