Uma análise literária da
obra RECONSTITUINDO CASTELOS DE
AREIA da ESCRITORA DYANDREIA PORTUGAL
Iluminada
por seu peculiar estilo fluente e poético, reino de múltiplos sentidos, a
escritora-jornalista Dyandreia Valverde Portugal retorna à cena literária com
seu habitual fazer artístico rico de densidade humana, após o sucesso das
fascinantes páginas de CONVERSA (A)FIADA. Lá, na singular leveza da crônica,
com a palavra afiada e bem afinada, ela troca ideias com o leitor sobre fatos
atuais e molha sua pena na alma ao falar de si, do Ser Mulher, contudo, sem
mistificar sua vida, com apelos sexuais ou empoderamentos misândricos.
Sempre
ampliando horizontes intelectuais, essa corajosa escritora – sem fronteiras –
deixou, por enquanto, a escrita monotemática da crônica e aventurou-se pelos
amplos fluxos politemáticos do romance, nestas 437 páginas de RECONSTITUINDO
CASTELOS DE AREIA. Reaparece, com êxito, numa composição bem mais complexa, com
grande número de personagens, várias células dramáticas que se entremeiam
consteladas em torno de um núcleo gerador. No caso, centrado numa fascinante
história de amor vivida por uma bela mulher independente, consciente de seus
atos, culta e sensível, diretora de um grande colégio, perfeito paradigma da
Mulher do século XXI.
Porém,
Dyandreia Portugal na construção da história não se ateve apenas à questão do
feminismo. Foi mais longe. Embora mantivesse essa temática, corajosamente optou
por estruturar a trama sustentada com as vigas mestras do romance policial,
composição nada fácil para uma estreante no gênero. Tal modalidade estética
exige do escritor maior prática narratológica, intensa capacidade imaginativa
para construir e desconstruir pistas, criar situações insólitas com trilhas
enganadoras, além da rápida destreza para instaurar inesperados lances. E,
sobretudo ter a capacidade de envolver também o leitor numa labiríntica trama
sem saída, charada só decifrada por um astuto Sherlock com sua lupa.
Entretanto,
bem dotada de tais atributos para a boa realização de um romance policial,
Dyandreia assumiu, de frente, a nova experiência discursiva. E, de fato,
saiu-se vitoriosa. Compôs esta instigante ficção, tendo em contraponto ao
enredo amoroso, a marca de uma vingança, arquitetada por misterioso personagem,
desde o começo da história escondido nos bastidores da história.
Já a
capa do livro – elemento significativo do paratexto segundo o teórico francês
Gérard Genette – apresenta sutis signos visuais induzindo o leitor a situações
dramáticas. Nela, num cenário praiano, um casal abraçado em prazeroso enlevo
amoroso já indicia a explosão erótica que permeia a narração. Mas
contrapondo-se a Eros, Tânatos, signo da morte, tinge de um vermelho sanguíneo
as primeiras letras do título da obra. E o sangue continua a escorrer sobre outros
caracteres tipográficos até que o mar desfaça o efêmero castelo de areia. Ao
interpretar os signos da capa, o leitor nem precisa da lupa sherlockiana, nem
da apurada lógica dedutiva de um Conan Doyle para detectar que o amor e a morte
são parceiros no jogo tensional deste romance detetivesco de timbres atuais,
cujos episódios se passam na luxuriante paisagem fluminense da Região dos
Lagos.
Inicia-se
o relato com o reflexivo Prólogo à guisa de epígrafe. Investida do poder
oracular, uma voz onisciente sentencia que mesmo que o mar destrua o castelo de
areia, "passado o susto inicial", cabe não se abater, nem desistir.
Aconselha aprender com a experiência vivida e refazê-lo, apesar dos pesares.
Porém é necessário definir o caminho: repeti-lo ou ressignificar o trajeto?
Esse
filosófico prólogo já demonstra a dimensão do livro. Composto na singeleza de
frases de forte conteúdo simbólico, esse intróito traz uma mensagem. Suas
sábias palavras instigam a pensar. E com tais reflexões, o leitor inicia a
história narrada na terceira pessoa do discurso. Logo se encanta com a
descrição da fulgurante paisagem marinha de uma esplendorosa manhã em uma das
praias semi-desertas do Pontal do Atalaia.
Os
pincéis literários da jornalista e artista plástica Dyandreia Portugal desenham
em letra poética um cenário meio paradisíaco com o sol cintilando nas águas de
"um mar turquesa" em harmônica conjunção cromática com "o verde
da montanha e com as rochas à beira-mar". Na linguagem poética com relampejos por vezes coloquiais
conferindo mais sabor ao relato, as palavras do texto vão sugerindo imagens
pictóricas na mente do leitor.
Na
sequência de escritas, ele parece até visualizar a cena tal a maneira de a
autora bem apresentar a paisagem com os vocábulos confluindo para um tipo de composição
em que as duas artes irmãs – literatura e pintura – se dão as mãos. Isso lembra
o recurso estilístico denominado ekphasis
(ecfrase) termo grego para nomear na Antiguidade Clássica o efeito visual
de uma leitura, quando os signos verbais, mesmo sem a apresentação do objeto
pictórico, sugerem imagens mentais.
E é
nessa paisagem, em que o leitor parece "ver" todos os detalhes, que a
pintura do verbo, forte de Dyandreia, apresenta a protagonista da história. Seu
nome? Valentina. Aliás, bem adequado. Valente no onomástico e corajosa nas
atitudes, ela se destaca por vigorosa personalidade. Culta e viajada, amante
das artes e da natureza, ela aproveitara aquele ensolarado dia, para dar
algumas braçadas no mar. Depois ainda na praia, lê A hora da estrela, de Clarice Lispector, o que bem atesta seu
refinamento intelectual.
Naquela
manhã, Valentina estava muitíssimo feliz e tranquila em comunhão com o mar e
com a leitura, duas coisas de que tanto gosta. No entanto, a morte já se
encontrava a rondar-lhe, pois: "De longe, no alto do morro, um homem
acompanhava, desde cedo, todos os passos de Valentina com um binóculo. Ela não
havia percebido.". Eis aí, o início de uma sequência de enigmáticos fatos
que se foram evoluindo, enovelados com aparências indecifráveis só descobertos
quase ao término da obra.
A
partir desse insólito acontecimento vão-se gradativamente iniciando estranhas
ocorrências, lances inexplicáveis, enredando os passos dessa bela mulher. Em
seu dia a dia, enquanto sua rotina profissional se desenvolve no Millenium,
educandário modelo do qual ela é diretora, estranhíssimos telefonemas começaram
a perturbar-lhe a paz de sua casa. Nessas ligações, ninguém falava. Ouvia-se
somente forte e desagradável respiração. Ao mesmo tempo, outras situações
sinistras, macabras prosseguem à porta do colégio, bem de acordo com os lances
da narrativa policial, instauradora de suspense, de mistério, de dúvida, de
medo. Era uma terrível ameaça que mais "parecia sair de um filme
policial" a moda de Hitchcock.
Valentina
procurava não pensar no problema e mergulhava no trabalho. Mas prosseguiam as
insólitas situações enigmáticas em várias frentes. Com golpes de mestre, o
texto de Dyandrea Portugal flagra o emaranhado de dúvidas e pânico que se passa
no palco mental da personagem. Realça o campo de forças digladiando-se no
pensamento da bela mulher imersa em emoções contraditórias entre incertezas e
inquietações. Insólitos acontecimentos turbilhonavam sua vida até então pacata
e independente. Em meio a tais situações inquietantes, em que Tânatos parece
estar sendo vitorioso, Eros, o travesso deusinho do Amor, entra em cena.
Lança
suas flechas em direção a Derik Romão, pai do pequeno Artur, um aluno do
colégio Millenuim, para que ocorresse um encontro amoroso entre ele e a
diretora do colégio de seu filho. Encontro, aliás, de há muito desejado por
Valentina – porém, no âmbito profissional, mas sempre difícil pelas viagens de
Derik – para tratar de problemas psicológicos do menino.
Porém
Eros, que sabe comandar corações, mesmo de longe dera uma mãozinha no caso. E
os aproxima num inesperado e fortuito esbarrão na rua, sem se saberem quem são.
Derik ficara vivamente seduzido pela beleza daquela moça acompanhada de um
homem e uma criança. Entretanto, muitas estranhezas ocorrem na vida de ambos em
várias páginas desenvolvidas pela arguta mestria da autora. Com a lupa da
imaginação transitando de um lado para outro, Dyandreia desenvolve dois núcleos
temáticos diversos, mas que se interpenetram. De um lado, o turvo horizonte de
suspeitas, das constantes ameaças, dos mortíferos sinais dados por
desconhecidos mandantes ou por um maníaco, destruindo a paz da professora. De
outro, Derik, homem rico, poderoso, presidente de importantíssima
multinacional, não parava de pensar
naquela bela mulher do encontro casual na rua.
Mas,
por um desses acasos inexplicáveis – bem construído na trama – Artur lhe
mostrara o retrato da "tia Valentina", a linda mulher do
"esbarrão"'. Foi o "abra-se Sésamo" para o pai do menino.
Um dia, Derik e Valentina se encontram. Aliás, de maneira fulminante – un coup de foudre! Entrega total de ambos. Reunião de corpos no
prazer do Eros físico à transcendência metafísica.
A escritora
volta-se, então, para uma incandescente história de amor dentro do modelo do
bom romance policial. Traz inesperadas soluções e desfechos impressionantes, dentro
do modelo dessa forma de narrar que cada mais se impõe na ficção contemporânea.
E entre os dois amantes tudo vai correndo às mil maravilhas. Entretanto, Eros,
em suas travessuras, prega peças no enamorados. Cria sempre algo para
perturbar. Apesar de apaixonada, não aceita Derik, tutelando-a. Dona de si, não
permite ser a serva servil, silente. Não deixa que ele interfira em sua
independência Resoluta, rebate sua forma de demonstrar posse. Ele não cede.
É a
luta entre ginecocracia e androcracia que as mulheres vêm enfrentando desde
meados do século passado, mesmo com as vitórias já conquistadas. Aliás, Eros é,
de fato, bastante complicado. Não sem razão Platão no Banquete, usando substrato mítico, expôs que Eros, deus do Amor,
possui contradições por ser filho de Pórus (a abastança, o excesso) e de Pênia
(a penúria, a perda). Tendo Eros, pois, essa mítica genealogia – e os mitos, na
aparente ingenuidade da "historinha", dizem verdades profundas – isso
significa que o amor possui momentos de excessos, de excedência, representados
pela paixão, mas em contrapartida existem instantes de perda, de falta, de
carência. Com tal mensagem Platão mostra simbolicamente que o Amor, ao chegar,
já traz seu anúncio da partida. Aliás, são situações existenciais dualísticas
pertinentes à própria humana condição. Por isso, é necessário sempre
reabastecer o Amor, para ser eterno enquanto dure.
Assim,
em rápidas pincelados, eis alguns traços marcantes deste livro. Ao construído, Dyandreia lançou-se no labirinto de pistas, de
hipóteses e de situações insólitas. Mas, com o fio de Ariadne da fecunda
imaginação, ela venceu os minotauros das dificuldades de um romance policial.
Desenvolveu verdadeiros "achados" literários, soluções vigorosas ao
texto, com idas e vindas peculiares à construção detetivesca desenvolvida com
argúcia. Serviu-se do estilo epifrásico em que as letras parecem sair do papel,
consubstanciando picturalmente a cena descrita.
Por
transitar por várias áreas do conhecimento, sua produção apresenta-se rica de conteúdos psicológico,
social, pedagógico, existencial, humano – essencialmente humano. Em verdade,
ela radiografa a alma dos personagens, penetrando no palco de seus pensamentos
e quando o faz transmuta as letras no formato
itálico. Disseca também as dualidades
inerentes à nossa condição, menciona emoções sentidas, enfim, elabora um
tratado de psicologia e de didática. Oferece amplo painel cultural com
eficientes notas de rodapé. E, na evolução dos episódios, salpica, aqui e ali,
informações literárias, cinematográficas, musicais, linguísticas, educacionais,
além de relativas a vinhos, à moda e até ao mais caro tipo de café do mundo.
Isso demonstra amplo conhecimento e experiência na vida contemporânea, além da
séria pesquisa realizada. Ao focalizar as extraordinárias belezas naturais da
Região dos Lagos, seu livro é um hino de celebração àquele território
exuberante, podendo até funcionar como eloquente propaganda turística.
A
autora concilia, de igual modo, dois horizontes sociais, conferindo-lhes o
mesmo peso: o universo bilionário de Derik e a classe média de Valentina.
Permite com isso a 'philia dialógica'
entre eles, sobretudo pelo traço cultural e o amor que os une. Enfatiza também a
dualidade de celebrações artísticas: o glamour
da alta sociedade no Theatro Municipal, e a cerimônia popular, em plena
natureza, de um luau. Traz à cena literária questões de palpitante atualidade,
de que são exemplos a Lei Seca, a Associação dos Alcoólatras Anônimos, o tão
frequente bullyng, a valorização da
natureza ainda intocada pelo furor civilizatório a importância da leitura, o
correto desempenho dos pais para o equilíbrio dos filhos e outros temas de
relevância do mundo moderno.
Cada
fragmento desta bem urdida obra configura uma tessela, aquela pedrinha colorida
que, quando se junta à outra, compõe um mosaico. O livro, de fato, é um mosaico
com tesselas temáticas gravitando em torno de uma produção hitchckockiana, a
que não faltam os ingredientes peculiares a uma escrita produtora de impacto e
frisson, entretecida com elementos estranhos, insólitos, inexplicáveis
coincidências, mistérios, drama. Em suma, detetivescos, uma Hitchcock brasileira além-fronteiras
A
autora demonstrou, com a excelência de seu traço artístico que construir um
romance, sobretudo com mais de quatrocentas páginas, demanda fôlego para bem
realizá-lo com episódios colaterais sem se afastar do conflito 'nucleador'.
Há
outro aspecto muito significativo a ressaltar: a semelhança do perfil da
protagonista de RECONSTITUINDO CASTELOS DE AREIA ao próprio ser da autora.
Existem vários traços de Dyandreia mimeticamente transfigurados na configuração
de Valentina. Ambas são mulheres cultas, antenadas com as pulsações do mundo
atual, possuem aquela extraordinária "sensibilidade elástica",
abrangente e dúctil a que se referiu o escritor e físico Leonard Mlodinow,
quando em setembro último esteve no Brasil. Ambas formadas em Pedagogia,
assumidas em suas dimensões da Mulher de Agora, são alegres, gentis, afinadas
com vários setores do conhecimento, dotadas de personalidades fortíssimas, sem
a necessidade de mistificações. São guerreiras, conscientes de seus atos
realizados com encantadora doçura, mesmo quando têm que ser duras. Detentoras
de espírito criativo, apaixonadas e realistas, amantes da literatura e das
artes em geral, Valentina seria alter ego,
um duplo especular de Dyandreia, a grande escritora deste livro, além de
Pedagoga do Afeto e Emissária do Amor?
Por
fim, o Epílogo de RECONSTITUINDO CASTELOS DE AREIA, ao fechar o círculo-mandala com o leitmotiv que dá título a obra, retoma e
retorna à problemática sugerida no Prólogo do livro sobre a superação da
humanidade diante dos obstáculos. Lá a voz oracular concita a continuar a
construir novos castelos na areia, apesar dos pesares. Aqui, o conselho se
realiza, na práxis esperançosa de que o castelo já está sendo reconstituído,
conforme o diálogo: entre Valentina e Derik
"–
Você me ajudaria a reconstruir o meu castelo? [...] Com o peito em chamas e
quase não conseguindo se controlar, ele respondeu – É minha única meta! [...]
e, a partir daquele momento, o castelo começou a ser reconstruído.".
Eis a
grande mensagem filosófica e humanista desta obra: Apesar de... é necessário
prosseguir e reconstituir os castelos de nossos sonhos.
Eis,
pois, as excelentes bases do excelente romance policial da poliédrica DYANDREIA
PORTUGAL.
Dalma
Nascimento,
em 31 de outubro de 2018
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