Existem momentos mágicos na
vida da gente, que, como bolas coloridas de sabão, estouram e só são lembrados
quando os anos já se debandaram. Na hora mesmo, não os seguramos com os dedos.
Alguns partiram levando minhas ilusões de menina. Mas outros ficaram grudados
em mim quais tatuagens escondidas à espera de um dia ressurgirem.
Na minha infância, como não
havia televisão, à noite, meu pai contava histórias, enquanto mamãe corrigia
cadernos, preparava aulas ou cerzia meias. Eu ouvia, encantada, lendas de
amores despedaçados, de traições humanas. Fascinava-me com o mundo mágico de
bichos fantásticos do folclore local e de terras estrangeiras. Vivia curiosa
por aqueles relatos, em que meu papai, livre pensador, ia-me dissecando a nossa
humana condição misturada àquelas lendas.
Desde menina histórias de mitos
psicológicos e de animais fabulosos imantavam-me a fantasia. Ouvia, fascinada,
lendas que depois descobri vindas do universo dos gregos. Vivia enfeitiçada por
aqueles relatos, embora impossibilitada de abrir a coleção de livros enormes,
grossos e largos – seis ao todo, do dicionário mitológico da estante da casa de
meus pais.
Aqueles tomos proibidos ficavam
me atraindo ali junto ao piano. Mamãe dizia serem suas páginas pornográficas
pelas ilustrações dos deuses do Olimpo exibindo suas partes pudentes. Obediente
como eram as crianças de outrora, eu jamais os abri. Mas sorrateira, pedia a
papai, iconoclasta poeta, que contasse os segredos daqueles calhamaços
encadernados de cinza, enevoando-me a mente.
Menina ainda eu já soubera –
verdade, mesmo! Daí meu interesse pelos mitos quando adulta –, do infanticídio
de Medeia para ferir o amor de Jasão. Do
parricídio de Édipo, filho de Laio, e do seu casamento com a mãe, Jocasta. Das
viagens dos argonautas a Cólquida, em busca do tosão dourado. De Orfeu a
retirar Eurídice das cavernas do Hades. Dos nomes e dons das nove Musas filhas
de Mnemosyine. Do desafio de Antígona diante de Creonte, da sedução de Fedra
enfeitiçando Hipólito, o enteado. De Eletra e Orestes, filhos de Agamenon e
Clitemnestra, e do amor desta por Egisto.
Sísifo, subindo a montanha com
a pedra, deixando-a cair e retornando dia a dia por todo o sempre, até agora
ainda vive em mim. Tanto que, agora adulta, com frequência em meus livros
agradeço aos companheiros do trajeto, que me ajudam a carregar a pedra na
escalada ou tirar a outra, a tal do Drummond, que há no meio do caminho. E
todas estas histórias me vieram dos relatos de papai.
Foi ele quem primeiro me
explicou que somos uma mistura de Sísifo, gente tenaz, e de Fênix, bicho que
renasce da adversidade. E que os mitos dizem verdades profundas. Por isso,
eternos, mesmo com outras vestimentas. Mas, naquele tempo, para o meu eu, de
garota, aquilo tudo me parecia meio nebuloso, apesar de mexer com a alquimia
interna do meu inconsciente.
Entretanto, para acolchoar as
trágicas lembranças, ele me falava também dos animais mitológicos. Ah! o
encanto do canto das sereias. Floreava os detalhes da cera nos ouvidos para
Ulisses nada ouvir também amarrado nos mastros do navio. Já Fênix, ressurgindo
das cinzas, para eu entender melhor, ele comparava às estrelinhas prateadas das
bombinhas de São João, vendidas na loja de miscelâneas Casa Mansur, de Barra do
Piraí, minha cidade natal. E eu via a cena.
Você, leitor amigo, conhece a história do
unicórnio da Dame à la Licorne? E do
basilisco?
Então, aguardem estas histórias
e outras fantásticas do papai...
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