sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

RELEMBRANÇAS DE 'A REPÚBLICA DOS SONHOS" LIVRO DE NÉLIDA PIÑON - TEXTO DE DALMA NASCIMENTO



Antes de ser lançado e colocado nas livrarias o magistral romance “A República dos Sonhos”, da imortal Nélida Piñon, a Professora Dalma Nascimento leu o texto, concedido pela autora, sendo a primeira pessoa a proferir palestra sobre ele no Brasil, no tradicional Congresso de Campina Grande, organizado pela professora Elizabeth Marinheiro. Depois, fez uma conferência na Academia de Letras da Bahia e na Espanha, nas cidades galegas de Vigo e Ourense, além de desenvolver o tema em vários locais da cultura brasileira

Por ser este livro um dos mais importantes de Nélida Piñon, o Focus Portal Cultural, convidou a professora Dalma Nascimento para resumir a monumental obra de 761 páginas em quatro postagens. Hoje é a primeira: a apresentação dos personagens principais da obra.


Relembranças de “A República dos Sonhos’ em quatro postagens

Texto de Dalma Nascimento


Orquestrada com três grandes temas irmanados, –a memória, o sonho e a arte –‘A República dos Sonhos‘, magistral obra de Nélida Piñon, transformou a questão do exílio em categoria estética, ao narrar o universo do imigrante Madruga, em ascensão econômica em terras brasileiras.

Impulsionado pela utopia do paraíso edênico das Américas, sonho de tantos imigrantes, Madruga, jovenzinho ainda, saiu da montanhosa região galega, assumindo a aventura da grande travessia do Atlântico. Em 1913, madrugando ainda nos começos do século, ele chega ao Rio de Janeiro.

No navio que o trouxe, num convés de terceira classe, Madruga conhece Venâncio, o misterioso garotinho de idade igual à sua. De personalidade diversa, Venâncio vem tangido pela melancolia. Carrega consigo dolorosas memórias de seu povo. Na ausência afetiva da pátria, Venâncio e Madruga se completam desde o encontro no navio, amizade alicerçada para sempre.

Dez anos após chegar ao Brasil, o já vitorioso Madruga retorna à terra natal para casar-se com Eulália, a piedosa filha de D. Miguel, orgulhoso fidalgo arruinado, ufano das tradições e glórias da História oficial. Eulália, piedosa e sonhadora, recolheu do pai as lendas da região altaneira, transmitindo à sua geração, os mitos a ela legados. A história se abre com a frase: ‘Eulalia começou a morrer na terça feira”.

Daí, a trama vai-se desenrolando numa grandiosa mistura de temas e espaços e o texto capta as diferenças por meio de duas cosmovisões – a de Madruga, rústico montanhês, vivendo a ideologia capitalista da expansão – e a de Eulália, com fantasias gloriosas, cultuando e cultivando memórias em preciosas caixas, cada uma dedicada a um filho. Eulália é a nobreza falida, em arroubos místicos, aspirando ao paraíso dos céus. Madruga é a ancestralidade camponesa, querendo os frutos da terra.

Enriquecido, ele constrói frente ao mar do Leblon, a casa grande, na qual lhe crescem os cinco filhos, de tendências tão diversas: Bento é o executivo pragmático excitado pelo poder, por títulos, medalhas, comendas. Deseja ser deputado. Miguel, o insaciável D. Juan, dilapida o dinheiro do clã.

Tobias, o guerrilheiro, é o advogado das causas falidas, dos deportados políticos, dos presos pelo AI 5, o terrível decreto da História oficial. Antônia, invejosa e amorfa, casa-se com Luiz Filho, sonhando ambos com o dinheiro do patriarca do clã.

Esperança, a filha iconoclasta, é aquela que ousa dizer “não” ao sistema estabelecido. Liga-se a um homem casado e, banida do lar, assume sozinha a paixão pela vida e o nascimento de Breta. Entretanto, Esperança morre em um desastre de carro. Sua morte alegoriza também, no contexto brasileiro, época de graves acontecimentos políticos, o simbólico falecer da esperança nos destinos da nossa pátria.

Breta, a neta de Madruga, de personalidade fortíssima herdada de Esperança, torna-se escritora. Independente e corajosa, ela reanima os sonhos da mãe. Por meio de ambas, a fala da mulher esplende em reivindicações. Seus gestos subversivos, desordens que pervertem o código, proclamam o direito à diferença. Afirmam a tenacidade da mulher, quebrando o esquema androcrático do pater familias.

Ambas representam o ser feminino, em força de aurora, saindo das margens do código para as páginas da História. Em contraste com Eulália, etimologicamente a boa fala, conciliadora e submissa ao autoritarismo de Madruga, Esperança e Breta se arriscaram. Seus atos libertários arrebentaram asfixiantes espartilhos sociais, e reatualizaram, simbolicamente, a tenacidade da mulher celta, hibernada nos guetos culturais de uma Galícia muito antiga.

As duas, mãe e filha reacenderam, nos tempos modernos, o sagrado primordial das sacerdotisas célticas, a potência das grandes mães, donas dos mistérios e das profecias. Breta, a artista, é a guardiã da história familiar e coletiva. Por meio da arte, ela se torna o arauto transfigurador da lembrança dos Madruga, do Brasil, da Galícia e da Europa.

Seu nome, Breta, diminutivo de Bretanha, recorda uma das últimas colônias galegas, reduto de resistência à expropriação estrangeira. Antenada às pulsações da vida e da memória ancestral, ela concretizou, por meio da escrita, os sonhos familiares. Sem dúvida, Breta é alter-ego de Nélida, ao transformar em letra literária a história de sua família.

A narrativa tem como pano de fundo episódios candentes dos problemas nacionais e estrangeiros em oitenta anos do século XX, e os fatos se entrelaçam com a arqueologia cultural espanhola, especialmente galega. Em extraordinário jogo de tempos e espaços, o texto garimpa remotíssimos fundamentos residuais das mentalidades céltico-bretãs, já descaracterizadas, em épocas pretéritas pelo imperialismo romano. E chega aos tempos bem próximos de nosso agora.

Eis, em linhas bem gerais, alguns informes pontuais da trama. Amanhã continuação. Aguardem outro capítulo de “A República dos Sonhos”.

Nota: texto retirado, de forma fragmentada, de meu livro: “Nélida Piñon nos labirintos da memória”. 1º tomo da série de 5 livros sobre a obra de Nélida Piñon. Niterói, Tempo Brasileiro. 2015.




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