sábado, 22 de janeiro de 2022

SEGUNDO DIA DOS COMENTÁRIOS DE DALMA NASCIMENTO SOBRE ALGUNS MOMENTOS DE “A REPÚBLICA DOS SONHOS” DE NÉLIDA PIÑON




 

Prezados leitores, eis o resumo, bem panorâmico, de certos momentos elaborados pela professora Dalma Nascimento de “A República dos Sonhos”, obra de Nélida Piñon.  O primeiro capítulo aludiu à vinda do  imigrante  Madruga  da  Galícia (região montanhosa de Sobreiro) a terras nacionais; à sua amizade dele com Venâncio;  ao sucesso econômico de Madruga; ao casamento  com a  piedosa e sonhadora Eulália;   à   vinda dos cinco filhos, de  tão peculiares tendências; à ênfase  à filha  Esperança, símbolo da nova mulher e à neta, Breta, filha de Esperança.

                                              

A importância dos narradores orais na obra de Nélida Piñon

Madruga era fascinado pela precocidade de Breta, a neta sensível e filha de Esperança. Porém, ele sempre entrava em disputa com Breta, pois ambos possuíam o mesmo espírito tenaz, forte, combativo – o mesmo daimon. Apesar de seu temperamento imbatível e do afrontamento nos atos, Madruga fertilizou o imaginário de Breta com o universo galego, pois,  trazia a terra natal, tatuada na alma. A memória levava-lhe à infância, feudo encantado, no qual ficara a presença do inesquecível avô Xan. Foi com Xan que Madruga, ainda garotinho, aprendeu a sonhar e a amar a tradição. Xan foi seu chão existencial, lembrança que o levava às existentes sobras de sua Sobreiro natal.

A memória leva-o diretamente à Galícia, cenário de sua infância. Por onde se movia como um caçador de borboletas. Sem se esquecer porém de recorrer ao avô Xan. Era ele o primeiro a fazê-lo voar, a lhe propor a abertura (p. 8).

Pelas cordas do coração, Xan acordava-lhe o refulgente passado. Porque Xan, igual aos primitivos druidas dos celtas, estava sempre presente  nos momentos inesquecíveis   do neto,  Normalmente,  contando-lhe  histórias, ensinava-lhe  a importância da  arte da palavra. E isto Madruga dizia a Breta: “Só as palavras essenciais comovem de verdade. (...) Lembre-se sempre do meu avô Xan  (p.22).

As referências ao velho narrador Xan  representam  um dos momentos mais líricos  do livro. O avô de  Madruga, em suas  narrativas, transitava no território sem fronteiras  do maravilhoso. Nele, fantásticos  enredos iam-se “logotecendo’, ou seja. tecendo nas palavras puras da tribo aqueles relatos populares que ficaram no avô de Breta para sempre. Xan “contando histórias em pedaços”(p.122), lembrava aqueles  velhos rapsodos, “bordacosturando”  fios que já vêm de muito longe, cintilando a ancestralidade  que se arrasta pelos elos do tempo.

Por sua vez , os racontos de Xan foram recebidos  de Salvador, um contador mais antigo ainda, que percorria a Galícia, escavando-lhe a seiva, em consagradas andanças, montado no seu cavalo Pégaso.  Por meio dos nomes de Salvador e Pégaso, a ficção relembra míticas memórias gregas. Salvador recorda o soter, o salvador da tradição e o soldador dos fragmentos lendários dispersos.  Salvador, sobre o dorso de Pégaso,  voava nas asas do mítico cavalo alado da tradição helena. Conforme  diz  a lenda, a patada de  Pégaso gerara, no  monte Parnaso, a fonte de Hipocrene, de cujas águas minava a inspiração   dos poetas.

O ato e a arte de narrar de Salvador e Xan penetravam nas fontes da origem galega, esquecidas pelos domínios da Espanha.. Assim,  as história da terra nunca morreriam. Eles  tinham  compromisso com as memórias mais ancestrais.  Com  suas  narrativas, os velhos narradores   reiluminavam  o que fora apagado, soterrado  pela supremacia dos fortes reis espanhóis.  Xan “deblaterava-se contra os castelhanos acusados de espoliar a Galícia” (p.84).

De fato,  os reis.” Isabel, Fernando e sucessores, além de privá-los da autonomia, haviam-lhes roubado a língua, o acervo dos mitos. E muitas destas lendas passavam agora por invenção castelhana” (p.84). De igual modo, “Madruga também reagia, irritado ante o fausto de Castela que os desfalcara do imaginário mais poderoso da Espanha” (p.85).

Porém, no céu cultural da Galícia,  as lendas de Xan, “faiscando como pirilampos”, revitalizam-se na mente  extasiada  da jovem, pois,  de acordo com o avô: “... desde menina Breta interessou-se por me ouvir. (...) Como se por mim falassem vozes anônimas. Especialmente aqueles velhos que me precederam em Sobreira” (p.221).

. Assim, as histórias nativas foram-se chegando ao universo  da pequena neta mediatizadas pelo patriarca da família. Pressentindo sua vocação de escritora, aos dez anos, o avô a levou à Galícia, à sólida matriz da aldeia. Ele queria “sobretudo afiar a memória e deixá-la de herança para Breta” (p.9), preparando-a para salvar recordações de Sobreira por meio da  escrita futura. “Porque só os artistas prorrogam a existência” (p.55), sentencia o narrador onisciente.

No mergulho às origens, ela recolheu os símbolos de além-mar, “joias faiscando de geração em geração”. No sagrado galego, a menina Breta descobriu sortilégios e bruxedos “de um povo cercado de pedras e entidades” (p.162), aí fazendo sua iniciação de futura narradora também.

Adulta, ela aventurou-se pelo universo primordial, mítico, sagrado do lendário nativo, ouvido na infância,  e as  lembranças de Xan, de Salvador, de  Madruga. de Eulália, de Venâncio, e dos outros filhos do clã eternizaram-se na letras literárias de Breta, alter-ego  da grande  romancista de agora, Nélida  Piñon,  a verdadeira autora do magistral livro “A República dos Sonhos’’.

 

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