A crônica me veio assim, de uma forma única e deliciosa. Milimetricamente construída com os acordes de uma feliz amizade, recebi-a como um verdadeiro presente de Natal de minha adorável companheira nas letras, Marjorie Hasson. Ao abrir esse portal sonoro, compreendi que não poderia ter deixado de assistir a tão belo momento; era preciso mergulhar na profundidade dessa prece que nasce do coração da terra.
A Misa Criolla, composta pelo mestre argentino Ariel Ramírez em 1964, transcende a definição de uma peça de música sacra. Ela é, em essência, um dos marcos mais vigorosos da identidade cultural sul-americana no século XX. Sua gênese ocorreu em um período de efervescência e transformação na Igreja Católica: o pós-Concílio Vaticano II. Naquele instante histórico, permitiu-se que a liturgia abandonasse a rigidez do latim para abraçar as línguas vernáculas e o pulsar das tradições locais. Ramírez, movido por um profundo senso de justiça social e uma espiritualidade inabalável, compreendeu que a missa não deveria apenas ser traduzida para o espanhol; ela precisava "vestir-se" com o poncho, a poeira e a alma do povo latino-americano.
Nesta performance magistral realizada pelo Coral da Universidade da Califórnia (UCLA), sob a direção artística e regência precisa de Rebecca Lord, a obra alcança uma dimensão rara, fundindo a excelência técnica acadêmica à força telúrica do nosso folclore. A instrumentação é o coração dessa autenticidade. O conjunto de violões desenha a base harmônica que é o esqueleto da música crioula, enquanto o piano de Ulf Anneken evoca o espírito virtuoso do próprio Ramírez. A flauta de Brenda Lord serpenteia como o vento andino, trazendo o lirismo necessário, enquanto o baixo de Adam Gilberti ancora o som, permitindo que a percussão de Benjamin Goldman, Stephen Hufford e Lindsey Kunisaki dite o pulso vital que faz a terra tremer sob os pés dos fiéis.
O espetáculo tem início com o Kyrie, erguido sobre as sombras e luzes da vidala e da baguala. Aqui, o tenor Joshua Warrior e o barítono Ryan Thorn travam um diálogo de introspecção quase mística. A baguala evoca a vastidão das cordilheiras e a solidão solene do homem do campo; o clamor por piedade: "Señor, ten piedad de nosotros", não é um sussurro, mas um lamento que ricocheteia nos vales da existência. Contudo, a melancolia logo dá lugar à explosão do Gloria, onde o ritmo de carnavalito e yaraví convoca a comunidade para a celebração. É o instante em que o coro da UCLA brilha, equilibrando a clareza da dicção com um entusiasmo rítmico contagiante. Flauta e percussão tornam-se protagonistas, transformando o louvor em uma tapeçaria de cores sonoras, onde o divino e a alegria humana se fundem num abraço.
Ao chegarmos ao Credo, somos confrontados com a chacarera trunca, um dos ritmos mais complexos e indomáveis do folclore argentino. A escolha é simbólica e poderosa: o "Creo" de Ramírez não é uma afirmação passiva, mas uma declaração de resistência e vigor. A síncope característica da chacarera exige dos músicos uma precisão cirúrgica, conduzida com maestria por Rebecca Lord. O Sanctus, por sua vez, nos transporta para a Bolívia com o ritmo saltitante do carnaval cochabambino, preparando o espírito para o epílogo. Finalmente, o Agnus Dei encerra a jornada retornando ao recolhimento do estilo pampeano. O pedido final de paz "danos la paz" é entregue com uma simplicidade que desarma. Solistas e coro desvanecem suavemente, como o sol que se põe no horizonte infinito das pampas.
Esta execução da UCLA é admirável por não tratar a "Misa Criolla" como uma exótica curiosidade étnica, mas como o que ela realmente é: uma obra-prima universal. Rebecca Lord compreende que a força da peça reside na sua honestidade bruta, dando voz aos marginalizados e permitindo que o sagrado encontre o profano em uma harmonia sem fendas. Ao ouvirmos este manifesto de esperança, somos lembrados de que a arte, quando verdadeiramente enraizada na terra e no povo, possui uma linguagem que ignora mapas, transcende fronteiras e derruba qualquer barreira linguística.
© Alberto
Araújo
Focus
Portal Cultural
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