domingo, 3 de abril de 2022

MEU ADEUS À AMIGA LYGIA – TEXTO DE DALMA NASCIMENTO



MEU ADEUS À AMIGA LYGIA – TEXTO DE DALMA NASCIMENTO

 

Ao esculpir a vida com palavras,

Lygia traduziu também a eterna dimensão do ser humano

Dalma Nascimento.

 

 

Querida LYGIA, hoje, vendo-a em pensamentos coberta de flores. Flores das quais você tanto gostava, quando as recebias, matinalmente, de um admirador, durante o Congresso Internacional de Cali. Lembro-me de como você ficava feliz e após, colocava uma das camélias recebidas na lapela e seguia para tomar o saboroso café da manhã, engalanada com a flor.

Hoje, recordo de tanta coisa, quando ficamos juntas no mesmo quarto do Internacional Hotel de Cali. Daquele especial encontro que aconteceu em 1974, em Cali, na Colômbia, o IV Congresso Internacional da Nova Literatura Latino-Americana numa incandescente atmosfera em que o poético e o político se deram as mãos. Do evento, participaram expressivos escritores das três Américas, visando a discutir o intercâmbio da literatura em produção nos territórios americanos. Era o momento do grande “boom” do realismo mágico ou realismo maravilhoso, ou fantástico (conforme o crítico). Era a valorização da escrita dos produtores latino-americanos. Do Brasil, foram convidados Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Walmir Ayala. À época eu era correspondente do suplemento da parte literária do “Jornal de Brasil”. Fui destinada para participar do Congresso, que me incluiu na comitiva brasileira.

Relembro, à noite, já no quarto, quase sempre entrando pela madrugada, conversava muito com você. Trocávamos ideias sobre os mais diversos assuntos. Analisávamos a apresentação dos conferencistas do dia. Relatava-me as suas viagens internacionais junto com o seu marido, o grande crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes. Com ele, fui à Pérsia sendo recebida com as devida honras, no Palácio do Xá, acompanhado de sua terceira esposa Farah Diba.

Contava-me também de seu interesse pelo cinema. Discorria sobre as mudanças da Nova Mulher e a coragem que tivera ao sair da mansão de seu primeiro marido, pelo amor de Paulo Emílio. Sempre corajosa, em plena ditadura militar, você sempre valente, driblou a censura, quando publicou, em 1973, a consagradora obra “As meninas”, texto inspirado, conforme me contou, na vida das amigas de seu único filho Goffredo da Silva Telles Neto. Na ocasião de nossa estada em Cali, ele se encontrava na Europa.

De fato, “As meninas” fora sucesso no Brasil, ganhou o prêmio Jabuti, em 1975. No dia do Congresso dedicado à nossa pátria, infelizmente, não assisti à sua palestra marcada para o primeiro horário da manhã. Fiquei com Clarice que falaria à tarde. Contudo soube que você com encantadora fala dominou a audiência. Inúmeras foram às perguntas da plateia, sobretudo referentes à literatura engajada. Porém você soube brilhantemente, passar sua mensagem social e responder à altura. Centrou-se nas características psicológicas e intimistas das personagens Lorena, Ana Clara e Lia, de “As meninas”.

Ainda recordo, das mensagens trocadas entre nós. E que mais marcou foi quando você, na madrugada da partida para o Brasil. Eu saí com a comitiva para um passeio noturno. No passeio, vi moradores de rua em profusão, em verdadeiro descompasso com a grandeza do Hotel. Já era madrugada quando chegamos. E o voo da comitiva brasileira estava marcado para as seis da manhã. Subi esbaforida para ainda fazer minha mala. No quarto: Surpresa. Toda a minha bagagem estava arrumadinha na mala. Pela doce e sutil magia de Lygia.

Recordo-me também, da última vez em que estivemos juntas para conversar, como nos antigos tempos, foi numa tarde na Academia Brasileira de Letras. Você acabava de publicar “Horas Nuas” e me enviara um exemplar logo após seu lançamento. Combinamos, então, um encontro para trocarmos ideias numa lanchonete bem simples em frente à Academia, local mais fácil para nós duas. Você participaria do chá das cinco da ABL e eu teria ali perto condução para voltar para a casa, em Niterói.

Trocamos muitas mensagens, tantas delicadas e gentis. Eis, algumas partes das correspondências entre Dalma e Lygia:

LYGIA FAGUNDES TELLES: Dalma, bons dias! Tudo bem aí? Não, não esqueci, é claro: assim que cheguei mandei-lhe através do malote diário da Editora José Olympio (R. Marquês de Olinda, 12 – Botafogo – Telefone, 266-0662) AS MENINAS e CIRANDA DE PEDRA, os únicos livros de que dispunha no momento. Houve, contudo uma omissão da minha parte no endereço: não indiquei Niterói e apenas Rio. Mas assim que recebi seu recado, falei com a secretária que avisou a editora. Isso na hipótese de lá terem se confundido no tocante a essa omissão. Isso já faz mais de umas dezenas de dias, naturalmente nesta altura você já recebeu o pacote. Caso contrário, por favor, telefone para a editora e conte o que houve a Beth (filha do meu editor) e ela providenciará novos exemplares, a dedicatória farei depois, certo? Porque se até agora os livros não apareceram é porque não vão aparecer mais, se perderam aí pelo mundo. Que é enorme, você viu como a gente ficou voando só para ir aqui mesmo na América... – Essa viagem foi ótima. Tudo somado, gostei muito. Conhecer. Ver. Aprofundar. Muito carinho. Lygia.

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LYGIA FAGUNDES TELLES: “Dalma querida, sua carta, seu telefonema – tudo muito lindo! Meus melhores votos na aurora deste Ano Novo! O vermelho da vida! Abraços de carinho. Até um dia! Lygia.”

Adeus Lygia, vá com Deus. Até breve. Saudades eternas. DALMA NASCIMENTO.












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