terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

INTRODUÇÃO DE RICARDO CRAVO ALBIN NA OBRA"CARMINA BURANA: MAGIA E QUESTIONAMENTO CULTURAL, A POESIA DOS GOLIARDOS, A CANTATA CÊNICA DE CARL ORFF E O BALÉ CINEMATOGRÁFICO DE JEAN-PIERRE PONNELLE" AUTORA: DALMA NASCIMENTO





Carmina e Dalma

 

Minha admiração por Dalma Nascimento data de fontes remotas. Muitos de seus orientandos em mestrado e doutorado em momentos diversos realçaram para mim a importância da professora de teoria e literatura comparada da UFRJ. A vasta erudição e a densidade teórica de Dalma acimentaram o acréscimo de conhecimentos de algumas gerações de alunos na universidade e em cursos específicos. Paralelamente a essas impressões pessoais sobre ela por parte de amigos meus, seus discípulos, acompanhei-lhe a febril atividade intelectual em conferências e ciclos inesquecíveis de palestras no Rio de Janeiro. Ela ficaria mais próxima a mim, contudo, a partir da leitura de dezenas de artigos veiculados por cadernos literários.

 

Ao longo de anos a fio, acostumei-me a ler em jornais seus ensaios profundos e até mesmo impressões sobre a vida literária e as conexões com escritores, comportamentos estéticos, definições fragmentárias de época, muitas delas sobre a Idade Média, sobre mitos e utopias de séculos longevos, sobre o comportamento humano ante às gerações, ao fazer literário a partir de impressões e deduções provocadas por seus saber e pela vastidão dos acréscimos de conhecimento que ela acumulou. De mais a mais, me surpreendeu e encantou a forma da linguagem de Dalma, a riqueza de seu vocabulário, a sacralidade do encadeamento do pensamento que era exposto voluptuosamente no texto.

Dalma Nascimento, que produziu e já deu a lume, entre outros, três livros mais recentes sob o título geral Passeios literários em periódicos, constando dos tomos Antígonas da Modernidade (Perfornances femininas na vida real ou na ficção literária), Mitos e Utopias dos teares literários às páginas dos periódicos e Memórias em jornais, resume neles os textos publicados em jornais literários, mas também em revistas especializadas e nos anais de eventos acadêmicos. A escritora, especialista em mito, no sagrado, no feminismo, tornou-se uma das mais reconhecidas pesquisadoras sobre a Idade Média, a par de amplos ensaios incidindo sobre literatura moderna estrangeira e brasileira. São igualmente celebrados os escritos de autoria feminina sobre Nélida Piñon, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Helena Parente Cunha, Florbela Espanca, Olga Savary, Nise da Silveira, Stela Leonardos, além de Maria Jacintha, Maria Alice Barroso e Neusa Peçanha (todas resumidas no belo livro Antígonas da Modernidade).

Ela sempre soube equilibrar, com mestria e bom senso, a exuberante erudição universitária (considerada que sempre foi um expoente da Academia) com as exigências formais do jornalismo, onde gravitou por décadas, definindo saber literário com ensaios, crônicas e entrevistas, sempre admiráveis. O livro que os leitores têm agora em mãos é um mergulho profundo em tema de sua predileção reiterada ao longo de jornadas e de pesquisas por décadas sobre a Idade Média. Mas a Idade Média de Dalma, abordada no livro em dez extensos itens, é o pano de fundo para situar e nutrir o núcleo central dos propósitos da autora, a coleção de poemas enfeixados nos Carmina Burana, poemas que eram cantados e compostos por clérigos folgazões e críticos, poetas andarilhos que exprimiam a possível quebra da serenidade do universo medieval. Chamados de goliardos, estes artistas apresentavam a rebeldia de um sistema de vida ortodoxo e rígido. Seriam eles a radicalidade da liberação individual, tal como, para aproximarmos o sistema de comportamento com nossa atualidade, algo próximos aos beatniks transgressores e descolados de mil anos depois, estimulados que foram literariamente por Jack Kerouac e pelo underground na segunda metade do século XX.

Os goliardos, poetas e músicos, perambulavam pela Europa com seus instrumentos e pertences às costas; eram beberrões, cultos, mulherengos, cáusticos, e caminhavam em grupos de um ponto para outro pelas cidades ainda em formação naqueles tempos medievais, adentrando os bordéis e as tabernas. Há indícios de que boa parte dos goliardos fora erradicada dos conventos e mosteiros, por não se submeterem à rigidez da vida religiosa, quase prisional. Portanto, esses poetas rebeldes em contínuo movimento iam semeando pelos caminhos poemas e cantigas sem autoria, que foram erigindo a crônica de uma Idade Média. Os textos eram quase sempre eróticos, polêmicos e rebeldes, batendo-se contra os costumes e hábitos de seu tempo.

Dalma chama a atenção para um fato decisivo: a escrita iconoclasta dormitava encoberta pela poeira dos tempos, até meados do século dezenove, quando o linguista Johan Schmeller coligiu os manuscritos e os classificou por temas, dando-lhes o nome em latim de Carmina Burana, cujo significado é “poemas/canções de Beuern”, local em que filólogo alemão os teria achado. Considerado de alto interesse não só pelos medievalistas senão também pelos intelectuais em geral, o riquíssimo material serviria de inspiração para as criações musicais e visuais de Carl Orff, grande compositor de Munique, cujos estudos sonoros fluem de épocas aparentemente arquetípicas da aventura do homem na Terra.

Bastante provocadora e original, a sinfonia coral de Orff (em especial seu leitmotiv, “Fortuna, Imperatriz do mundo”) vem sendo empregada com fartura em inúmeros filmes de longa ou curta metragem ou em anúncios comerciais. O poema sinfônico (se assim posso nomeá-lo) Carmina Burana agrega músicas, dança, teatro e outros itens cômicos, ou seja, um procedimento que resume a Arte Total, como queria seu autor. Não sem motivo, ele emprega instrumentos antigos e indica montagem específica para criar a atmosfera da vivência de épocas pretéritas, razão pela qual define sua obra como “Canções profanas para serem cantadas por solistas e corais com o acompanhamento de instrumentos e cenários mágicos”. 

Dalma Nascimento observa com propriedade que o título deste seu livro é Carmina Burana: magia e questionamento cultural, porque a um só tempo conjuga aspectos ilusionistas e culturais, “duas instâncias aparentemente díspares”, ainda acrescida de explícito “questionamento”. Deduz, também, que o conjunto de poemas dos goliardos, musicados por Orff, não apresenta narração precisa. Seus segmentos trazem à tona mitos e símbolos da Antiguidade, do universo dos celtas e de outras culturas ancestrais. Por isso, reflete Dalma, foi sublinhado no livro, com alguma constância, o problema do mito e do sagrado, temas de estudos e de predileção dela. O que existe na estrutura musical da obra são massas corais de adultos e crianças, intercaladas por solos de cantores de registros vários. A autora observa que a produção de Orff é um amálgama do teatro musical, da cantata, do oratório e de uma ópera estilizada, onde o Orff reúne vários estilos musicais.

Dalma apenas tangencia o fato de que, estreada em 1937, seria o autor adepto do nazismo, até pelos tons marciais da abertura da obra. Ao contrário, centra-se o livro nas qualidades artísticas e não na vida pessoal dele ou nas trágicas questões da época em que Carmina Burana veio a lume. Dalma Nascimento, na verdade, disseca toda a época medieval de que provém o sumo da obra, projetando com erudição e categoria o arcabouço material das confluências da arte produzida nos dez séculos da Idade Média. Observa também sobre as marcas e consequências culturais que aquele período nos legou, a nós, povos novos da América.

Nos estudos acadêmicos de hoje, são cada vez mais presentes os levantamentos dos laços do conjunto medieval, em especial o legado galaico-português. A autora examina como a lírica trovadoresca da Península Ibérica singrou os tempos e fecundou o proceder artístico e estético no Brasil, dos tempos coloniais aos dias de agora. Chamou-me atenção o espaço dedicado por ela a um tema de minha preferência quando se fala do legado medieval na alma do povo brasileiro: os remanescentes da herança trovadoresca galega e portuguesa na música popular, não apenas do Nordeste, mas até de insuspeitadas regiões mais recônditas do Brasil, como alguns núcleos de músicas em certos pontos das fronteiras do país com os vizinhos da América do Sul.

A poesia dos repentistas nordestinos é marcada por veemência, fôlego e eletricidade. O cheiro medievo fica marcado no ar, perfumando os ouvidos e embriagando as sensibilidades mais agudas. A musicalidade de notáveis artistas populares como o cego Aderaldo ou Patativa do Assaré – eu tive a honra de conhecê-los e deles ouvir alguns repentes comovedores, em que a refinada poesia matuta era universal – significa um prêmio de distinção e fidalguia para a música de qualquer país do mundo. Os repentistas, sobretudo os do Nordeste, esgrimem, com suas modinhas desafiadoras, estruturadas em improvisos que surpreendem qualquer ouvinte, uma herança fincada nos rapsodos da Península Ibérica, com as cantigas de amigo e de amor. E não só eles e muitos dos seus derivados (tão extensos que nem cabe aqui abordar), senão também os festejos populares, são igualmente um legado que tem a mesma procedência.

A Idade Média inspirou festas populares e religiosas, espalhadas ainda hoje pelo Brasil. Basta citar algumas mais reconhecidas como as Folias do Divino em Parati, ou as Cavalhadas de Pirenópolis (Goiás), estas celebrando in memoriam os torneios e as lutas entre cristãos e mouros. Folguedos iguais são praticados em regiões do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Ainda reluz em Campos dos Goytacazes a Folia de Santo Amaro, que reitera, como as demais, as tradições preservadas pelos colonizadores portugueses desde séculos muito anteriores à descoberta do Brasil.

A música das feiras e das portas de igreja do Nordeste, executada pelos repentistas e músicos populares, inspiraria produções mais eruditas como a Orquestra Armorial, com seus pífanos (os pifes) e rabecas, criada pelo gênio de Ariano Suassuna, ele próprio herdeiro direto do legado medievo-ibérico. Sua obra-prima, o Auto da Compadecida, remete ao teatro de Gil Vicente e aos antigos milagres provocados pela religiosidade popular de sempre. O texto e a poesia de Suassuna preservam certa intimidade com as canções de romaria, assim como a literatura de cordel guarda em seus folhetos e em suas capas (de gravura em madeira) as narrativas de lendas e histórias dos artistas populares, talvez os mesmos goliardos. Há ainda hoje no Brasil um raro autor-cantor de escolaridade acadêmica que produz, de forma obstinada, todo um cancioneiro herdado dos menestréis medievais: Elomar, que vive recluso com a família e com uma criação de bodes, no sertão baiano.

Dalma conclui que, pela permanência da Idade Média em todas as manifestações de arte, não mais deveria ser aclamada como “a noite dos séculos” ou “a idade das trevas”, já que seu luminoso universo pulsa com vigor na memória dos tempos presentes. Ela deduz que “nesse propósito de rejuvenescer suas produções artísticas, avultam-se, sem dúvida, os Carmina Burana, cânticos de forte teor encantatório produzidos pelos goliardos, mas repristinados no século XX pela potência criadora da poética musicalidade de Carl Orff”.

Dalma Nascimento, que faz abranger em seu livro a totalidade dos eventos sequenciais da obra de Carl Orff, dedica uma parte alentada ao cenógrafo e coreógrafo francês Jean-Pierre Ponnelle. O artista francês contemporâneo, especialista em montagens operísticas, encantou-se pela Carmina Burana, adaptando-a criativamente em soluções pessoais. O leitor adentra em numerosos (10) itens a cuidadosa pesquisa sobre Ponnelle, possivelmente o artista mais criativo a manusear e recriar a cantada cênica de Orff.

 

Este livro Carmina Burana: magia e questionamento cultural certamente será a mais completa obra de reflexão e pesquisa sobre Carmina Burana. Cabe transcrever aqui – e o faço até pela obrigação de bem esclarecer o leitor – as palavras definidoras da autora sobre este monumental trabalho de pesquisa: “O livro passeia por diferentes procedimentos históricos, filosóficos, míticos, místicos, sagrados; discute cultura, magia, mito, sagrado, arte dramática; tangencia, bem de leve, costumes de variadas épocas e o contexto alemão, além de problemas esotéricos e lâminas de tarô, estas muito presentes na cantata.”.

Cabe a mim agradecer à Dalma Nascimento o privilégio de ler em primazia seu trabalho. Que certamente será aceito como uma das pesquisas acadêmicas mais originais e brilhantes feitas para a obra de Carl Orff e de seu riquíssimo e surpreendente contexto histórico e estético. E cuja universalidade do tema deverá ter o destino de ser traduzida para outras línguas. Ao menos para o Alemão.

 

Ricardo Cravo Albin

Musicólogo, jornalista, historiador, crítico de arte, advogado, autor do Dicionário Cravo Albin, obra de referência com cerca de doze mil verbetes sobre MPB, além de idealizador e primeiro diretor do Museu da Imagem do Som. Atualmente, é Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e da Academia Carioca de Letras.



Dalma Nascimento e Ricardo Cravo Albin


Um comentário:

  1. Amigo Alberto fico contente em ter você por perto para nos encaminhar a leituras e reflexões intensas. Já tenho afirmando e reafirmo: Dalma Nascimento é um primor de humanidade e maior ainda na escrita. Parabéns ao presidente do Pen Clube do qual sou sócia efetiva com orgulho, que tão bem definiu a autora, pontuando: [...] que de mais a mais, me surpreendeu e encantou a forma da linguagem de Dalma, a riqueza de seu vocabulário, a sacralidade do encadeamento do pensamento que era exposto voluptuosamente no texto. define a escritora:".
    Meu abraço literário com carinho.

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