sexta-feira, 3 de abril de 2020

AMIGOS NO OBITUÁRIO DA PESTE TEXTO DE RICARDO CRAVO ALBIN






AMIGOS NO OBITUÁRIO DA PESTE



Por Ricardo Cravo Albin



Não sei por que a gente fica sempre a imaginar que nosso núcleo de amigos mais chegados nunca irá ostentar seus nomes nos obituários da Peste – desculpem, mas o horror a esse vírus pandêmico me leva a não lhe explicitar o nome, nomeando-o apenas pelo genérico Peste.  Infelizmente a Peste se aproxima tão veloz e despudoradamente nesta recém-inaugurada terceira década do século XXI que o núcleo de amigos queridos, que nós pressupúnhamos imune a este horror, começa a abrir flancos. E o coração se dilacera um pouco a cada morte.

Semana passada estremeci com a brutalidade da morte de Daniel Azulay. Estremeci e chorei. Por todas as razões, além do artista singular de traço único, além da originalidade de sua figura física, além da graça de se comunicar pela televisão, o que encantou várias gerações, além do olhar, do se vestir, do ser amigo.

Aos 72 anos, Daniel continuava a parecer um menino, um menino de voz doce e olhos inquietos sempre a buscar oportunidades para cativar o interlocutor. Ele jamais abandonaria sua persona modelada pela televisão durante décadas, ídolo natural de crianças de todas as idades, sem forçar barras mercadológicas, tão comuns hoje em dia.


Daniel Azulay foi meu amigo por mais de quarenta anos e frequentava nosso Instituto na Urca com frequência. Arguto, culto, piedoso e bem informado, ele ora chegava para almoçar, ora chegava para tomar umas e outras, ora chegava para apenas jogar conversa fora. Mas o “conversa fora” do Daniel sempre embutia um propósito de cristalina generosidade.



Sabedor de como as instituições culturais estavam a capengar e a quase se findar por falta de recursos e de ausência de beneméritos, ele, o menino sonhador e solidário, sem dinheiros a tirar do bolso, vinha ofertar sua arte, sua imaginação. A mim sempre me comoveu sua disponibilidade para construir projetos, para dizer sim às necessidades dos que eram acolhidos por seu altruísmo. Agorinha mesmo, ao trazê-lo à minha mente e ao coração, acudiram-me fragmentos de várias de suas ideias, que fluíam com a fartura dos dotados de gênio.



Segundo ele, todos seus projetos deveriam abrir na criança o mundo mágico do imaginário, do sonho possível ao desenvolvimento criativo a ser plantado nas cabecinhas em formação. Um público ainda virgem de vícios e de tolices que o avançar da idade acaba por infligir.  Todas as muitas ideias do Daniel eram sempre contempladas com assentimento geral por nossa parte. E saía ele, lépido e fagueiro como sempre, a buscar patrocínio e apoio. Que nunca chegavam. Sequer uma réstea de solidariedade aparecia. Daniel, bem humorado, desdenhava dos ouvidos moucos, da falta de cultura de eventuais patrocinadores, do esperar horas a fio em antessalas dos empresários. Até porque artista como ele tinha consciência de seus acertos, de sua grandeza, do querer ampliar cabeças de meninos em formação. < /p>



Hoje me dou conta de que Daniel, lá no fundinho de seu interesse pelas crianças, queria mesmo era ser professor. Ou seja, ele parecia ter pressa em transformar gente miúda em gente grande. Grande no sentido filosófico de expansão do pensamento, futuros homens dotados de mais criatividade, em exercício progressivo para serem livres. Sempre.

Portanto, a morte de Daniel Azulay provoca uma extraordinária legião de órfãos, todas as muitas gerações de crianças de sua Turma do Lambe-lambe que plasmaram nele um título glorioso, o de ser Professor de Vida, um mestre a incutir arte e beleza.



Ricardo Cravo Albin
 Rio, 31 de março de 2020.




DANIEL AZULAY nasceu n o Rio de Janeiro, 30 de maio de 1947  e faleceu no Rio de Janeiro, 27 de março de 2020 foi um artista plástico, educador com vasta e diversificada atuação na Imprensa e na TV como desenhista, compositor e autor de livros infanto-juvenis e videogames interativos.

Filho do jurista e advogado Fortunato Azulay e de Clara Israel, Daniel nasceu numa família judaica sefardita, sendo o filho mais jovem. Seu irmão mais velho, Jom Tob Azulay, é cineasta e diplomata.

Aos 15 anos, publicou um desenho na sessão de palavras cruzadas do jornal O Globo, aos 18, estreou profissionalmente no Jornal dos Sports.

Em 1967, criou a tira Capitão Sol para o jornal O Sol.

Em 1968, criou a tira Capitão Cipó, publicada no jornal Correio da Manhã e em 1975, lançou a Turma do Lambe-Lambe. Na Rio Gráfica Editora, colaborou com as revistas Querida e Garotas, com a personagem A Dona Filó, logo em seguida colaborou com as revista O Cruzeiro, Joia e Manchete. Publicou o livro "Viagem à Jerusalém", contendo 40 ilustrações, viajou aos Estados Unidos, onde conheceu os estúdios da Disney na Flórida e na Califórnia, lá tentou trabalhar como cartunista, conheceu o quadrinhista Bob Kane, cocriador do Batman, que o apresentou à revista Crazy em Nova York, de volta ao Brasil, foi precursor em 1976 apresentando durante dez anos seguidos, programas de TV educativos e inteligentes para o público infantil. Azulay influenciou de forma construtiva a geração dos anos 1980 que aprendeu com ele a desenhar, construir brinquedos com a sucata doméstica, e a importância da reciclagem e sustentabilidade em defesa do meio ambiente, antecedendo programas da TV por assinatura como Art Attack, Mister Maker e Click.

Viajava pelo mundo expondo, fazendo palestras e conduzindo workshops de arte, educação e responsabilidade social. Premiado no Brasil e no exterior, suas obras de arte contemporânea fazem parte do acervo de coleções particulares e de grandes empresas. Na década de 1990, desenvolveu CD-Roms educativos, esses CD-ROMs chamaram a atenção de Johnny Saad do Grupo Bandeirantes, em 1996, Azulay passou a apresentar o programa Oficina de Desenho Daniel Azulay na Band Rio, em 2000, o programa passou a ser exibido em rede nacional.

Em 2009, ensinou desenho em vídeos para o site UOL, fez especiais pro Canal Futura ('Azuela do Azulay') e chegou a participar da TV Rá-Tim-Bum

Em 2013, lançou o site Diboo (www.diboo.com.br), um curso de desenho online para crianças.

Em 2018, foi homenageado como Grande-mestre pelo Troféu HQ Mix.

Daniel morreu em 27 de março de 2020 após ficar internado por duas semanas na Clínica São Vicente (no Rio de Janeiro) em tratamento contra a leucemia. Teria contraído o novo coronavírus em ambiente hospitalar e desenvolveu quadro de COVID-19 cujas complicações foram fatais.








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