quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

TRÊS VIGIAS SOBRE A MESMA ÁGUA - CRÔNICA DE © ALBERTO ARAÚJO

De onde a foto foi colhida, Icaraí parece suspensa entre folhas verdes e azul profundo, como se alguém tivesse recortado um pedaço de manhã e preso numa moldura invisível. A areia se estende num lençol claro, bordado pelas passadas apressadas de quem caminha, enquanto o mar, paciente, finge não notar o vai‑e‑vem das barcas que cruzam a baía rumo ao outro lado. O trânsito risca o asfalto em linhas rápidas, faróis ascendendo e apagando, mas basta levantar os olhos um pouco para que tudo se silencie diante da serenidade da água. 

É ali, nesse cenário de claridade e sal, que três vigias conversam sem palavras: a Pedra de Itapuca, a Pedra do Índio e o MAC, cada qual com sua memória e sua maneira de olhar o mar. A Pedra de Itapuca, mais adiante, guarda na carne de pedra a lembrança do arco antigo, aquele túnel natural por onde gente e histórias passavam antes da dinamite rasgar a geografia. Dizem que, quando o mar bate mais forte, ainda se escuta, no estouro das ondas, o eco dos passos que atravessavam “por dentro” da pedra rumo ao Gragoatá, como se o tempo se recusasse a aceitar que a passagem foi fechada. Itapuca assiste, resignada e altiva, ao desfile de gerações que mudam de roupa, de costumes, de gírias, mas continuam parando para olhar a mesma curva de mar.

Um pouco além, a Pedra do Índio ergue seu perfil inconfundível, como se um rosto ancestral, esculpido pelo vento e pela maré, descansasse debruçado sobre a baía. Vista de certos ângulos, a rocha parece um gigante adormecido que observa tudo de olhos semicerrados, guardando segredos que datam de antes de qualquer prédio, antes de qualquer avenida. Para muitos, ela é marco de encontros, de caminhadas, de fotos obrigatórias; para outros, é apenas uma presença silenciosa, tão habitual que quase se confunde com o próprio verbo “morar”. Mas basta um forasteiro perguntar o nome daquela pedra para que o bairro inteiro se reconheça na resposta: ali está o Índio, guardião discreto da orla.

Do outro lado, no Mirante da Boa Viagem, ergue‑se o MAC, nave branca pousada sobre um penhasco, como se tivesse escolhido a dedo aquele lugar para contemplar a cidade. Sua arquitetura curva, redonda, parece um disco voador que preferiu ficar por aqui, fascinado pela paisagem, em vez de seguir viagem para outra galáxia. A rampa, quando se sobe devagar, produz a sensação de que se está ascendendo não apenas a um museu, mas a uma espécie de mirante íntimo, onde a baía se oferece em 360 graus e o Pão de Açúcar se aproxima o bastante para caber na palma da mão, se alguém ousar estendê‑la na direção do vidro. Lá dentro, as telas e esculturas dividem espaço com o silêncio reverente de quem, entre uma obra e outra, se perde na vista.

Icaraí, no meio desses três guardiões: Itapuca, Pedra do Índio e MAC, se torna espécie de salão principal desse palácio aberto chamado baía. A orla é sala de estar, onde os moradores estendem seus dias ao sol: gente que corre, que anda de bicicleta, que leva o cachorro para farejar notícias na areia, que apenas se senta no banco para ver o horizonte mudar de cor. A estrutura metálica em forma de árvore, ali no canto da foto, parece esperar a noite para enfim cumprir seu destino de luz, enquanto as folhas das árvores reais desenham rendas de sombra no chão. Tudo respira um ar de véspera, como se a paisagem estivesse sempre à espera de um pequeno milagre cotidiano: o encontro de dois conhecidos, a brisa que refresca, o sorriso de alguém que se deixou tocar pelo mar.​

A Pedra de Itapuca, se pudesse falar, talvez contasse que já viu de tudo: pescador puxando rede, namorados jurando eternidade, crianças insistindo em saber por que a pedra teve o arco arrancado, senhoras lembrando o tempo em que o mar parecia mais limpo e mais simples. Ela conhece o peso das nostalgias que se acumulam no bairro, esse lugar que foi se transformando de recanto de veraneio em coração urbano, polido por prédios altos, cafés, farmácias abertas madrugada adentro. Ainda assim, por baixo do cimento, sente a pulsação antiga, indígena, marinha, que insiste em sobreviver como um fio de voz na garganta do tempo.

A Pedra do Índio, ao lado, parece escutar essas mesmas histórias, mas à sua maneira: imperturbável, quase zen, oferecendo seu contorno para quem precisa de um ponto fixo onde descansar o olhar. Há quem jure enxergar, no desenho da rocha, traços de um perfil humano, nariz, boca, queixo; outros preferem ver nela apenas um capricho da natureza, sem semelhanças. Seja como for, é ao redor dela que se organizam memórias de infância, corridas na areia, fotografias de famílias inteiras que, décadas depois, se reconhecem naquela pedra como se fosse parente de sangue.

O MAC, por sua vez, aprendeu a ser espelho. De dia, reflete o céu na água que o circunda, dobrando o azul em dois; de noite, devolve à cidade as luzes que recebe, como se dissesse: “vejam como vocês também são obra de arte”. Na sua pele branca, quase impossivelmente lisa, pousam sombras de nuvens e de pássaros, e cada mancha de luz reinventa os contornos do edifício. Quem o vê da areia de Icaraí tem a impressão de estar diante de um futuro possível, uma cidade que escolhe colocar um museu no melhor camarote da paisagem, como se a arte fosse a própria lente para olhar o mundo.

Na foto, uma barca passa bem no centro da baía, traçando uma linha entre margens, como se com uma simples viagem costurasse Niterói ao Rio. O Pão de Açúcar, lá atrás, ergue‑se em perfil de monge atento, escutando tudo: o cochicho de Itapuca, o silêncio concentrado do Índio, o assovio moderno das rodas de carro na avenida, o suspiro discreto de quem se emociona diante de tanta beleza e tenta disfarçar. A cidade do outro lado brilha ainda clara, prédios em fileira desenhando um código de barras no horizonte, lembrando que a vida continua, que há boletos, reuniões, prazos. Mas por alguns minutos, diante da baía, tudo isso se afasta um pouco, como se ficasse em segundo plano na fotografia da alma.​ 

Quando o dia começa a descer, a sombra das árvores cresce sobre o calçadão, a água muda de tom e a estrutura metálica prenuncia acender‑se em festa. O MAC roxo suavemente, tingido pelas últimas luzes do poente, e a Pedra de Itapuca se escurece num quase preto, guardando para si as cores que viu. A Pedra do Índio, imóvel, parece recolher em seus contornos todas as conversas sussurradas naquela tarde, como se fosse arquivo mineral das emoções da cidade. Icaraí inteira se torna um teatro ao ar livre, com atores que não sabem que estão representando: o homem que corre com fones de ouvido, a moça que pára para fotografar, o vendedor de mate que atravessa a areia, a criança que insiste em puxar o adulto até a beira do mar.​

Três vigias, então, fecham o expediente do dia: o MAC, com sua luz branca e serena; a Pedra de Itapuca, com seu silêncio carregado de memórias; a Pedra do Índio, com sua paciência de rosto esculpido em eras. Icaraí, ao pé deles, continua a respirar com a cadência das marés, entre sirenes distantes e risadas próximas, entre ondas que chegam e notícias que vão. E quem se encontra diante dessa paisagem, na foto ou ao vivo, descobre que, de algum modo, também faz parte da crônica, como personagem que entra em cena só de olhar e, ao olhar, se deixa, um pouco, ser olhado pelo mar.

 

© Alberto Araújo

Focus Portal Cultural







 

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