sábado, 8 de janeiro de 2022

OS SEGREDOS DOS MITOS TATUADOS NA ALMA – TEXTO DE DALMA NASCIMENTO






OS SEGREDOS DOS MITOS TATUADOS NA ALMA 



Existem momentos mágicos na vida da gente, só percebidos quando os anos já se debandaram. Na hora mesmo, não os seguramos com os dedos. Mas alguns grudam quais tatuagens na alma e ficam escondidos na gente à espera de um dia ressurgirem. E muito desses momentos inesquecíveis reviveram-se no sensível e belo discurso da companheira Márcia Maria de Jesus Peçanha ao me saudar, apresentando-me à Academia Niteroiense de Letras.

Sua fala, pautando-se em meu livro "Das neblinas e das colheitas de um memorial", 'sombrailuminou' muitos daqueles instantes que, no sumidouro do tempo, já se iam transformando em poeira. Mas Márcia Peçanha, com seu dizer encantatório, os reviveu. Por isso, o meu olhar de saudade, transmitido nas fotos do evento sem dar um sorriso. Reportei-me ao passado quando papai me contava histórias de mitos e de seres fabulosos.

Na minha infância, como não havia televisão, à noite, ele lia poesia e contava histórias, enquanto mamãe corrigia cadernos, preparava aulas ou cerzia meias. Eu ouvia, extasiada, lendas de amores despedaçados, de traições humanas. Fascinava-me com o mundo mágico de bichos fantásticos do folclore local e de terras estrangeiras.

Vivia curiosa por aqueles relatos, em que meu pai-poeta livremente me ia dissecando a nossa humana condição misturada àquelas lendas.

Menina ainda eu já soubera – verdade, mesmo! daí meu interesse pelos mitos quando adulta –, do infanticídio de Medeia para ferir o amor de Jasão; do parricídio de Édipo, filho de Laio, e do seu casamento com a mãe, Jocasta; das viagens dos argonautas a Cólquida, em busca do tosão dourado; de Orfeu a retirar Eurídice das cavernas do Hades; dos nomes e dons das nove Musas filhas de Mnemósine; do desafio de Antígona diante de Creonte; da sedução de Fedra enfeitiçando Hipólito, o enteado; de Eletra e Orestes, filhos de Agamenon e Cliltemnestra, e do amor desta por Egisto.

Sísifo, subindo a montanha com a pedra, deixando-a cair e retornando dia a dia por todo o sempre, até agora ainda vive em mim. Tanto que, hoje, adulta, com frequência em meus livros, agradeço aos companheiros do trajeto, que me ajudam a carregar a pedra na escalada ou a tirar a outra, a tal do Drummond que há no meio do caminho. E todas essas histórias me vieram dos relatos de papai. Assim, em plena celebração da ANL, eu me vi, de novo garota, por intermédio do caloroso discurso de Márcia Peçanha.

Foi meu pai quem primeiro me explicou que somos uma mistura de Sísifo, gente tenaz, e de Fênix, bicho que renasce da adversidade. E que os mitos dizem verdades profundas. Por isso, são eternos, mesmo com outras vestimentas. Mas, naquele tempo, para o meu eu, de meninota, aquilo tudo me parecia meio nebuloso, apesar de mexer com a alquimia interna do meu inconsciente.

Porém para acolchoar as trágicas lembranças, ele me falava também dos animais mitológicos. Ah! o encanto do canto das sereias. Floreava os detalhes da cera nos ouvidos para Ulisses nada ouvir também, amarrado nos mastros do navio. Já Fênix, ressurgindo das cinzas, para eu entender melhor, ele comparava às estrelinhas prateadas das bombinhas de São João, vendidas na loja de miscelâneas da Casa Mansur de nossa Barra do Piraí. E eu via a cena.

O unicórnio, com seus segredos, foi um desses que ficaram plasmados em mim, mas que só vim a entender plenamente o seu significado maior, trinta e tantos anos depois quando, numa ida a Paris, visitei o Museu de Cluny. Numa próxima postagem recontarei a minha emoção e a estranha maneira de contemplar, por horas seguidas, a sequência daquelas tapeçarias.

DALMA NASCIMENTO

 





TRILHA SONORA PARA ESSA POSTAGEM





Um comentário:

  1. Maravilhada também sou pelos mitos. Agradeço a Professora Dalma Nascimento pela aula. Aprendi dela.
    Obrigada.

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