terça-feira, 4 de janeiro de 2022

DALMA NASCIMENTO HOMENAGEIA CLARICE COM OS TEXTOS: “CLARICE LISPECTOR, A FEITICEIRA NA VIDA E NA ESCRITA” E “A DEUSA DE VERMELHO NA COLÔMBIA”

 



TEXTO 1: CLARICE LISPECTOR, A FEITICEIRA NA VIDA E NA ESCRITA


Dia 10 de dezembro, hoje, seria aniversário de Clarice. Homenageando-lhe a memória, reproduzo aqui, trechos, já por mim publicados, sobre minha convivência com essa feiticeira da escrita.

Literariamente, já conhecia Clarice desde suas primeiras obras, capturada pelo vigor de seus personagens, sobretudo, por Lóri, a Loreley, heroína de "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres". Clarice já frequentava minhas aulas e o imaginário. Em 1970, procurei seu nome na lista telefônica e liguei para ela. Um alô meio rouco atendeu. Sem tomar fôlego, passei a falar, sem parar sobre seus livros. Ela, em eloquente silêncio, me ouvia. Por fim, naquela voz arrastada, lenta, a alongar os "erres" convidou-me a visitá-la no dia seguinte, cedo.

De manhã, lá fui eu, ansiosa, tomar a barca, o único transporte àquela época entre Niterói e o Rio. Diáfana, Clarice me abriu, de manso, suas portas existenciais e seu apartamento na Rua Gustavo Sampaio, no Leme. Um espaço diferente se desvelou para mim. À minha frente, estava uma mulher sem idade, de olhos enigmáticos, curiosos, que me contemplavam e espiavam o mundo. Já eram anúncios de um despertar afetivo que se foi aprofundando em cada encontro nosso.

Eu viera do bulício da rua, das buzinas com gente apressada na condução cheia. Porém, lá, com Clarice, o cheiro de mar era paz de manhã clara. Algo primitivo palpitava em sua sala, paradoxalmente requintada. Parecia que as coisas, impregnadas dela, falassem nas cortinas, nas cadeiras vazias, nos quadros que me davam boas-vindas. Era a atmosfera de "Clarice sendo", em vigorosa liberdade, num universo estranho, no qual seu cachorro, Ulisses fumava cigarros. Ante minha perplexidade, logo esclareceu que ele não participava do mundo cão.

Encontrava-me, então, diante daquela Clarice, que heroicamente se arriscava na existência, com mística paixão. Da Clarice que tentava aproximar-se da essência das coisas pela Arte. Da Clarice que transitava, nos livros e na vida, pelas perigosas fronteiras da iniciação, em busca da “palavra-topázio”, como se expressou em "Água viva".

Passou, então a me mostrar objetos, papéis, esboços e o novo livro em processo de conclusão: "Onde estivestes na noite?". Se as palavras conseguissem narrar plenamente aquele universo, talvez ele ficasse rotulado de fantástico-estranho. Mas não estávamos na ficção, apenas no território inclassificável de Clarice, porque só seu, tão diverso dos demais.

E desde este dia, entre nós, a amizade germinou. Frequentes eram nossos encontros. Por várias vezes, levei alunos à sua casa. Todos se enredavam pela magia daquela feiticeira. Tempos depois, Clarice participou do Congresso de Bruxaria na Colômbia. Entusiasmada, contou-me pormenores e anunciou que no ano seguinte retornaria a Colômbia, agora à cidade de Cali, para o IV Congresso Internacional da Nova Literatura Latino-Americana.

Estávamos em 74. Além de eu lecionar em duas universidades - ainda não tinha dedicação exclusiva na UFRJ - era também correspondente do suplemento literário JBr Cultura do "Jornal de Brasília". Para minha surpresa, o jornal me designou para cobrir o tal evento literário na Colômbia, onde luminosos escritores das Américas discutiriam os caminhos da nova literatura latino-americana.

Viajei no mesmo avião hospedando-me no mesmo hotel da comitiva: o Intercontinental de Cali. Já no aeroporto, Clarice pediu-me para guardar seu passaporte e dólares. Contudo, sem antes solenemente eu lhe prometer que não leria, em hipótese alguma, seu documento de identidade, cumpri o pacto. E até hoje ignoro sua data natalícia.

O avião fez conexão em São Paulo. Lygia Fagundes Telles integrou a comitiva dos brasileiros, de que também participava Walmir Ayala, vindo, porém, em outro voo. A viagem foi tumultuada e longa. Um tornado, exatamente naquele dia, varreu os ares, desviando a nossa rota. Voamos horas incontidas. Lygia e, sobretudo eu, encolhidas nas poltronas, rezávamos nas turbulências. Terríveis, turbilhonantes, mesmo.

Cada sacolejo de meter medo. Objetos voavam e aeromoças, equilibristas dançarinas, acalmavam os passageiros. Porém, Clarice, gloriosa, extasiava-se com o espetáculo da Natureza em fúria. Talvez se sentisse "perto do coração selvagem", em "água viva" ou desfrutando de mais "uma aprendizagem de prazeres". Por fim, terra à vista. E inúmeras peripécias mirabolantes do congresso ficarão para o próximo capítulo. Não percam o melhor da história. Nem a entrevista final.

Texto publicado ampliado no "Jornal de Brasília" (23/10/74), no Canadá na revista literária "La parole Météque" (outono de 1989) e no meu livro "Antígonas da Modernidade" (2013).

 

 

TEXTO 2 -  A DEUSA DE VERMELHO NA COLÔMBIA

 

Eis o penúltimo episódio de minha folhetinesca novela do Congresso Internacional de 1974, em Cali (Colômbia) no qual Clarice foi a estrela com sua tão peculiar maneira de ser. Já no aeroporto, marcou sua diferença. Desceu do voo com requintado chapéu e longo casacão de esplendoroso vermelho, de fino talho (foto em post anterior). Porte heráldico e longilíneo de rainha. Rosto misterioso, enigmático e ainda belo. Já era Clarice, com seu jeito feiticeiro, contrastando com o ambiente do congresso.

O encontro internacional em Cali visava a discutir os rumos da nova narrativa latino-americana. Entretanto, o lado político pontificou. Talvez, por isso, Clarice tenha  ficado meio reclusa, imersa em seu rico mundo interior. Parecia não partilhar dos incandescentes debates da explosão do “Boom dos Escritores Latino-Americanos, movimento iniciado décadas antes pelos artistas da América Latina. Dali surgiu, uma nova tipologia literária – não tão nova assim – que, em 1974, ano do congresso, estava na crista da onda.

 

Eram narrativas com outro tipo de Realismo em que o fantástico, o estranho, o mágico e o maravilhoso – gêneros literários de tempos primordiais – ganharam, na escrita dos autores latino-americanos traços rejuvenescidos, mesclados a temas políticos e sociais da “realidade” das Américas. Tais ficções-- a princípio nomeadas de Realismo Mágico, depois de Realismo Maravilhoso Americano -  expandiram-se, na década de 70 , com conceitos ainda flutuantes. 

 

Por isso,no calor das coisas.não só literárias, quanto políticas,  houve o congresso de Cali, em 1974, a fim de se delimitarem parâmetros.  Alguns dos próceres dessa linha programática estavam lá  à exceção de Gabriel García  Márquez.  Dentre os presentes,Vargas Llosa e Juan Rulfo, com a obra "Pedro Páramo" eram muito celebrados. Até o tradutor de Guimarães Rosa para o alemão, Günter Lorenz, compareceu.

 

Clarice parecia um tanto decepcionada com os caminhos e fundamentos das reuniões. Já Lygia participava ativamente dos debates. Acabara de publicar “As meninas” livro, que, embora sem o clima do Real Maravilhoso Americano,, se tornara sensação entre os jovens pelas passagens políticas. Mais introspectiva, Clarice apresentava uma linha diferente das discutidas em Cali. O fantástico dos contos de “Onde estivestes de noite? " à época recém-publicados tomaram rumos mais psicológicos, existenciais e ontológicos.

 

Não se pretende aqui dissecar os textos literários, tampouco  mergulhar em problemas conceituais do congresso, já por mim feitos em periódicos e livros. Foram, agora  só perifericamente roçadas  tais questões, para que os leitores entendam o porquê de, ao serem tão debatidas no congresso, é bem provável que  tenham cansado Clarice. A ponto de manifestar sua reação no dia específico de sua fala. Ou da sua não-fala. É o que agora lhes vou contar:

 

Cada delegação teve seu dia para apresentar-se no luxuoso anfiteatro universitário. Na data do Brasil, de manhã, Walmir Ayala e Lygia discorreram sobre suas obras. A grande expectativa era a palestra de Clarice à tarde. No ano anterior participara, também em Cali, do Congresso de Bruxaria, sendo festejada por seus livros e pelas posições corajosas e místicas, expostas. Assim, fãs, ansiosos, aguardavam-na. 

 

De repente, talvez meia hora antes ou pouco mais, em pleno final do almoço, Clarice comunicou-nos, que não iria e pronto! Dona de si e de sua liberdade, nossos esforços foram vãos. Lygia – qual outro jeito? – prontificou-se a conversar com o público e inventar uma desculpa. Fiquei no hotel com Clarice. Súbito, mudou de ideia. Igualmente impossível demovê-la. Rápido vestiu o longo e exuberante casaco vermelho, cor da paixão, com que, dias antes, chegara a Cali. Só não colocou o chapéu. Era uma deusa flamejante a fulgurar beleza.

Partimos. Ao entramos, ainda de longe, Lygia, no palco, divisou Clarice. Sua fisionomia se abriu. Pressurosa, pôs-se a explicar que a diva melhorara e acabava de chegar. Mas, parou perplexa. De fato, seria cômico, se não fosse sério. Clarice, imponente, pisava o majestoso tapete também vermelho do salão, E subiu ao palco. Acomodou-se na cadeira vaga. E, como não estivesse ali, mas “perto do coração selvagem”, em “água viva”, na “paixão segundo Ela mesma”, parecia viver em plenitude “uma aprendizagem” ou ler “o livro dos prazeres”.

 

Esfíngica. Bela. Sumamente Bela! Sem nada proferir, com olhar distante em êxtase epifânico! Exatamente como dias antes se portara quando levara o garotinho de rua a almoçar no Intercontinental de Cali. Haveria nos dois episódios, um mudo recado de protesto ao ambiente do congresso? Sei lá... tantos foram os mistérios de Clarice! Ela era tão dona dos dons do encantamento que todos – apesar de calada – foram contaminados pelo eloquente vigor de seu silêncio. Apoteótico, seu desempenho. E, ao término da sessão, palmas e mais palmas retumbaram no salão superlotado.

 

No próximo é último folhetim: o afetivo mistério do colar e minha entrevista com Clarice, publicada em três periódicos (Brasília, Rio de Janeiro e Canadá).

 

Dalma Nascimento,

Escritora e acadêmica







(FUNDO MUSICAL PARA ESSA POSTAGEM)

"Autumn Rose" by Ernesto Cortazar








Um comentário:

  1. Passando para desejar um ano repleto de boas energias e doces inspirações poéticas. Abraço literário, prezado amigo, Alberto.

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