AMIGOS NO OBITUÁRIO DA PESTE
Por Ricardo Cravo Albin
Não sei por que a gente fica sempre a imaginar que nosso
núcleo de amigos mais chegados nunca irá ostentar seus nomes nos obituários da
Peste – desculpem, mas o horror a esse vírus pandêmico me leva a não lhe
explicitar o nome, nomeando-o apenas pelo genérico Peste. Infelizmente a Peste se aproxima tão veloz e
despudoradamente nesta recém-inaugurada terceira década do século XXI que o
núcleo de amigos queridos, que nós pressupúnhamos imune a este horror, começa a
abrir flancos. E o coração se dilacera um pouco a cada morte.
Semana passada estremeci com a brutalidade da morte de
Daniel Azulay. Estremeci e chorei. Por todas as razões, além do artista
singular de traço único, além da originalidade de sua figura física, além da
graça de se comunicar pela televisão, o que encantou várias gerações, além do
olhar, do se vestir, do ser amigo.
Aos 72 anos, Daniel continuava a parecer um menino, um
menino de voz doce e olhos inquietos sempre a buscar oportunidades para cativar
o interlocutor. Ele jamais abandonaria sua persona modelada pela televisão
durante décadas, ídolo natural de crianças de todas as idades, sem forçar
barras mercadológicas, tão comuns hoje em dia.
Daniel Azulay foi meu amigo por mais de quarenta anos e
frequentava nosso Instituto na Urca com frequência. Arguto, culto, piedoso e
bem informado, ele ora chegava para almoçar, ora chegava para tomar umas e
outras, ora chegava para apenas jogar conversa fora. Mas o “conversa fora” do
Daniel sempre embutia um propósito de cristalina generosidade.
Sabedor de como as instituições culturais estavam a capengar
e a quase se findar por falta de recursos e de ausência de beneméritos, ele, o
menino sonhador e solidário, sem dinheiros a tirar do bolso, vinha ofertar sua
arte, sua imaginação. A mim sempre me comoveu sua disponibilidade para
construir projetos, para dizer sim às necessidades dos que eram acolhidos por
seu altruísmo. Agorinha mesmo, ao trazê-lo à minha mente e ao coração,
acudiram-me fragmentos de várias de suas ideias, que fluíam com a fartura dos
dotados de gênio.
Segundo ele, todos seus projetos deveriam abrir na criança o
mundo mágico do imaginário, do sonho possível ao desenvolvimento criativo a ser
plantado nas cabecinhas em formação. Um público ainda virgem de vícios e de
tolices que o avançar da idade acaba por infligir. Todas as muitas ideias do Daniel eram sempre
contempladas com assentimento geral por nossa parte. E saía ele, lépido e
fagueiro como sempre, a buscar patrocínio e apoio. Que nunca chegavam. Sequer
uma réstea de solidariedade aparecia. Daniel, bem humorado, desdenhava dos
ouvidos moucos, da falta de cultura de eventuais patrocinadores, do esperar
horas a fio em antessalas dos empresários. Até porque artista como ele tinha
consciência de seus acertos, de sua grandeza, do querer ampliar cabeças de
meninos em formação. < /p>
Hoje me dou conta de que Daniel, lá no fundinho de seu
interesse pelas crianças, queria mesmo era ser professor. Ou seja, ele parecia
ter pressa em transformar gente miúda em gente grande. Grande no sentido filosófico
de expansão do pensamento, futuros homens dotados de mais criatividade, em
exercício progressivo para serem livres. Sempre.
Portanto, a morte de Daniel Azulay provoca uma
extraordinária legião de órfãos, todas as muitas gerações de crianças de sua
Turma do Lambe-lambe que plasmaram nele um título glorioso, o de ser Professor
de Vida, um mestre a incutir arte e beleza.
Ricardo Cravo Albin
DANIEL AZULAY nasceu n o Rio de Janeiro, 30 de maio de
1947 e faleceu no Rio de Janeiro, 27 de
março de 2020 foi um artista plástico, educador com vasta e diversificada
atuação na Imprensa e na TV como desenhista, compositor e autor de livros infanto-juvenis
e videogames interativos.
Filho do jurista e advogado Fortunato Azulay e de Clara
Israel, Daniel nasceu numa família judaica sefardita, sendo o filho mais jovem.
Seu irmão mais velho, Jom Tob Azulay, é cineasta e diplomata.
Aos 15 anos, publicou um desenho na sessão de palavras
cruzadas do jornal O Globo, aos 18, estreou profissionalmente no Jornal dos
Sports.
Em 1967, criou a tira Capitão Sol para o jornal O Sol.
Em 1968, criou a tira Capitão Cipó, publicada no jornal
Correio da Manhã e em 1975, lançou a Turma do Lambe-Lambe. Na Rio Gráfica
Editora, colaborou com as revistas Querida e Garotas, com a personagem A Dona
Filó, logo em seguida colaborou com as revista O Cruzeiro, Joia e Manchete.
Publicou o livro "Viagem à Jerusalém", contendo 40 ilustrações,
viajou aos Estados Unidos, onde conheceu os estúdios da Disney na Flórida e na
Califórnia, lá tentou trabalhar como cartunista, conheceu o quadrinhista Bob
Kane, cocriador do Batman, que o apresentou à revista Crazy em Nova York, de
volta ao Brasil, foi precursor em 1976 apresentando durante dez anos seguidos,
programas de TV educativos e inteligentes para o público infantil. Azulay
influenciou de forma construtiva a geração dos anos 1980 que aprendeu com ele a
desenhar, construir brinquedos com a sucata doméstica, e a importância da
reciclagem e sustentabilidade em defesa do meio ambiente, antecedendo programas
da TV por assinatura como Art Attack, Mister Maker e Click.
Viajava pelo mundo expondo, fazendo palestras e conduzindo
workshops de arte, educação e responsabilidade social. Premiado no Brasil e no
exterior, suas obras de arte contemporânea fazem parte do acervo de coleções
particulares e de grandes empresas. Na década de 1990, desenvolveu CD-Roms
educativos, esses CD-ROMs chamaram a atenção de Johnny Saad do Grupo
Bandeirantes, em 1996, Azulay passou a apresentar o programa Oficina de Desenho
Daniel Azulay na Band Rio, em 2000, o programa passou a ser exibido em rede
nacional.
Em 2009, ensinou desenho em vídeos para o site UOL, fez
especiais pro Canal Futura ('Azuela do Azulay') e chegou a participar da TV
Rá-Tim-Bum
Em 2013, lançou o site Diboo (www.diboo.com.br), um curso de
desenho online para crianças.
Em 2018, foi homenageado como Grande-mestre pelo Troféu HQ
Mix.
Daniel morreu em 27 de março de 2020 após ficar internado
por duas semanas na Clínica São Vicente (no Rio de Janeiro) em tratamento
contra a leucemia. Teria contraído o novo coronavírus em ambiente hospitalar e
desenvolveu quadro de COVID-19 cujas complicações foram fatais.
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