AINDA
REVIVÊNCIAS
DE LYGIA – TEXTO DE DALMA NASCIMENTO
Prezados
amigos, já lhes contei em postagem anterior que tive o privilégio de ter,
no Congresso Internacional de Cali (Colômbia) junto a mim, a grande escritora
daqueles contos que tanto me falavam à alma. Eis alguns fragmentos tão
relevantes do SER de Lygia.
O
Congresso colocou-me no requintado apartamento a ela destinado. Subimos
juntas e no quarto havia duas camas bem posicionadas, mas uma delas de
melhor localização Ali, sua sutil delicadeza de novo se manifestou, ao deixar
comigo a escolha das camas, o que evidentemente não aceitei. Em pequeninos
gestos ou falas – aqueles “nadas”
submersos, mas que dizem tudo – a escritora, com singela leveza, demonstrava a
finura de sua educação.
Prática
e rápida pelas costumeiras viagens, Lygia logo começou a arrumar seus
pertences. De sua pequena bagagem foram surgindo roupas de excelente corte, mas
nada em excesso. Tudo bem dosado: da roupa de gala ao traje esporte. Eu, novel
viageira, transportava enorme e pesada mala. Ao dividir os cabides do armário,
vendo tantas roupas minhas sobre a cama, ofertou-me grande parte deles,
ajudando-me também a pendurar as toaletes mais finas.
Já
era tardinha. Desci para conhecer detalhes do majestoso hotel. Ela preferiu
descansar para o solene jantar de abertura do Congresso. No lobby repleto de
rumores, expoentes internacionais da narrativa preenchiam seus dados na
recepção. Soube depois ser a delegação da Argentina. Mais distante, sentado
numa poltrona da entrada, reconheci, pela lembrança de uma foto, o mexicano
Juan Rulfo, o autor de ‘Pedro Páramo’, livro de que eu tanto gostara, lido em
tradução brasileira. Depois, no decorrer do congresso, ele me ofertou seu livro
na língua-mãe com expressiva dedicatória.
Maravilhada
diante de tudo, retornei ao quarto. Era o momento de preparar-me para o solene
jantar. Nova surpresa de Lygia. Ela, com a arrumadeira do hotel, por medida de
higiene, flambara a banheira. Por fim, elegantemente vestidas – já íntimas
amigas – descemos, ambas de longos, e aguardamos Clarice no lobby para, juntas,
entrarmos no deslumbrante salão.
A
semana do Congresso, politicamente efervescente, foi riquíssima de
acontecimentos e de intercâmbios humanos e sociopolíticos. Concorridíssimas
foram as sessões no amplo e majestoso anfiteatro da Universidade de Cali. Boa
parte dos escritores das três Américas estava em Cali, lamentando-se a ausência
de Gabriel Garcia Marques e de Nélida Piñon, já fulgurante no horizonte
nacional.
O
Congresso representou para mim uma reviravolta intelectual. Em decorrência da
ditadura militar no Brasil, eu escrevera minha dissertação de mestrado,
justamente sobre Vidas secas, obra politicamente engajada do
mestre Graciliano Ramos à luz dos pressupostos ontológicos do filósofo Martin
Heidegger. Nada, portanto de exegeses sociais proibidas pelo regime ditatorial.
Mas,
em Cali, que diferença! Cada palestrante ou conferencista dava o seu recado
político a partir da nova literatura da América Latina, sendo sempre muitíssimo
aplaudido. À noite, conforme relatei em post anterior, conversávamos muito. Entrávamos
em reflexões metafísicas, mescladas a sociais, analisando a eterna problemática
de a humanidade estar inerme diante das forças transcendentes.
Conscientizei-me
do domínio eurocêntrico autocrático a obscurecer o valor dos povos
latino-americanos. Percebi o valor da diferença das civilizações ameríndias no
aspecto mágico da nova literatura que se produzia nos países ibero-americanos.
Com
grande mestria, ela transformou em letras o panorama de uma época em seu
livro « As Meninas » verdadeiro documento histórico da ditadura
militar no Brasil e dos países ibero-americanos em situações similares.
Publicado numa época da transição do governo de Médici para o de Geisel, ela
foi corajosa. Captou as pulsações de momentos cruciais da História do Brasil e
driblou a censura.
Retornei
da Colômbia impregnada da literatura que desabrochava e esplendia nas Américas.
Aprendi nas sessões do Congresso e, sobretudo com as fecundas conversas com
Lygia, o que – hoje é mais que óbvio para todos, mas em 1974 ainda era enevoado
para mim –, como a nova literatura latino-americano lançava o grito de
liberdade do neoimperialismo europeu.
Minha
nova amiga trouxe para nossa conversa noturna o pioneirismo ideológico e
libertário de Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Enfatizava que ambos não
assumiram atitude parasitária diante do Velho Mundo, mas valorativa das
"coisas nossas''. Desde então comecei a pensar que Macunaíma teria
sido um livro precursor do realismo mágico ou fantástico segundo a nova visão e
as diretrizes discutidas no Congresso.
Contei-lhe
que meses antes, no Brasil, eu fizera uma palestra na UFRJ focalizando Macunaíma em
cotejo com os mitos gregos. Lygia me estimulou a escrever outro texto sobre o
livro de Mário segundo meu novo olhar e a publicá-lo. Mas ainda sem
base teórica para desenvolvê-lo, aguardei momento oportuno.
Com
tal ideia dentro de mim, passaram-se os anos. Em 2008, interessada por
adaptações cinematográficas, li Literatura através do cinema, de
2005, de Robert Stam, professor titular da Universidade de Nova Iorque. Na
página 415, no subcapítulo, ele destaca em caixa alta: “A “MÃE” DO REALISMO
MÁGICO: MACUNAÍMA”, e complementa já no primeiro parágrafo: “embora
raramente reconhecido como tal”. Hoje me arrependo de não ter seguido o
conselho de Lygia para divulgar meu pensamento, apesar de ainda embrionário.
Foi mais uma lição que dela recebi. Não deixar de divulgar um texto para
consignar nossa presença.
Quanto
à cobertura do Congresso para o Jornal de Brasília, redigi
enorme reportagem, – hoje preciosa para este meu relato – sobre problemas
políticos e sociais da América Latina. Estávamos no regime militar brasileiro
da ditadura de 1964 -1985, embora, com a entrada do general Ernesto Geisel, os
ânimos já começassem, muito de leve, a minorar pressões e prisões. Porém ainda
era jogo duro. Na matéria jornalística mencionei a díspar situação daquela
cidade na Colômbia: luxo em excesso e miséria gritante pelas ruas, tóxicos
vendidos livremente nas bancas de jornais. Escrevi, sem reservas, detalhando
minúcias das ocorrências do país e dos debates. No entanto, o texto não foi
publicado e perdi até os vínculos com o periódico. Torno a
dizer: estávamos em 1974.
Maravilhoso texto envolvendo grandes escritoras, Lygia Fagundes Teles e Dalma Nascimento.
ResponderExcluir