quinta-feira, 21 de abril de 2022

“SEGREDOS DOS MITOS CONTADOS POR MEU PAI” - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO

 


Existem momentos mágicos na vida da gente, que, como bolas coloridas de sabão, estouram e só são lembrados quando os anos já se debandaram. Na hora mesmo, não os seguramos com os dedos. Alguns partiram levando minhas ilusões de menina. Mas outros ficaram grudados em mim quais tatuagens escondidas à espera de um dia ressurgirem.

Na minha infância, como não havia televisão, à noite, meu pai contava histórias, enquanto mamãe corrigia cadernos, preparava aulas ou cerzia meias. Eu ouvia, encantada, lendas de amores despedaçados, de traições humanas. Fascinava-me com o mundo mágico de bichos fantásticos do folclore local e de terras estrangeiras. Vivia curiosa por aqueles relatos, em que meu papai, livre pensador, ia-me dissecando a nossa humana condição misturada àquelas lendas.

Desde menina histórias de mitos psicológicos e de animais fabulosos imantavam-me a fantasia. Ouvia, fascinada, lendas que depois descobri vindas do universo dos gregos. Vivia enfeitiçada por aqueles relatos, embora impossibilitada de abrir a coleção de livros enormes, grossos e largos – seis ao todo, do dicionário mitológico da estante da casa de meus pais.

Aqueles tomos proibidos ficavam me atraindo ali junto ao piano. Mamãe dizia serem suas páginas pornográficas pelas ilustrações dos deuses do Olimpo exibindo suas partes pudentes. Obediente como eram as crianças de outrora, eu jamais os abri. Mas sorrateira, pedia a papai, iconoclasta poeta, que contasse os segredos daqueles calhamaços encadernados de cinza, enevoando-me a mente.

Menina ainda eu já soubera – verdade, mesmo! Daí meu interesse pelos mitos quando adulta –, do infanticídio de Medeia para ferir o amor de Jasão.  Do parricídio de Édipo, filho de Laio, e do seu casamento com a mãe, Jocasta. Das viagens dos argonautas a Cólquida, em busca do tosão dourado. De Orfeu a retirar Eurídice das cavernas do Hades. Dos nomes e dons das nove Musas filhas de Mnemosyine. Do desafio de Antígona diante de Creonte, da sedução de Fedra enfeitiçando Hipólito, o enteado. De Eletra e Orestes, filhos de Agamenon e Clitemnestra, e do amor desta por Egisto.

Sísifo, subindo a montanha com a pedra, deixando-a cair e retornando dia a dia por todo o sempre, até agora ainda vive em mim. Tanto que, agora adulta, com frequência em meus livros agradeço aos companheiros do trajeto, que me ajudam a carregar a pedra na escalada ou tirar a outra, a tal do Drummond, que há no meio do caminho. E todas estas histórias me vieram dos relatos de papai.

Foi ele quem primeiro me explicou que somos uma mistura de Sísifo, gente tenaz, e de Fênix, bicho que renasce da adversidade. E que os mitos dizem verdades profundas. Por isso, eternos, mesmo com outras vestimentas. Mas, naquele tempo, para o meu eu, de garota, aquilo tudo me parecia meio nebuloso, apesar de mexer com a alquimia interna do meu inconsciente.

Entretanto, para acolchoar as trágicas lembranças, ele me falava também dos animais mitológicos. Ah! o encanto do canto das sereias. Floreava os detalhes da cera nos ouvidos para Ulisses nada ouvir também amarrado nos mastros do navio. Já Fênix, ressurgindo das cinzas, para eu entender melhor, ele comparava às estrelinhas prateadas das bombinhas de São João, vendidas na loja de miscelâneas Casa Mansur, de Barra do Piraí, minha cidade natal. E eu via a cena.

 Você, leitor amigo, conhece a história do unicórnio da Dame à la Licorne?  E do basilisco?

Então, aguardem estas histórias e outras fantásticas do papai...

 

 

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