segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

TERCEIRO DIA DA ANÁLISE  DE ALGUNS MOMENTOS DE A REPÚBLICA DOS SONHOS DE NÉLIDA PIÑON - DALMA NASCIMENTO

 




Terceiro dia da análise  de  alguns momentos de “A República dos sonhos”


No número anterior, a professora Dalma Nascimento se ateve às ligações afetivas do clã  dos Madruga. Enfatizou o aspecto lírico do livro: o amor do velho imigrante pelo avô Xan, o mágico contador de histórias, e  pela neta Breta, alter-ego da autora. Hoje, Dalma Nascimento volta-se para  questões sociais, veiculadas  pela obra.

“A República dos Sonhos”  é riquíssima em vários horizontes de análise.  O livro faculta a  possibilidade de estudar a saga de uma família de imigrantes,  seus problemas e ascensões pessoais,  além conduzir o leitor a  pensar sobre as candentes questões sociais e  políticas, tendo a família dos Madruga,  como pano de fundo a entrelaçar a história  brasileira à espanhola, sobretudo galega.

 

A obra mostra, entre muitos outros aspectos, a força hegemônica das culturas majoritárias, soterrando minorias étnicas e segmentos ideológicos, tidos como marginais. Quase todos os discursos da diferença, da alteridade e, sobretudo o som da tradição galega  são analisados neste amplo registro de memórias.

 

A  Galícia representa a grande fala, evocada por dois narradores em 1ª pessoa (Madruga e sua neta brasileira Breta), por fragmentos de um diário parodístico do também imigrante Venâncio, e por uma voz onisciente em 3ª pessoa que tudo reúne num extenso jogo temporal/ espacial de recordações pessoais e históricas, entretecidas entre o Brasil, a Península Ibérica e o mundo.

 

Regimes opressores, ditaduras, golpes militares brasileiros e europeus, mesclados à psicologia de cinco gerações de uma família de galegos no Brasil, são dissecados na trama existencial e política de A república dos sonhos. O texto faz a memória oficial e a memória oponente dialogarem em torno dos mesmos objetos, apresentando várias versões da História, em intenso intercâmbio sociológico. 

 

Iluminam-se, assim, confidências, estertores, desvios dos fatos  violados pelos dominantes. Tudo flutua, em força polêmica, no polissêmico tecido literário, em compasso com os pressupostos teóricos dos Estudos Culturais e da História das Mentalidades.

 

Para esta Nova História das representações coletivas - embora não seja tão nova assim, já que seus pressupostos básicos se fincaram na década de vinte do século passado - todas as  manifestações culturais são válidas. Qualquer documento, no caso, o literário, constitui valioso registro das expressões simbólicas, pois revela o que a História oficial esqueceu ou fez questão de esconder.

Isso está explícito em inúmeros trechos de A república dos sonhos, a exemplo dos desabafos de Tobias, o polêmico filho do patriarca do clã dos Madruga ao proclamar: “Precisamos urgentemente gerar outras histórias, pondo à parte os discursos oficiais, as análises deformadas dos colonizadores. Há quinhentos anos que vimos forjando uma versão autoritária da realidade” (p. 677). Ou também, em determinado trecho, o próprio Madruga, em meio a outras discussões, exclama: “Onde está a verdadeira história? Qual dessas mentiras pode ser a verdade?” (p. 572).

Inteirando-se das outras leituras do mundo que a verdadeira História privilegia, A república dos sonhos mapeia, com firmes traços, os bolsões de resistência, trabalha com o diverso, aprofunda raízes populares, analisa a questão das diferenças, com vários universos minoritários atravessando-lhe a escrita. O negro e o índio brasileiros aí são vistos sob a branca retina depreciadora do olhar colonizador, porém, este fato é altamente  denunciado pela visão crítica da obra.

Há também a presença dos ciganos, já que Venâncio é um deles. Banidos da Espanha pela Pragmática de Carlos III (1738), os ciganos, em contínuos itinerários pelo mundo pela ausência de morada, são colocados em situação, de certa forma, semelhante à dos exilados políticos do Brasil pelo AI 5 (Ato Institucional nº 5), decretado em 1968 pela opressão militar. 

Além dos vários momentos políticos, circulam com realce, as tradições, os costumes, a língua, os mitos, magias e sortilégios do maravilhoso lendário cigano, sufocado, porém, pelas ordens de Castela.

De múltiplas maneiras, a terra dos ascendentes de Nélida comparece fortíssima no enorme afresco psíquico e  sociológico, em que as gerações se interpenetram com histórias, fazendo a História em experiência viva. Das vertentes erudita e popular do fabulário, a Scherezade brasileira dos tempos modernos conscientiza o leitor das estratégias de dominação e dos maquiavélicos dribles de onde emanam o poder e o saber.

Indo às mentalidades sufocadas, Nélida Piñon  mergulha nas mudanças e descentra as verdades etnocêntrica, falocêntrica, logocêntrica. E, ao perscrutar  as mazelas do corpo social, ela faz o strip-tease das grandes crises sociais,  acendendo o candeeiro das lembranças de  sua Galícia familiar, nas teias do sonho e nas malhas da História.

 


(Trilha sonora para essa postagem)



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