segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

QUARTA E ÚLTIMA POSTAGEM DA OBRA “A REPÚBLICA DOS SONHOS” DE NÉLIDA PINÕN. TEXTO DA PROFESSORA DALMA NASCIMENTO, GRANDE ESPECIALISTA NA OBRA DA AUTORA




 

O tema do homem que deixa a pátria para aventurar-se em terras estrangeiras, por diferentes motivos, atravessa a literatura universal. Desde a “Odisseia” de Homero, com Ulisses, partindo e retornando a Ítaca dos seus sonhos, até a saudade  dos poetas românticos com as “Canções do exílio” de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, e, no Modernismo, com as recriações de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Mário Quintana,  Vinicius de Moraes, Moacyr Félix, Drummond e outros, o tema do exilado, paralelo ao do imigrante - apenas diferente na causa do afastamento da pátria - desliza, normalmente, na obra de grandes escritores.

 

De igual modo,  Nélida Piñon, representada no livro “A República dos Sonhos’’  pela escritora Beta, transformou a Galícia e a vida do imigrante num dos motivos centrais de sua ficção. Isso,  graças à intensa ligação com avô Daniel, inspirador do personagem Madruga, ao viver a experiência do imigrante em terras brasileiras e aqui triunfar.

 

Num extenso painel narrativo de memórias, travessia marítima, estilos, cruzamentos culturais, jogo de espaço, de tempos conjugados e bem construídos, a obra “A República dos Sonhos” transita da arqueologia das origens galegas, berço familiar da autora, à realidade brasileira da época do  terrível AI5.

 

No adensamento de situações dramáticas com signos políticos embutidos nas situações narrativas – pois a escrita plural, poliédrica de Piñon  circula em múltiplos horizontes – o livro traz um caudal de reminiscências, de sonhos, mas também um pequenino toque de certo desencanto, inclusive em Eulália, a matriarca do clã. É  ao mesmo tempo traça uma reflexão do Brasil da época, das mazelas sociais descritas em compasso com questões humanas atemporais.

 

No brilho da palavra bem colocada, a  eloquente exposição de memórias pessoais, ancestrais de marcas psicológicas e políticas do  mundo do clã  dos Madruga, simboliza também  nossa humana condição e “o sentido teatral do mundo”.

 

Como acontece ao término de um livro e também em vários outros, a narrativa de Nélida Piñon, semelhante ao Proteu da lenda, sempre passa  por metamorfoses e retorna  reabastecida de inovadoras cintilações, sem, contudo, perder as marcas do passado.   Também igual a um camaleão, sua arte absorve inusitadas cores, viaja por desconhecidas trilhas, capta o que pulsa nos movimentos artísticos e culturais do mundo e estabelece a ligação interativa  com áreas afins de sua literatura.

 

Além disso, a escrita de Nélida  é mercurial. Possui   a química fluida  daquele elemento que forma criativos compostos e se adapta, com mobilidade e ligeireza, a diversos envoltórios, a  deslizar por diversificadas  formulações estéticas. O termo mercurial logo lembra Mercúrio, o deus dos romanos, o Hermes dos gregos, responsável pela eloquência,  pelo comércio, pelas viagens, além de possuir o caduceu, a vara dos arautos e dos emissários.

 

Com asas nos pés para as grandes travessias, o mensageiro dos deuses liga-se ao argentum vivum que os alquimistas representam como símbolo do planeta. Implicitamente, todos esses símbolos gravitam no verbo da escritora, ao construir “A república dos Sonhos’’ em philia dialógica com tantos saberes.

 

Transformando sentimentos em letras, há passagens de “A república dos sonhos” em que o leitor pressupõe estar “vendo” a cena desenrolar. Já em outras é o sentimento humano que nela  palpita  a conhecida asserção do poeta latino Terêncio(190-159 a.C.): “Homo sum: humani mihi a me alienum puto”. (Sou homem: julgo que tudo que  seja do humano não é a mim indiferente).

           

Em verdade, tudo é importante nessa obra de tantos matizes. Com signos e emblemas  humanos e imagens vindas à escritora pelo navio do afeto, “A República dos  Sonhos  tornou Nélida a embaixatriz de  dois espaços culturais tão  distantes, mas para ela tão próximo: o Brasil e a Galícia. Ao cumprir  à altura a missão que lhe foi confiada  por Daniel, seu verdadeiro avô, Nélida retirou acanhadas aldeias galegas da obscuridade e deu-lhes a  devida dignidade nesta  magistral obra épica, lírica e dramática.

 

Hoje é o quarto encontro, término da  sequência proposta  por Alberto Araújo  para que eu escrevesse  sobre  “A República dos Sonhos”. Impossível  me  foi transmitir a força da linguagem poética que extravasa das letras da autora, bem como tentar detalhar as filigranas da complexa  e tão bem articulada trama composta   com 761 páginas da minha primeira edição.  Apenas alinhavei alguns aspectos, bem aligeirados desse livro, que eu conheci antes de sair publicado, e que volto a ele, descobrindo sempre e sempre algo novo, que me fascina  e  me  conduz  a  proclamar ser Nélida Piñon, uma das vozes significativas da cultura literária da atualidade.

 

Dalma Nascimento

Texto publicado em 31 de janeiro de 2022,

postagem ao Focus Portal Cultural do editor Alberto Araújo




(Trilha sonora para essa postagem)



Um comentário:

  1. Que maravilha. Duas mulheres gigantes da literatura nacional. Parabéns amigo Alberto pela divulgação, aplausos mais que festivos. Abraço.

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