Terceiro dia da análise
de alguns momentos de “A República dos sonhos”
No número anterior, a professora
Dalma Nascimento se ateve às ligações afetivas do clã dos Madruga.
Enfatizou o aspecto lírico do livro: o amor do velho imigrante pelo avô Xan, o
mágico contador de histórias, e pela neta Breta, alter-ego da autora. Hoje,
Dalma Nascimento volta-se para questões sociais, veiculadas pela
obra.
“A
República dos Sonhos” é riquíssima em vários horizontes de análise.
O livro faculta a possibilidade de estudar a saga de uma família de
imigrantes, seus problemas e ascensões pessoais, além conduzir o
leitor a pensar sobre as candentes questões sociais e políticas,
tendo a família dos Madruga, como pano de fundo a entrelaçar a
história brasileira à espanhola, sobretudo galega.
A
obra mostra, entre muitos outros aspectos, a força hegemônica das culturas
majoritárias, soterrando minorias étnicas e segmentos ideológicos, tidos como
marginais. Quase todos os discursos da diferença, da alteridade e, sobretudo o
som da tradição galega são analisados neste amplo registro de memórias.
A
Galícia representa a grande fala, evocada por dois narradores em 1ª pessoa
(Madruga e sua neta brasileira Breta), por fragmentos de um diário parodístico
do também imigrante Venâncio, e por uma voz onisciente em 3ª pessoa que tudo
reúne num extenso jogo temporal/ espacial de recordações pessoais e históricas,
entretecidas entre o Brasil, a Península Ibérica e o mundo.
Regimes
opressores, ditaduras, golpes militares brasileiros e europeus, mesclados à
psicologia de cinco gerações de uma família de galegos no Brasil, são
dissecados na trama existencial e política de A
república dos sonhos. O texto faz a memória oficial e a memória
oponente dialogarem em torno dos mesmos objetos, apresentando várias versões da
História, em intenso intercâmbio sociológico.
Iluminam-se,
assim, confidências, estertores, desvios dos fatos violados pelos
dominantes. Tudo flutua, em força polêmica, no polissêmico tecido literário, em
compasso com os pressupostos teóricos dos Estudos Culturais e da História das
Mentalidades.
Para
esta Nova História das representações coletivas - embora não seja tão nova
assim, já que seus pressupostos básicos se fincaram na década de vinte do
século passado - todas as manifestações culturais são válidas. Qualquer
documento, no caso, o literário, constitui valioso registro das expressões
simbólicas, pois revela o que a História oficial esqueceu ou fez questão de
esconder.
Isso
está explícito em inúmeros trechos de A
república dos sonhos, a exemplo dos desabafos de Tobias, o polêmico filho do
patriarca do clã dos Madruga ao proclamar: “Precisamos urgentemente gerar
outras histórias, pondo à parte os discursos oficiais, as análises deformadas
dos colonizadores. Há quinhentos anos que vimos forjando uma versão autoritária
da realidade” (p. 677). Ou também, em determinado trecho, o próprio Madruga, em
meio a outras discussões, exclama: “Onde está a verdadeira história? Qual
dessas mentiras pode ser a verdade?” (p. 572).
Inteirando-se
das outras leituras do mundo que a verdadeira História privilegia, A república dos sonhos mapeia,
com firmes traços, os bolsões de resistência, trabalha com o diverso, aprofunda
raízes populares, analisa a questão das diferenças, com vários universos
minoritários atravessando-lhe a escrita. O negro e o índio brasileiros aí são
vistos sob a branca retina depreciadora do olhar colonizador, porém, este fato
é altamente denunciado pela visão crítica da obra.
Há também a presença dos ciganos,
já que Venâncio é um deles. Banidos da Espanha pela Pragmática de Carlos III
(1738), os ciganos, em contínuos itinerários pelo mundo pela ausência de
morada, são colocados em situação, de certa forma, semelhante à dos exilados
políticos do Brasil pelo AI 5 (Ato Institucional nº 5), decretado em 1968 pela
opressão militar.
Além dos vários momentos
políticos, circulam com realce, as tradições, os costumes, a língua, os mitos,
magias e sortilégios do maravilhoso lendário cigano, sufocado, porém, pelas
ordens de Castela.
De
múltiplas maneiras, a terra dos ascendentes de Nélida comparece fortíssima no
enorme afresco psíquico e sociológico, em que as gerações se
interpenetram com histórias, fazendo a História em experiência viva. Das
vertentes erudita e popular do fabulário, a Scherezade brasileira dos tempos
modernos conscientiza o leitor das estratégias de dominação e dos maquiavélicos
dribles de onde emanam o poder e o saber.
Indo
às mentalidades sufocadas, Nélida Piñon mergulha nas mudanças e descentra
as verdades etnocêntrica, falocêntrica, logocêntrica. E, ao perscrutar as
mazelas do corpo social, ela faz o strip-tease das
grandes crises sociais, acendendo o candeeiro das lembranças de sua
Galícia familiar, nas teias do sonho e nas malhas da História.
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