quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

“O INCANDESCENTE CALDEIRÃO LITERÁRIO, HISTÓRICO E SOCIAL DO CEARENSE CLÁUDIO AGUIAR” - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO

 


(Filme do momento em que Dalma Nascimento presenteia
Claudio Aguiar com um prato de família, demonstrando
o seu afeto)

A ÚLTIMA NOITE DE KAFKA E  O CALDEIRÃO SOCIAL DE  CLÁUDIO AGUIAR  - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO. HOMENAGEM AO ESCRITOR E DRAMATURGO, EX-PRESIDENTE PEN CLUBE DO BRASIL, INSTITUIÇÃO QUE DALMA NASCIMENTO É MEMBRO EFETIVO DESDE 1982.

                      

                                             

Com muito mais de 30 livros publicados e inúmeros prêmios, dentre eles o famoso Jabuti, Cláudio Aguiar é sem dúvida, um  dos mais representativos  nomes  da tradição literária do nordeste, firmando-se, cada vez, como um dos atuais valores nacionais.  Sua  extensa escrita, de  tão variados matizes, circula por diferentes horizontes temáticos na multiplicidade  de formas  literárias.  Sem perder a dimensão do centro sempre poético, o escritor vai dos versos altamente filosóficos ao texto teatral,   passando pela estruturação de contos, romances,  ensaios, biografias, obras em  que o verbo  de Aguiar normalmente   se incendeia  no  incandescente magma de questões sociais.

 

         Dotado da modéstia dos verdadeiros grandes, que, na aparente sombra iluminam,  ele aguarda,  sem poses narcísicas,  quem o descubra.  Apesar de minha frequente presença no PEN Clube, só  percebi, em plenitude, o seu vigoroso potencial  estético, quando   um grupo de atores do nordeste  representou a   peça teatral de Cláudio,  A ÚLTIMA NOITE DE KAFKA no Pen Clube.  E me encantei. Desde  então, passei a ler suas obras. Dentre  elas, o romance CALDEIRÃO é o de que mais gosto. Digno de ser transposto ao cinema.

 

                   Cambiâncias de lembranças do mundo teatral de Aguiar

 

Não somente  CALDEIRÃO  deveria ser transformado em  filme.  O monólogo  A ÚNICA NOITE DE KAFKA, peça  teatral de  Aguiar  também.  Nela, nosso autor deu asas à fantasia ficcional e idealizou como teriam sido os derradeiros instantes do escritor tcheco, apresentando soluções cênicas  bem urdidas, impregnadas do pathos trágico  peculiar à vida  de Kafka.

 

         Graças à afinidade eletiva de longa data com a escrita e a ambiência da época, Cláudio Aguiar  transpôs, de forma recriada  para o discurso teatral, a noite terminal de  Kafka atormentado, consumido pela dor e pela perda do uso da palavra, com a consciência da morte a chegar.

 

           Ao mesmo tempo, Aguiar revistou  temas dos  seus livros, aludiu  a personagens,  contextualiza-os , intercambiando também  com lembranças de pessoas que pontificaram, com  expressividade, na vida do autor de  A METAMORFOSE.  Dentre eles, Marx Brod, Dora e o Dr.Klopstock,  no sanatório.

 

         Ao misturar  fatos  verídicos da  vida do escritor a  personagens dos seus livros,  conjugados a pessoas   verídicas, Claudio  Aguiar, num jogo fantástico de absorções estilizadas ou de evocações associativas da produção kafkiana,  desenvolve, na escrita, a  peculiar  intertextualidade dos tempos presentes, o que comprova seu traço de atualidade.

Iniciou-se o espetáculo  da peça de Aguiar, no salão do PENClube com Kafka  afásico no leito do hospital de Kierling, em Viena, na noite de 3 junho de 1924, conforme  a rubrica   textualiza.  Dramatizada com excelência  pelos  atores do Nordeste, Manoel Constantino e Moisés Neto, apoiados nos efeitos cenográficos de Ibson Quirino,e todos sob a direção José Francisco Filho, os atores deram vigor e emoção às palavras do introito ao final da representação.

Através da  janela, Kafka moribundo divisa o Danúbio, mas seu pensamento, meio delirante, está em Praga. Imerso na cambiante  atmosfera entre fantasia e realidade, a mente de Kafka flutua  em  enevoados fluxos de memórias indo e vindo, em busca das paisagens natais.

 

No fundo, a música  La Moravia, muito bem contextualizada,   conferia  ambiência  propícia para o aflorar de memórias. E no lusco-fusco de neblinadas lembranças de Kafka, simbolicamente entreluziam, no palco improvisado, sensações recordadas. Com efeitos especiais,  os atores  lançaram no palco saltitantes  bolinhas policrômicas, cujos tons  se metamorfoseavam, inundando a cena. Metáforas do adejar de sonhos e fantasias do autor tcheco, que, apesar de moribundo, ansiava por voltar ao passado.

 

Fragmentos de si e do seu mundo interno  casavam-se em fraterno encontro com a música  de  Moravi , muito bem escolhida, por sinal, consubstanciando espetáculo cênico, confluência das artes: teatral, musical e literária. Apoteose final. Excelente recriação dos momentos finais de Kafka na percuciente escrita de Luís Cláudio Aguiar, representada por sensíveis atores . Texto agora publicado em livro pela Ibis Libris, sob a chancela da Academia Brasileira de Letras.  

            O  pensamento de uma sociedade mais justa.

A polissêmica  narrativa de Aguiar ganha conotações políticas em Francisco Julião: uma biografia sobre a trajetória do mártir pernambucano da Revolução de 1817 e 1824, criador das Ligas Camponesas, obra  que concedeu a Cláudio o disputadíssimo Prêmio Jabuti, 2015. Na mesma linha de pensamento, escreveu o  auto dramático Suplício de Frei Caneca no qual Aguiar– anterior ao Auto do frade, de João Cabral, fato de  relevância –, revisitou literariamente a vida heroica desse memorável vulto nacional.

 

Mais uma vez, a pena poética de Cláudio se inflama no compasso politico social em Caldeirão, livro também premiado e com tradução na França e  Espanha. A obra relata a pungente epopeia do povo da chapada do Cariri cearense violentamente carbonizado pelo fogo das espingardas militares do poder brasileiro.

 

Caldeirão centra-se na incandescência dos conflitos comunitários do Nordeste brasileiro, insuflados pelos latifundiários da região, visando à posse das terras para o fomento de riqueza pessoal. Impregnado de tons poéticos, o romance rememora fatos ocorridos na destruição do Caldeirão, núcleo humano liderado pelo beato José Lourenço, o soter, o salvador messiânico de uma população interiorana, simplória e sofrida, mergulhada em fanatismo e revolta.

 

O texto estabelece fértil interlocução entre a História e a Literatura, além da densidade do timbre filosófico de temas sobre a humana  condição. Aliás, estes três horizontes culturais sempre frequentam as criações desse celebrado escritor, consciente de que a literatura coparticipa do processo histórico, espelhando-o ou, mimeticamente,  prismatizando-o.

 

O traço poético de Cláudio Aguiar ilumina com lentes fortes a sangrenta história do CALDEIRÃO, para não permitir que "o princípio da esperança"- preconizado pelo  filósofo alemão da utopia concreta Ernst Bloch -, morra no coração da humanidade. E que "a esponja do tempo" não apague cenas pungentes da realidade brasileira que apontem para futuras possibilidades de mudanças.   

         

CALDEIRÃO se inicia no velório do beato José Lourenço com a presença de um repórter, vindo especialmente da capital para noticiar o acontecido no interior do Ceará. Com episódios estruturados em flashback, o romancista, no perfeito domínio das técnicas narracionais, passa à escrita a voz onisciente do mestre Bernardino, venerável figura guardiã das lembranças comunitárias.

Por ter o dom de ser dono da memória local, o ancião lembra a fala dos velhos narradores das arcaicas sociedades tribais. No longínquo passado, eles eram representadas pelos aedos e rapsodos gregos, pelos bardos celtas, pelos griots africanos.

 

Com seu saber de experiência feito, Mestre Bernardino igualmente recorda o Velho do Restelo camoniano e também faz pensar no desempenho do arconte, aquele digno cidadão  da antiga Grécia, respeitado pela comunidade, preservador e intérprete dos documentos, das leis e da memória arcaica da polis.

 

Investido, pois, desse poder coletivo, o velho contador da saga do CALDEIRÃO, na escrita de Cláudio Aguiar, representa o arquivo vivo daquela comunidade rural do Nordeste do Brasil. É mesmo o arconte dos eventos do arraial dizimado em sua onisciência demiúrgica.

 

Abre-se a cena narrativa com Mestre  Bernardino descrevendo ao jornalista as funestas ocorrências no Caldeirão e as lembranças de um novo reino que o beato com seus guerreiros construíram. Entretanto, ele fora barbaramente destroçado pelas tropas governamentais mancomunadas com as forças econômicas e políticas dos fazendeiros. Sendo a história revivida na perspectiva das minorias – portanto, fora do discurso hegemônico do poder instituído –, a narrativa está em consonância com os pressupostos teóricos da Nova História (de resto, já não tão nova assim).

 

A epígrafe do livro,  eloquente máxima de Máximo Gorki, já define o horizonte em que evoluirá a trama, introduzida com três páginas antológicas. Ali já estão configurados os pilares básicos norteadores da obra. Tendo ao fundo os sinos a dobrarem os sons monótonos da "cega-rega" pelo finado, o narrador onisciente põe-se a "gotejar pingos de esclarecimentos" ao recém-chegado jornalista.

 

Descreve o local dos fatos, as causas do desfecho, as ligações com o universo do Padre Cícero, além da ênfase à expropriação dos trabalhadores, enfrentando as diferenças sociais "com a pele na quentura jorrosa de lágrimas do trabalho" (p. 35) para enriquecerem os latifundiários, donos da terra.

Os fragmentos acima, entre aspas, testemunham a construção política do texto. Narrando vivências do dia a dia, o livro conduz o leitor a repensar posições hierárquicas e valores cristalizados, provocando-o a possíveis mudanças. Em meio a acerbas críticas à conjuntura social, há procissões, rezas, promessas, a seca com a espada de Dâmocles sobre as cabeças dos retirantes, "destroçando os caminhos de esperança" (p. 201), entre "os solavancos do tempo".

 

Quanto à construção textual e à cristalina linguagem, as expressões metafóricas são primorosas e muitas vezes cantantes, musicais mesmo. São pinturas de cenas, verdadeira ekfhrasis (ecphrasis),  não fosse o autor, além de literato, pintor, músico também. Oportuna é a lembrança de três parágrafos, logo no início (p. 16) da sua prosa literária "visual" e "sonora", atestando também sua maneira pitoresca de construir imagens acordes com o pensamento simples do povo, embora rico de verdades essenciais.

 

De repente, nas frases surgem neologismos "guimarãesrosantes", refletindo a temperatura poética do homem do sertão. Anexins, expressões da oralidade, metáforas do cotidiano, impregnadas do saber coloquial, atravessam a trama, comprovando o domínio da língua e da linguagem literária do autor.  Sem, contudo, afastar-se de imagens do popular transfiguradas  numa  pros poemáticas.

 

Impressionam a fluência e a naturalidade com que Aguiar penetrou na pulsante alma de gente humilde, embora ele tenha sido educado na cultura erudita, acadêmica, com doutoramento na Europa, principalmente  na Espanha. Cintilando a palavra no húmus da terra nativa, ele foi à arkhé, aos fundamentos da vivência camponesa, submergiu nos arcanos da tradição, nas arcas da cultura popular para reconstituir os laços deturpados, sobretudo vilipendiados pelo poder majoritário dizimando o vilarejo do Caldeirão. Tudo, em consequência de questões agrárias, mascaradas com tintas do fanatismo religioso.

 

Voltado igualmente para questões relativas ao mito e ao sagrado, Cláudio   imergiu nas crenças daquela gente rústica, nos milagres, nas romarias, nas procissões, quando ainda o cristianismo se mesclava a resíduos de um arcaico paganismo na alma coletiva, entranhada de superstições, sortilégios e encantamentos. Cláudio Aguiar sugeriu aquele conhecido espaço do "entre-dois" momentos culturais e religiosos do limite-limiar da fímbria de transformações. Situou os seres do Caldeirão, alguns ainda na fresta escura das situações conflituosas, e, ao mesmo tempo, outros no vislumbre luminoso "do que ainda não é", mas "que já está para ser" no processo das mudanças da "dialética da esperança" de que fala Pierre Furter na mesma trilha da utopia de Bloch.

 

Custodiando a divindade nas forças da natureza – "já que Deus está em toda a parte" – conforme diz o texto nos preâmbulos, o narrador traz à luz a cosmovisão panteísta do sagrado fundamental. Trata-se do sacer das culturas mais primitivas, em que o profano não se opõe absolutamente ao sagrado, mas faz parte dele, já que são os dois lados da mesma moeda. Nesse sagrado primordial, sem os maniqueísmos divisores da ética judaica e cristã, tanto o bem quanto o mal se enlaçam fraternos com a mesma valência e poder.

 

Entretanto, a grande mensagem do livro, é, sem dúvida, a de que "a verdadeira luz não se apaga". No fundo é o "princípio da Esperança", que, segundo Bloch, atua e constitui a história humana. A advertência do mestre Bernardino – feita justamente no início da narrativa – ao garoto de não deixar a vela apagar-se junto ao caixão do morto, é altamente simbólica. Não se trata apenas de mera superstição da gente interiorano interpretada na superfície do sentido denotativo. Naquele contexto altamente alegórico, o texto sugere conotações maiores do que as palavras dizem.

 

Nas entrelinhas, a escrita insinua que a vela do beato deveria continuar sempre acesa, não apenas para conduzi-lo com claridade ao outro mundo. Mas para a sua luz ser passada a gerações vindouras. Também não é gratuito o fato de o mestre ter-se dirigido justamente ao menino, ao futuro homem de manhã, "o ainda-não-sendo, mas campo de possibilidades" – usando-se aqui ainda expressões de Bloch.

 

Isso demonstra, sem dúvida, sutilmente que a verdadeira utopia, numa práxis efetiva, malgrado as contradições existentes e as cenas de extermínio do arraial nordestino do Caldeirão não se extinguiriam com José Lourenço, o beato morto.

 

Tecendo a manhã, novas velas viriam para clarear o mundo; novas luzes para transformá-lo, trazendo, na alvorada da tenda do amanhã, a grande Luz-Balão, anunciada pelo poema de João Cabral. É justamente essa luz do mártir, que Cláudio Aguiar – qual maratonista do facho olímpico –,  legou ao menino para passar ao povo brasileiro as brasas vivas, incendiando mensagens em seu CALDEIRÃO literário.

 



Dalma Nascimento



Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária (UFRJ), professora aposentada da UFRJ. Atual pesquisadora do Centro de Estudos Afrânio Coutinho (UFRJ) com trabalhos sobre : Memória, Mito, Utopia, Idade Média, Feminino. Publicações em Passages de Paris (nº 6, nº 7 e nº 8). Livros recentes: Antígonas da Modernidade: performances femininas na vida real ou na ficção literária,de 2013; Mitos e Utopias dos teares literários às páginas dos periódicos, 2014; Memórias em jornais, 2014,os três pelas Editora Tempo Brasileiro; Idade Média: contexto, celtas, mulher, Carmina Burana e ressurgências atuais, 2015; Das neblinas e das colheitas de um memorial, 2015; O velho, a mulher e o imigrante: três vozes na dinâmica atual, 2015; Nélida Piñon nos labirintos da memória, 2015, os quatro últimos publicados pela Editora Parthenon Centro de Arte e Cultura.


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