TEXTO 1: CLARICE
LISPECTOR, A FEITICEIRA NA VIDA E NA ESCRITA
Dia 10 de
dezembro, hoje, seria aniversário de Clarice. Homenageando-lhe a memória,
reproduzo aqui, trechos, já por mim publicados, sobre minha convivência com
essa feiticeira da escrita.
Literariamente,
já conhecia Clarice desde suas primeiras obras, capturada pelo vigor de seus
personagens, sobretudo, por Lóri, a Loreley, heroína de "Uma aprendizagem
ou O livro dos prazeres". Clarice já frequentava minhas aulas e o
imaginário. Em 1970, procurei seu nome na lista telefônica e liguei para ela.
Um alô meio rouco atendeu. Sem tomar fôlego, passei a falar, sem parar sobre
seus livros. Ela, em eloquente silêncio, me ouvia. Por fim, naquela voz
arrastada, lenta, a alongar os "erres" convidou-me a visitá-la no dia
seguinte, cedo.
De manhã, lá fui
eu, ansiosa, tomar a barca, o único transporte àquela época entre Niterói e o
Rio. Diáfana, Clarice me abriu, de manso, suas portas existenciais e seu
apartamento na Rua Gustavo Sampaio, no Leme. Um espaço diferente se desvelou
para mim. À minha frente, estava uma mulher sem idade, de olhos enigmáticos,
curiosos, que me contemplavam e espiavam o mundo. Já eram anúncios de um
despertar afetivo que se foi aprofundando em cada encontro nosso.
Eu viera do bulício
da rua, das buzinas com gente apressada na condução cheia. Porém, lá, com
Clarice, o cheiro de mar era paz de manhã clara. Algo primitivo palpitava em
sua sala, paradoxalmente requintada. Parecia que as coisas, impregnadas dela,
falassem nas cortinas, nas cadeiras vazias, nos quadros que me davam
boas-vindas. Era a atmosfera de "Clarice sendo", em vigorosa
liberdade, num universo estranho, no qual seu cachorro, Ulisses fumava
cigarros. Ante minha perplexidade, logo esclareceu que ele não participava do
mundo cão.
Encontrava-me,
então, diante daquela Clarice, que heroicamente se arriscava na existência, com
mística paixão. Da Clarice que tentava aproximar-se da essência das coisas pela
Arte. Da Clarice que transitava, nos livros e na vida, pelas perigosas
fronteiras da iniciação, em busca da “palavra-topázio”, como se expressou em
"Água viva".
Passou, então a
me mostrar objetos, papéis, esboços e o novo livro em processo de conclusão:
"Onde estivestes na noite?". Se as palavras conseguissem narrar
plenamente aquele universo, talvez ele ficasse rotulado de fantástico-estranho.
Mas não estávamos na ficção, apenas no território inclassificável de Clarice,
porque só seu, tão diverso dos demais.
E desde este
dia, entre nós, a amizade germinou. Frequentes eram nossos encontros. Por
várias vezes, levei alunos à sua casa. Todos se enredavam pela magia daquela
feiticeira. Tempos depois, Clarice participou do Congresso de Bruxaria na
Colômbia. Entusiasmada, contou-me pormenores e anunciou que no ano seguinte
retornaria a Colômbia, agora à cidade de Cali, para o IV Congresso
Internacional da Nova Literatura Latino-Americana.
Estávamos em 74.
Além de eu lecionar em duas universidades - ainda não tinha dedicação exclusiva
na UFRJ - era também correspondente do suplemento literário JBr Cultura do
"Jornal de Brasília". Para minha surpresa, o jornal me designou para
cobrir o tal evento literário na Colômbia, onde luminosos escritores das
Américas discutiriam os caminhos da nova literatura latino-americana.
Viajei no mesmo
avião hospedando-me no mesmo hotel da comitiva: o Intercontinental de Cali. Já
no aeroporto, Clarice pediu-me para guardar seu passaporte e dólares. Contudo,
sem antes solenemente eu lhe prometer que não leria, em hipótese alguma, seu
documento de identidade, cumpri o pacto. E até hoje ignoro sua data natalícia.
O avião fez
conexão em São Paulo. Lygia Fagundes Telles integrou a comitiva dos
brasileiros, de que também participava Walmir Ayala, vindo, porém, em outro
voo. A viagem foi tumultuada e longa. Um tornado, exatamente naquele dia,
varreu os ares, desviando a nossa rota. Voamos horas incontidas. Lygia e,
sobretudo eu, encolhidas nas poltronas, rezávamos nas turbulências. Terríveis,
turbilhonantes, mesmo.
Cada sacolejo de
meter medo. Objetos voavam e aeromoças, equilibristas dançarinas, acalmavam os
passageiros. Porém, Clarice, gloriosa, extasiava-se com o espetáculo da
Natureza em fúria. Talvez se sentisse "perto do coração selvagem", em
"água viva" ou desfrutando de mais "uma aprendizagem de
prazeres". Por fim, terra à vista. E inúmeras peripécias mirabolantes do
congresso ficarão para o próximo capítulo. Não percam o melhor da história. Nem
a entrevista final.
Texto publicado
ampliado no "Jornal de Brasília" (23/10/74), no Canadá na revista
literária "La parole Météque" (outono de 1989) e no meu livro
"Antígonas da Modernidade" (2013).
TEXTO 2 - A DEUSA DE VERMELHO NA COLÔMBIA
Eis o penúltimo episódio de minha
folhetinesca novela do Congresso Internacional de 1974, em Cali (Colômbia) no
qual Clarice foi a estrela com sua tão peculiar maneira de ser. Já no
aeroporto, marcou sua diferença. Desceu do voo com requintado chapéu e longo
casacão de esplendoroso vermelho, de fino talho (foto em post anterior). Porte
heráldico e longilíneo de rainha. Rosto misterioso, enigmático e ainda belo. Já
era Clarice, com seu jeito feiticeiro, contrastando com o ambiente do
congresso.
O encontro internacional em Cali
visava a discutir os rumos da nova narrativa latino-americana. Entretanto, o
lado político pontificou. Talvez, por isso, Clarice tenha ficado meio reclusa, imersa em seu rico mundo
interior. Parecia não partilhar dos incandescentes debates da explosão do “Boom
dos Escritores Latino-Americanos, movimento iniciado décadas antes pelos
artistas da América Latina. Dali surgiu, uma nova tipologia literária – não tão
nova assim – que, em 1974, ano do congresso, estava na crista da onda.
Eram narrativas com outro tipo de
Realismo em que o fantástico, o estranho, o mágico e o maravilhoso – gêneros
literários de tempos primordiais – ganharam, na escrita dos autores
latino-americanos traços rejuvenescidos, mesclados a temas políticos e sociais
da “realidade” das Américas. Tais ficções-- a princípio nomeadas de Realismo
Mágico, depois de Realismo Maravilhoso Americano - expandiram-se, na década de 70 , com
conceitos ainda flutuantes.
Por isso,no calor das coisas.não só
literárias, quanto políticas, houve o
congresso de Cali, em 1974, a fim de se delimitarem parâmetros. Alguns dos próceres dessa linha programática
estavam lá à exceção de Gabriel
García Márquez. Dentre os presentes,Vargas Llosa e Juan
Rulfo, com a obra "Pedro Páramo" eram muito celebrados. Até o
tradutor de Guimarães Rosa para o alemão, Günter Lorenz, compareceu.
Clarice parecia um tanto decepcionada
com os caminhos e fundamentos das reuniões. Já Lygia participava ativamente dos
debates. Acabara de publicar “As meninas” livro, que, embora sem o clima do
Real Maravilhoso Americano,, se tornara sensação entre os jovens pelas
passagens políticas. Mais introspectiva, Clarice apresentava uma linha
diferente das discutidas em Cali. O fantástico dos contos de “Onde estivestes
de noite? " à época recém-publicados tomaram rumos mais
psicológicos, existenciais e ontológicos.
Não se pretende aqui dissecar os
textos literários, tampouco mergulhar em
problemas conceituais do congresso, já por mim feitos em periódicos e livros.
Foram, agora só perifericamente roçadas tais questões, para que os leitores entendam
o porquê de, ao serem tão debatidas no congresso, é bem provável que tenham cansado Clarice. A ponto de manifestar
sua reação no dia específico de sua fala. Ou da sua não-fala. É o que agora
lhes vou contar:
Cada delegação teve seu dia para
apresentar-se no luxuoso anfiteatro universitário. Na data do Brasil, de manhã,
Walmir Ayala e Lygia discorreram sobre suas obras. A grande expectativa era a
palestra de Clarice à tarde. No ano anterior participara, também em Cali, do
Congresso de Bruxaria, sendo festejada por seus livros e pelas posições
corajosas e místicas, expostas. Assim, fãs, ansiosos, aguardavam-na.
De repente, talvez meia hora antes ou
pouco mais, em pleno final do almoço, Clarice comunicou-nos, que não iria e
pronto! Dona de si e de sua liberdade, nossos esforços foram vãos. Lygia – qual
outro jeito? – prontificou-se a conversar com o público e inventar uma
desculpa. Fiquei no hotel com Clarice. Súbito, mudou de ideia. Igualmente
impossível demovê-la. Rápido vestiu o longo e exuberante casaco vermelho, cor
da paixão, com que, dias antes, chegara a Cali. Só não colocou o chapéu. Era
uma deusa flamejante a fulgurar beleza.
Partimos. Ao entramos, ainda de longe,
Lygia, no palco, divisou Clarice. Sua fisionomia se abriu. Pressurosa, pôs-se a
explicar que a diva melhorara e acabava de chegar. Mas, parou perplexa. De
fato, seria cômico, se não fosse sério. Clarice, imponente, pisava o majestoso
tapete também vermelho do salão, E subiu ao palco. Acomodou-se na cadeira vaga.
E, como não estivesse ali, mas “perto do coração selvagem”, em “água viva”, na
“paixão segundo Ela mesma”, parecia viver em plenitude “uma aprendizagem” ou
ler “o livro dos prazeres”.
Esfíngica. Bela. Sumamente Bela! Sem
nada proferir, com olhar distante em êxtase epifânico! Exatamente como dias
antes se portara quando levara o garotinho de rua a almoçar no Intercontinental
de Cali. Haveria nos dois episódios, um mudo recado de protesto ao ambiente do
congresso? Sei lá... tantos foram os mistérios de Clarice! Ela era tão dona dos
dons do encantamento que todos – apesar de calada – foram contaminados pelo
eloquente vigor de seu silêncio. Apoteótico, seu desempenho. E, ao término da
sessão, palmas e mais palmas retumbaram no salão superlotado.
No próximo é último folhetim: o
afetivo mistério do colar e minha entrevista com Clarice, publicada em três
periódicos (Brasília, Rio de Janeiro e Canadá).
Dalma Nascimento,
Escritora e acadêmica
Passando para desejar um ano repleto de boas energias e doces inspirações poéticas. Abraço literário, prezado amigo, Alberto.
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