A ÚLTIMA NOITE DE KAFKA E O CALDEIRÃO SOCIAL DE CLÁUDIO AGUIAR - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO. HOMENAGEM AO ESCRITOR E DRAMATURGO, EX-PRESIDENTE PEN CLUBE DO BRASIL, INSTITUIÇÃO QUE DALMA NASCIMENTO É MEMBRO EFETIVO DESDE 1982.
Com muito
mais de 30 livros publicados e inúmeros prêmios, dentre eles o famoso Jabuti,
Cláudio Aguiar é sem dúvida, um dos mais representativos
nomes da tradição literária do nordeste, firmando-se, cada vez, como um
dos atuais valores nacionais. Sua extensa escrita, de tão
variados matizes, circula por diferentes horizontes temáticos na
multiplicidade de formas literárias. Sem perder a dimensão do
centro sempre poético, o escritor vai dos versos altamente filosóficos ao texto
teatral, passando pela estruturação de contos, romances,
ensaios, biografias, obras em que o verbo de Aguiar
normalmente se incendeia no incandescente magma de
questões sociais.
Dotado da modéstia dos verdadeiros grandes, que, na aparente sombra
iluminam, ele aguarda, sem poses narcísicas, quem o
descubra. Apesar de minha frequente presença no PEN Clube, só
percebi, em plenitude, o seu vigoroso potencial estético,
quando um grupo de atores do nordeste representou
a peça teatral de Cláudio, A ÚLTIMA NOITE DE KAFKA no Pen
Clube. E me encantei. Desde então, passei a ler suas obras.
Dentre elas, o romance CALDEIRÃO é o de que mais gosto. Digno de ser
transposto ao cinema.
Cambiâncias de lembranças do mundo teatral de Aguiar
Não
somente CALDEIRÃO deveria ser transformado em filme. O
monólogo A ÚNICA NOITE DE KAFKA, peça teatral de Aguiar também. Nela,
nosso autor deu asas à fantasia ficcional e idealizou como teriam sido os
derradeiros instantes do escritor tcheco, apresentando soluções cênicas
bem urdidas, impregnadas do pathos trágico peculiar à
vida de Kafka.
Graças à afinidade eletiva de longa data com a escrita e a ambiência da época,
Cláudio Aguiar transpôs, de forma recriada para o discurso teatral,
a noite terminal de Kafka atormentado, consumido pela dor e pela perda do
uso da palavra, com a consciência da morte a chegar.
Ao mesmo tempo, Aguiar revistou temas dos seus livros,
aludiu a personagens, contextualiza-os , intercambiando também
com lembranças de pessoas que pontificaram, com expressividade, na vida
do autor de A METAMORFOSE. Dentre eles, Marx Brod, Dora e o
Dr.Klopstock, no sanatório.
Ao misturar fatos verídicos da vida do escritor a
personagens dos seus livros, conjugados a pessoas verídicas,
Claudio Aguiar, num jogo fantástico de absorções estilizadas ou de
evocações associativas da produção kafkiana, desenvolve, na escrita,
a peculiar intertextualidade dos tempos presentes, o que comprova
seu traço de atualidade.
Iniciou-se
o espetáculo da peça de Aguiar, no salão do PENClube com Kafka
afásico no leito do hospital de Kierling, em Viena, na noite de 3 junho de
1924, conforme a rubrica textualiza. Dramatizada com
excelência pelos atores do Nordeste, Manoel Constantino e Moisés
Neto, apoiados nos efeitos cenográficos de Ibson Quirino,e todos sob a direção
José Francisco Filho, os atores deram vigor e emoção às palavras do introito ao
final da representação.
Através
da janela, Kafka moribundo divisa o Danúbio, mas seu pensamento, meio
delirante, está em Praga. Imerso na cambiante atmosfera entre fantasia e
realidade, a mente de Kafka flutua em enevoados fluxos de memórias
indo e vindo, em busca das paisagens natais.
No
fundo, a música La Moravia, muito bem contextualizada,
conferia ambiência propícia para o aflorar de memórias. E no
lusco-fusco de neblinadas lembranças de Kafka, simbolicamente entreluziam, no
palco improvisado, sensações recordadas. Com efeitos especiais, os
atores lançaram no palco saltitantes bolinhas policrômicas, cujos
tons se metamorfoseavam, inundando a cena. Metáforas do adejar de sonhos
e fantasias do autor tcheco, que, apesar de moribundo, ansiava por voltar ao
passado.
Fragmentos de si e
do seu mundo interno casavam-se em fraterno encontro com a música
de Moravi , muito bem escolhida, por sinal, consubstanciando espetáculo
cênico, confluência das artes: teatral, musical e literária. Apoteose final.
Excelente recriação dos momentos finais de Kafka na percuciente escrita de Luís
Cláudio Aguiar, representada por sensíveis atores . Texto agora publicado em
livro pela Ibis Libris, sob a chancela da Academia Brasileira de
Letras.
O pensamento
de uma sociedade mais justa.
A polissêmica
narrativa de Aguiar ganha conotações políticas em Francisco Julião: uma
biografia sobre a trajetória do mártir pernambucano da
Revolução de 1817 e 1824, criador das Ligas Camponesas, obra que concedeu
a Cláudio o disputadíssimo Prêmio Jabuti, 2015. Na mesma linha de pensamento,
escreveu o auto dramático Suplício de Frei Caneca no
qual Aguiar– anterior ao Auto do frade, de João Cabral, fato
de relevância –, revisitou literariamente a vida heroica desse memorável
vulto nacional.
Mais
uma vez, a pena poética de Cláudio se inflama no compasso politico
social em Caldeirão, livro também premiado e com tradução na
França e Espanha. A obra relata a pungente epopeia do povo da chapada do
Cariri cearense violentamente carbonizado pelo fogo das espingardas militares
do poder brasileiro.
Caldeirão centra-se
na incandescência dos conflitos comunitários do Nordeste brasileiro, insuflados
pelos latifundiários da região, visando à posse das terras para o fomento de
riqueza pessoal. Impregnado de tons poéticos, o romance rememora fatos
ocorridos na destruição do Caldeirão, núcleo humano liderado pelo beato José
Lourenço, o soter, o salvador messiânico de uma população
interiorana, simplória e sofrida, mergulhada em fanatismo e revolta.
O
texto estabelece fértil interlocução entre a História e a Literatura, além da
densidade do timbre filosófico de temas sobre a humana condição. Aliás,
estes três horizontes culturais sempre frequentam as criações desse celebrado
escritor, consciente de que a literatura coparticipa do processo histórico,
espelhando-o ou, mimeticamente, prismatizando-o.
O
traço poético de Cláudio Aguiar ilumina com lentes fortes a sangrenta história
do CALDEIRÃO, para não permitir que "o princípio da esperança"-
preconizado pelo filósofo alemão da utopia concreta Ernst Bloch -, morra
no coração da humanidade. E que "a esponja do tempo" não apague cenas
pungentes da realidade brasileira que apontem para futuras possibilidades de
mudanças.
CALDEIRÃO
se inicia no velório do beato José Lourenço com a presença de um repórter,
vindo especialmente da capital para noticiar o acontecido no interior do Ceará.
Com episódios estruturados em flashback, o romancista, no perfeito
domínio das técnicas narracionais, passa à escrita a voz onisciente do mestre
Bernardino, venerável figura guardiã das lembranças comunitárias.
Por
ter o dom de ser dono da memória local, o ancião lembra a fala dos velhos
narradores das arcaicas sociedades tribais. No longínquo passado, eles eram
representadas pelos aedos e rapsodos gregos, pelos bardos celtas, pelos griots africanos.
Com
seu saber de experiência feito, Mestre Bernardino igualmente recorda o Velho do
Restelo camoniano e também faz pensar no desempenho do arconte, aquele digno
cidadão da antiga Grécia, respeitado pela comunidade, preservador e
intérprete dos documentos, das leis e da memória arcaica da polis.
Investido,
pois, desse poder coletivo, o velho contador da saga do CALDEIRÃO, na escrita
de Cláudio Aguiar, representa o arquivo vivo daquela comunidade rural do
Nordeste do Brasil. É mesmo o arconte dos eventos do arraial dizimado em sua
onisciência demiúrgica.
Abre-se
a cena narrativa com Mestre Bernardino descrevendo ao jornalista as
funestas ocorrências no Caldeirão e as lembranças de um novo reino que o beato
com seus guerreiros construíram. Entretanto, ele fora barbaramente destroçado
pelas tropas governamentais mancomunadas com as forças econômicas e políticas
dos fazendeiros. Sendo a história revivida na perspectiva das minorias –
portanto, fora do discurso hegemônico do poder instituído –, a narrativa está
em consonância com os pressupostos teóricos da Nova História (de resto, já não
tão nova assim).
A
epígrafe do livro, eloquente máxima de Máximo Gorki, já define o
horizonte em que evoluirá a trama, introduzida com três páginas antológicas. Ali
já estão configurados os pilares básicos norteadores da obra. Tendo ao fundo os
sinos a dobrarem os sons monótonos da "cega-rega" pelo finado, o
narrador onisciente põe-se a "gotejar pingos de esclarecimentos" ao
recém-chegado jornalista.
Descreve
o local dos fatos, as causas do desfecho, as ligações com o universo do Padre
Cícero, além da ênfase à expropriação dos trabalhadores, enfrentando as
diferenças sociais "com a pele na quentura jorrosa de lágrimas do
trabalho" (p. 35) para enriquecerem os latifundiários, donos da terra.
Os
fragmentos acima, entre aspas, testemunham a construção política do texto.
Narrando vivências do dia a dia, o livro conduz o leitor a repensar posições
hierárquicas e valores cristalizados, provocando-o a possíveis mudanças. Em
meio a acerbas críticas à conjuntura social, há procissões, rezas, promessas, a
seca com a espada de Dâmocles sobre as cabeças dos retirantes,
"destroçando os caminhos de esperança" (p. 201), entre "os
solavancos do tempo".
Quanto
à construção textual e à cristalina linguagem, as expressões metafóricas são
primorosas e muitas vezes cantantes, musicais mesmo. São pinturas de cenas,
verdadeira ekfhrasis (ecphrasis), não fosse o autor,
além de literato, pintor, músico também. Oportuna é a lembrança de três parágrafos,
logo no início (p. 16) da sua prosa literária "visual" e
"sonora", atestando também sua maneira pitoresca de construir imagens
acordes com o pensamento simples do povo, embora rico de verdades essenciais.
De
repente, nas frases surgem neologismos "guimarãesrosantes",
refletindo a temperatura poética do homem do sertão. Anexins, expressões da
oralidade, metáforas do cotidiano, impregnadas do saber coloquial, atravessam a
trama, comprovando o domínio da língua e da linguagem literária do autor.
Sem, contudo, afastar-se de imagens do popular transfiguradas numa
pros poemáticas.
Impressionam
a fluência e a naturalidade com que Aguiar penetrou na pulsante alma de gente
humilde, embora ele tenha sido educado na cultura erudita, acadêmica, com
doutoramento na Europa, principalmente na Espanha. Cintilando a palavra
no húmus da terra nativa, ele foi à arkhé, aos fundamentos da
vivência camponesa, submergiu nos arcanos da tradição, nas arcas da cultura
popular para reconstituir os laços deturpados, sobretudo vilipendiados pelo
poder majoritário dizimando o vilarejo do Caldeirão. Tudo, em consequência de
questões agrárias, mascaradas com tintas do fanatismo religioso.
Voltado
igualmente para questões relativas ao mito e ao sagrado, Cláudio
imergiu nas crenças daquela gente rústica, nos milagres, nas romarias, nas
procissões, quando ainda o cristianismo se mesclava a resíduos de um arcaico
paganismo na alma coletiva, entranhada de superstições, sortilégios e
encantamentos. Cláudio Aguiar sugeriu aquele conhecido espaço do
"entre-dois" momentos culturais e religiosos do limite-limiar da
fímbria de transformações. Situou os seres do Caldeirão, alguns ainda na fresta
escura das situações conflituosas, e, ao mesmo tempo, outros no vislumbre
luminoso "do que ainda não é", mas "que já está para ser"
no processo das mudanças da "dialética da esperança" de que fala
Pierre Furter na mesma trilha da utopia de Bloch.
Custodiando
a divindade nas forças da natureza – "já que Deus está em toda a
parte" – conforme diz o texto nos preâmbulos, o narrador traz à luz a
cosmovisão panteísta do sagrado fundamental. Trata-se do sacer das
culturas mais primitivas, em que o profano não se opõe absolutamente ao
sagrado, mas faz parte dele, já que são os dois lados da mesma moeda. Nesse
sagrado primordial, sem os maniqueísmos divisores da ética judaica e cristã,
tanto o bem quanto o mal se enlaçam fraternos com a mesma valência e poder.
Entretanto,
a grande mensagem do livro, é, sem dúvida, a de que "a verdadeira luz não
se apaga". No fundo é o "princípio da Esperança", que, segundo
Bloch, atua e constitui a história humana. A advertência do mestre Bernardino –
feita justamente no início da narrativa – ao garoto de não deixar a vela
apagar-se junto ao caixão do morto, é altamente simbólica. Não se trata apenas
de mera superstição da gente interiorano interpretada na superfície do sentido
denotativo. Naquele contexto altamente alegórico, o texto sugere conotações
maiores do que as palavras dizem.
Nas
entrelinhas, a escrita insinua que a vela do beato deveria continuar sempre
acesa, não apenas para conduzi-lo com claridade ao outro mundo. Mas para a sua
luz ser passada a gerações vindouras. Também não é gratuito o fato de o mestre
ter-se dirigido justamente ao menino, ao futuro homem de manhã, "o
ainda-não-sendo, mas campo de possibilidades" – usando-se aqui ainda
expressões de Bloch.
Isso
demonstra, sem dúvida, sutilmente que a verdadeira utopia, numa práxis efetiva,
malgrado as contradições existentes e as cenas de extermínio do arraial nordestino
do Caldeirão não se extinguiriam com José Lourenço, o beato morto.
Tecendo
a manhã, novas velas viriam para clarear o mundo; novas luzes para
transformá-lo, trazendo, na alvorada da tenda do amanhã, a grande Luz-Balão,
anunciada pelo poema de João Cabral. É justamente essa luz do mártir, que
Cláudio Aguiar – qual maratonista do facho olímpico –, legou ao menino
para passar ao povo brasileiro as brasas vivas, incendiando mensagens em
seu CALDEIRÃO literário.
Dalma Nascimento
Doutora em Literatura Comparada
e Teoria Literária (UFRJ), professora aposentada da UFRJ. Atual pesquisadora do
Centro de Estudos Afrânio Coutinho (UFRJ) com trabalhos sobre : Memória, Mito,
Utopia, Idade Média, Feminino. Publicações em Passages de Paris (nº 6, nº 7 e
nº 8). Livros recentes: Antígonas da Modernidade:
performances femininas na vida real ou na ficção literária,de 2013; Mitos e Utopias dos teares
literários às páginas dos periódicos, 2014;
Memórias em jornais, 2014,os três pelas Editora Tempo Brasileiro; Idade Média: contexto, celtas,
mulher, Carmina Burana e ressurgências atuais, 2015; Das neblinas e das colheitas de um
memorial, 2015; O
velho, a mulher e o imigrante: três vozes na dinâmica atual, 2015; Nélida Piñon nos labirintos da
memória, 2015, os quatro últimos publicados pela Editora Parthenon Centro
de Arte e Cultura.
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