EIS A ENTREVISTA:
Dalma Nascimento – No início do século, era incomum a mulher estudar medicina. Além disso, a senhora deslocou-se de Alagoas para a Bahia e depois foi parar sozinha na Europa. Por que optou por medicina?
Nise da Silveira – Fiz em Maceió os preparatórios, como se chamavam estes estudos naquela época. A medicina me pareceu mais adaptável à minha personalidade: ajudar os outros. Meu pai, Justino da Silveira, levou-me para fazer o vestibular. Mas, logo voltou para as suas atividades como diretor de jornal e professor de matemática. Fiquei, então, num pensionato, frequentando a faculdade.
D.N. – Era bem vista pelos colegas num tempo de tantas restrições à mulher?
N.S. – Não fui a única mulher da turma. Havia outra, mas ela não continuou. Meus colegas me aceitavam cordialmente, porque eu não permitia a distinção entre homem e mulher. Hostilidade, sim, houve de alguns professores.
D.N – Ao concluir medicina, aos 21 anos, fez um trabalho sobre a criminalidade das mulheres baianas (ladras, assassinas, prostitutas). Por que o interesse por seres marginais?
N.S. – Esta foi a minha tese de doutoramento. Todo estudante para receber o grau de médico antigamente tinha que defender tese. Interessei-me pelo tema por serem estas mulheres mais infelizes e rejeitadas pelos arrogantes indivíduos que se julgam normais.
D.N. – E o conhecimento de Jung? Como era a sua personalidade? Frequentou algum seminário dele?
N.S. – Não, ele não dava mais seminários, mas frequentei o Instituto Jung (Zurique, Suíça), onde vários professores de orientação junguiana davam cursos. Fiz análise individual com Marie Louise von Franz e segui seus cursos. Quanto a Jung, era um homem simples e fascinante.
D.N. – Como iniciou sua luta contra os tratamentos e as iniquidades?
N.S. – Fiz concurso para médico no Rio (Centro Psiquiátrico Pedro II). Depois, por vocação, continuei ligando-me aos oprimidos. Aí, fui para a cadeia, passei um ano e quatro meses presa, sem processo, sem qualquer acusação e defesa. Isso apenas pelo fato de ter livros e ligações com pessoas da esquerda. Minha reação é de total revolta contra as ditaduras.
D.N. – E suas companheiras de cela? Relate esta dolorosa experiência.
N.S. – Algumas eu já conhecia. De outras, me tornei amiga na prisão. Maria Werneck faleceu há pouco tempo. Eneida Valentina Barbosa Bastos, uma pessoa de alta inteligência! Elisa Berger, grande mulher, corajosa, culta, tinha o leito junto ao meu. Olga Prestes foi para a Alemanha em estado de gravidez para ser entregue aos criminosos nazistas. Por ser judia, terminou no forno de gás. Elisa, por ser alemã, foi decapitada.
D.N. – E sua amizade com Graciliano Ramos? Várias vezes, com admiração e estima, ele a cita em Memórias do Cárcere. Houve um maior envolvimento entre ambos?
N.S. – Não, apenas uma grande amizade que se manteve até a sua morte. Nós nos entendíamos muito bem, éramos afins de temperamento. Depois da prisão, sempre nos visitávamos. Amizades feitas em cadeia permanecem firmes.
D.N. – Por que ele a chamou de “Princesa Caralâmpia”?
N.S. – Caralâmpia é um termo lúdico. Eu o uso, há anos, em vários sentidos. Por exemplo, eu olho para você e digo: hoje está com uma cara caralâmpica. Na prisão, o nome cresceu. Ao sair de lá, Graça então escreveu o livro infantil A terra dos meninos pelados, governado pela Princesa Caralâmpia.
D.N. – E os gatos? Por que usa a terapia dos animais nos acompanhamentos clínicos?
N.S.– Porque os gatos são seres afetuosos, leais e altivos. Se bem tratados, correspondem; se não, tem-se que esperar para reconquistá-los. Os internos precisam destes elos com o mundo, como também do cão, bem mais dócil. O cão perdoa sempre, é quase um Cristo.
D.N. – Spinoza, uma de suas paixões, teria a ver com os “inumeráveis e perigosos estágios do ser”? Ou esta ideia é de Artaud, sobre quem também a senhora escreveu um livro?
N. S. – Não creio que Spinoza tenha falado sobre isso. O tema liga-se, de fato, a Artaud. É dele a expressão. Eu achei que havia uma relação com aquilo que o mundo, inadvertidamente, chama de doença mental.
D.N. – Já que recordamos Artaud, há tempos, falou da sensação que ele sentira ao ver uma abelha. Relate esta passagem, que também a marcou.
N. S. – A frase de Artaud foi mais ou menos esta: “Vi uma abelha vivendo, e isto me basta”. Eu a interpreto como o Grande Milagre da Vida. Creio que Artaud sentiu assim.
D. N. – Qual o momento mais decisivo de sua vida?
N. S. – É difícil dizer o mais decisivo. Talvez o da saída da cadeia.
D. N. – A mulher intelectual, benemérita da humanidade, conciliou este aspecto com o casamento?
N. S. – Quanto à vida doméstica e ao meu marido, não houve problemas. Ele era também médico, de especialidade diferente, mas tínhamos pontos de contacto. Era socialista, o que nos ligou muito. Aplicava interpretações marxistas à saúde pública, embora fosse mais prático do que eu, bem mais sonhadora.
Despedi-me da querida amiga Caralâmpia "caralampiando" feliz. com suas respostas "caralampiantes". Afinal, é termo lúdico que serve para tudo.
Entrevista realizada em março de 1995, um mês depois de a Dra Nise ter completado 90 anos, Publicada com supressão de algumas perguntas em dois jornais (“Tribuna da Imprensa”,em 23 de março de 1995 e em “O Correio” em 15 de fevereiro 1997). Aqui está completa como consta em meu livro “Antígonas da Modernidade - Performances femininas na vida real ou na ficção literária”. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 2013.
SERÁ QUE NISE DA SILVEIRA TEVE SEU TRABALHO
RECONHECIDO EM VIDA?
Pelo menos até 10 anos antes de sua morte, ocorrida em 30 de outubro de 1999, aos 94 anos, a psiquiatra Nise da Silveira não achava que sua obra junto aos “loucos” fosse reconhecida pela sociedade. É o que ela disse para a repórter Márcia Leite que, pelo menos, procurou todo o tempo destacar as qualidades e o pioneirismo da entrevistada em reportagem para o programa Tome Ciência. Atualmente, Nise está sendo homenageada em dois filmes sobre sua vida e trabalho. Um de Roberto Berliner e o outro de Jorge Oliveira. E a comunidade científica já reconhece a importância do trabalho dela. ASSISTA O ORIGINAL:
SUGESTÃO DE DALMA NASCIMENTO
Amigos assistam, no Youtube ao filme O CORAÇÃO DA LOUCURA, a vida da Dra Nise, representada por Glória Pires.
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