MAIS HISTÓRIAS DE PAPAI... TEXTO DE DALMA NASCIMENTO
No
meu tempo de menina, em Barra do Piraí, eram comuns residências, mesmo simples,
com jardinzinhos, quintais no fundo e o indefectível porão, esconderijo dos bagulhos
domésticos. Adolescente, morei numa casa
assim na Rua Franklin de Morais e dela guardo preciosas lembranças. Varanda em L, ornada de plantas, – ah! O perfume da dama da noite! - quintal com
árvores, coradouro de latas para clarear roupas, terreno terminando no Rio
Piraí, ainda com água formando uma pequenina praia com areia do quintal.
Mas
para mim, o grande sortilégio da casa residia no porão. Mafuá arrumado com
tanta coisa misturada que meus olhos acordantes à vida, maravilhavam–se ainda no
estreito mundo. Papai era o dono daquele recanto de sortilégios para mim.
Sempre com a chave guardada, aquela porta, quando aberta era o jardim das
delícias. Mas raramente ele a visitava e
eu, sempre escondida espreitando, sempre esperando acontecer.
Um
belo dia, papai trouxe de um caixote do porão da casa, uma
antiga revista, já meio sépia e rasgada, escrita em francês, fácil
leitura para ele traduzir, craque em francês com uma ilustração lindíssima: uma
bela jovem, de pureza angelical,
acariciava um passarinho tendo ao
lado um cavalo
branco com um cone espiralado na testa.
O fundo da cena, de vermelho vivo com pequeninas flores salpicadas,
mostrava uma paisagem campestre. Papai, sempre entendido em mitos, ficou sem
saber me dar explicações. Absorvi
aquela cena delicada
e densa de sugestões sombrailuminando-se
em mim por várias décadas.
Passaram
se os tempos. A vida rodou, a Idade Média, entre vários outros temas, tornou-se objeto de meus estudos.
Numa ida à França para um
congresso em Rennes
sobre Literatura Brasileira, antes de partir para Bretanha, onde ocorreria o evento na Universidade da Haute Bretagne, desvencilhei-me do grupo de colegas. E, em Paris, sozinha, ali
pertinho da Sorbonne, está o Musée de Cluny, construção medieval sobre termas
romanas. Conhecida agora, estudiosa que
sou, a tradição por intermédio de livros. Sabia que havia alas dedicadas à Antiguidade
Clássica e outras à IDADE MÉDIA. Resolvi
entrar.
Extasiei-me.
Percorri sala e sala, subi escadas, percorri corredores, iluminada por dentro
pelos esplendores das dependências medievais.
De
repente, estou num enorme salão redondo com as paredes circundadas de
telas. E lá estava ela, a minha
amiguinha desconhecida na infância me
olhando com seu cavalo branco. Era a imagem sonhada na meninice.
A mesma
dama, em várias posições circundadas por outros bichos. Era a dama, que eu em
garota, sonhara ser, etérea e medieval. Enorme, a emoção. Volta direta ao
passado. O segredo desvelara-se. Era “La dame à la licorne”, a olhar-me na
parede do salão redondo agora meio
vazio, naquela manhã de Paris meio outonal. Pouco turista ainda em torno.
Esquecida
de minha posição de adulta, e já professora universitária, voltei–me à infância.
Havia uma escadinha para a assistência contemplar. Passei por elas. E deitei inteiramente
no chão, de mármore e arquitetonicamente redondo para melhor contemplar as seis
tapeçarias de “La dame à la licorne.”
Esquecida
de tudo, dos turistas já em torno chegando, estava em êxtase. Longo foi o tempo
a contemplar. A cena do passado da revista tão suja no porão da minha Barra me
veio à mente. Grande foi o tempo a contemplar as seis tapeçarias. Até que, após
longo tempo um guarda do museu, vendo–me deitada no mármore, uma senhora de
calça Lee no chão, convidou–me gentilmente a levantar.
Voltando
ao Brasil, Papai já falecera. Não soubera
do reencontro com o passado. Mas contei aos amigos e aos alunos a cena, com
todos os detalhes. Soube depois, que uma das minhas alunas, cujo nome não vou
declinar por respeito – mas tudo, tudinho que estou a contar não é autoficção.
Em minha homenagem repetira a cena.
Mas
essa história não terminou aí. Ainda “deu panos pra manga” como diz a gíria. A
parte melhor só em outro número do “Focus Portal Cultural”. Esperem...
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