Fundada
em 1815, a CAMBRIDGE UNION é a mais antiga sociedade de debates em
funcionamento contínuo no mundo. É legalmente uma instituição de caridade
autofinanciada, que possui e tem controle total sobre sua propriedade privada e
edifícios no centro da cidade de Cambridge. Essa sociedade igualmente arrecada
fundos para despesas de eventos e manutenção de seus edifícios por meio de
taxas de associação e patrocínio, além de gozar de fortes relações com a famosa
universidade, uma instituição acadêmica cuja fundação remonta ao ano de 1209.
Depois
de mais de 200 anos, a Cambridge Union é mais conhecida por seus debates, que
recebem atenção da mídia nacional e internacional. Em 18 de fevereiro de 1965,
no seu principal auditório, completamente lotado na ocasião, houve um desses
debates. E o que ali foi dito reverbera até hoje!
“O
sonho americano está à custa do negro americano”, declarou James Arthur Baldwin
(Nova Iorque, 2 de agosto de 1924 — Saint-Paul de Vence, 1 de dezembro de 1987)
em seu debate com William Frank Buckley Junior (Nova Iorque, 24 de novembro de
1925 – Stamford, 27 de fevereiro de 2008). Baldwin estava ecoando a moção do
debate – que o sonho americano estava às custas dos negros americanos, com
Baldwin a favor, Buckley contra.
A
ênfase na palavra de Baldwin deixa seu ponto de vista claro. “Eu colhi o
algodão e o levei para o mercado, e construí as ferrovias sob o chicote de
outra pessoa para nada”, disse ele, sua voz subindo com a cadência do púlpito.
“Por nada.” O auditório lotado ficou em silêncio.
Aqui
estava um choque de titãs diametralmente opostos: em um canto estava Baldwin,
baixo, esguio, quase andrógino com seu rosto ainda jovem, a voz carregando as
inflexões levemente cosmopolitas que ele tinha há anos. Ele era o radical do
debate, um escritor estimado sem medo de condenar vulcanicamente a supremacia
branca e o racismo antinegro de norte-americanos conservadores e liberais. No
outro canto estava Buckley, alto, de pele clara, cabelo bem penteado e
mandíbula rígida, suas palavras esculpidas com seu sotaque transatlântico
característico, quase britânico.
Se
Baldwin – o virtuoso verbal que escreveu retratos comoventes da América negra e
sobre a vida como um expatriado na Europa – defendeu a necessidade de mudança
dos Estados Unidos, Buckley se posicionou como o moderado razoável que resistiu
às transformações sociais que os líderes dos direitos civis pediam. Principalmente
o fim da segregação racial. Alguns dos alunos na plateia o conheciam como nada
menos que o pai do conservadorismo americano moderno.
Um
recente debate na Cambridge Union, com a presença do ator inglês Stephen Fry.
Nesse mesmo local debateram Baldwin e Buckley em 1965 –
O
apoio de Buckley ao direito do Sul à segregação e as condenações de Baldwin à
América branca ocorreram contra o pano de fundo onde os Estados Unidos se
encontrava profundamente dividido em 1965, tal como em 2022.
Mundos
Diferentes
Uma
pedra fundamental para o entendimento desse debate está nas diferenças
marcantes em como Baldwin e Buckley foram criados.
Enquanto
Baldwin cresceu pobre no bairro do Harlem, Nova York, com predominância de
residentes negros e pobres, Buckley foi cercado por privilégios. Sua mãe,
Alöise Steiner Buckley, encheu sua casa com criados e tutores para seus dez
filhos. Ela era profundamente católica, a semente das rígidas visões religiosas
maniqueístas que seu filho adotaria. Ao longo de sua vida, Buckley se tornaria
conhecido pela estrita divisão de “bem” e “mal” em sua visão de mundo, segundo
a qual o catolicismo e o capitalismo eram bons, e o ateísmo e o socialismo
exemplificavam o mal.
Também
ficou claro para a descendência de Alöise o que ela pensava sobre quem deveria
servir a quem na sociedade americana. Ela era “racista”, segundo lembrou o
irmão de Buckley, o escritor e educador Fergus Reid Buckley, porque “assumia
que os brancos eram intelectualmente superiores aos negros”. Mas ele acrescentou
que “ela realmente amava os negros e se sentia seguramente confortável com eles
desde a suposição de sua superioridade em intelecto, caráter e posição.”
Essa
dinâmica peculiar e paternalista pressagiava a própria ideologia de William, em
que mãe e filho acreditavam em manter as barreiras entre negros e brancos
americanos como parte da cultura sulista. Quando adulto, Buckley costumava
escrever que a segregação era uma necessidade, porque os americanos negros
“ainda não” eram avançados o suficiente para serem iguais aos brancos, o que
implica, com uma condescendência que ele talvez considerasse edificante, que
eles poderiam um dia estar no mesmo nível.
BALDWIN
NO DEBATE DE 18 DE FEVEREIRO DE 1965
Baldwin,
ao contrário de Buckley, sofreu muito antes de alcançar a fama como autor. Ele
deixou Nova York em 1948, quase sem um tostão, para a França, depois de decidir
que não poderia mais sobreviver ao traumatizante racismo dos Estados Unidos —
tanto nos estados do norte quanto do sul. Embora tenha encontrado algum
descanso em Paris, ele ainda quase cometeu suicídio lá depois de ser preso pela
polícia por suspeita de ter roubado o lençol de um hotel (o que não aconteceu).
E ele continuou voltando para a seu país, tanto em seus livros quanto em suas
viagens. Baldwin nunca se escondeu; em vez disso se colocou na linha de frente
de uma batalha pelos direitos civis por nada menos que a alma dos Estados
Unidos.
Pedra
de Torque
Se
não fosse o debate de 1965, Baldwin poderia nunca ter conhecido Buckley. Na
verdade, Baldwin quase teve outro oponente. Antes de a Cambridge Union convidar
Buckley, ela havia procurado políticos firmemente segregacionistas, que
recusaram. Buckley parecia uma alternativa ideal: um crítico sociopolítico
articulado e proeminente que evitava os epítetos racistas dos supremacistas
brancos mais vocais do conservadorismo, mas que, no entanto, apoiava a
segregação. Buckley viu o debate como uma chance de derrotar um de seus
arqui-inimigos ideológicos em um palco público.
William
F. Buckley no debate.
Para
irritação de Buckley, embora não totalmente para sua surpresa, Baldwin fez uma
performance empolgante.
Baldwin
declarou durante o debate que era “um grande choque por volta dos 5, 6 ou 7
anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou lealdade, junto com
todos os outros, não prometeu lealdade a você.” Baldwin argumentou que os males
da escravidão dificilmente haviam sido exorcizados após a abolição, mas que, em
vez disso, o país ainda era essencialmente o mesmo para os negros americanos
como era durante os dias da escravidão legal.
Depois
que Baldwin encerrou, ele foi aplaudido de pé, em uma rara manifestação da
Cambridge Union. Nas imagens desse debate no YouTube, é nítido como James
Baldwin fica até mesmo desconcertado diante da plateia.
Apresentação
dos debatedores.
Quando
chegou a sua vez, Buckley argumentou que Baldwin estava sendo tratado com luvas
de pelica, por assim dizer, porque alegava ser uma vítima. “O fato de sua pele
ser negra”, ele asseverou, “é totalmente irrelevante para os argumentos que
você levanta”. Baldwin, disse ele lentamente e cheio de uma raiva silenciosa,
era um inimigo violento do modo de vida sulista que proferiu “flagelações de
nossa civilização” e da América como um todo. Forçar o sul americano a
abandonar seu modo de vida e aceitar a integração imposta pelo governo,
insistiu, seria imoral.
Em
última análise, o público discordou e Baldwin venceu o debate por 540 a 160
votos.
É
difícil falar sobre Baldwin ou Buckley sem fazer referência a este encontro;
tornou-se uma pedra de toque na vida de ambos os homens.
Segue
a transcrição da fala de James Baldwin.
Auditório
lotado.
Boa
noite,
Encontro-me,
não pela primeira vez, na posição de uma espécie de Jeremias. Por exemplo, não
discordo do Sr. Burford de que a desigualdade sofrida pela população negra
americana dos Estados Unidos atrapalhou o sonho americano. Na verdade, tem.
Discordo
com algumas outras coisas que ele tem a dizer. O outro elemento, mais profundo,
de uma certa estranheza que sinto tem a ver com o ponto de vista de alguém.
Tenho que colocar dessa maneira – o sentido, o sistema de realidade de alguém.
Parece-me que a proposição perante a Câmara, e eu colocaria dessa forma, é o
sonho americano às custas do negro americano, ou o sonho americano * é* às
custas do negro americano.
A
questão está terrivelmente carregada, e então a resposta de alguém a essa
questão – a reação de alguém a essa questão – tem que depender do efeito e, com
efeito, de onde você se encontra no mundo, qual é o seu senso de realidade,
qual é o seu sistema de realidade é. Isto é, depende de suposições que
sustentamos tão profundamente que mal temos consciência delas.
Sejam
brancos sul-africanos ou meeiros do Mississippi, ou xerifes do Mississippi, ou
um francês expulso da Argélia, todos têm, no fundo, um sistema de realidade que
os obriga a, por exemplo, no caso do exílio francês da Argélia, ofender razões
francesas para ter governado a Argélia.
O
xerife do Mississippi ou do Alabama, que realmente acredita, quando se depara
com um menino ou uma menina negra, que essa mulher, esse homem, essa criança
devem ser loucos para atacar o sistema ao qual ele deve toda a sua identidade.
Claro, para tal pessoa, a proposição que estamos tentando discutir aqui esta
noite não existe.
E,
por outro lado, devo falar como uma das pessoas mais atacadas pelo que agora
devemos chamar de sistema de realidade ocidental ou europeu. Que pessoas
brancas no mundo, o que chamamos de supremacia branca – odeio dizer isso aqui –
vem da Europa. Foi assim que chegou à América. Abaixo, então, qualquer que seja
a reação de alguém a esta proposição, tem que ser a questão de se as
civilizações podem ou não ser consideradas, como tais, iguais, ou se a
civilização de alguém tem o direito de dominar e subjugar, e, de fato, de
destruir outra.
John
F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova
York. Quando foi Presidente dos Estados Unidos e até a sua morte em 1963, John
Kennedy desejava que a pauta dos direitos civis e do direito ao voto livre se
tornasse realidade.
Agora,
o que acontece quando isso acontece. Deixando de lado todos os fatos físicos
que se podem citar. Deixando de lado estupro ou assassinato. Deixando de lado o
catálogo sangrento da opressão, com o qual de certa forma já estamos
familiarizados, o que isso faz ao subjugado, o mais privado, a coisa mais séria
que isso faz ao subjugado, é destruir seu senso de realidade. Isso destrói, por
exemplo, a autoridade de seu pai sobre ele. Seu pai não pode mais dizer nada a
ele, porque o passado desapareceu, e seu pai não tem poder no mundo. Isso
significa, no caso de um negro americano, nascido naquela república
resplandecente, e no momento em que você nasce, já que não conhece nada melhor,
todo pau e pedra e todo rosto são brancos.
E
como você ainda não viu um espelho, supõe que também o é. É um grande choque,
por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você
jurou fidelidade, junto com todas as outras pessoas, não jurou fidelidade a
você. É um grande choque descobrir que Gary Cooper matou os índios, quando você
estava torcendo por Gary Cooper, que os índios eram você. É um grande choque
descobrir que o país que é o seu lugar de nascimento e ao qual você deve sua
vida e sua identidade, não evoluiu, em todo o seu sistema de realidade, nenhum
lugar para você.
O
descontentamento, a desmoralização e a distância entre uma pessoa e outra
apenas com base na cor de sua pele, começa aí e acelera – acelera ao longo de
uma vida inteira – até o presente quando você percebe que tem trinta anos e
está passando por maus bocados para confiar em seus conterrâneos. Quando você
tem trinta anos, já passou por um certo tipo de moinho. E o efeito mais sério
do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os
policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os
bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o
que significa que você é um ser humano sem valor. Não é isso.
É
nessa época que você começa a ver isso acontecendo, em sua filha ou em seu
filho, ou em sua sobrinha ou sobrinho. E o efeito mais sério do moinho pelo
qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os
motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as
seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que
significa que você é um ser humano sem valor.
Você
já tem trinta anos e nada do que fez ajudou a escapar da armadilha. Mas o que é
pior do que isso, é que nada do que você fez e, pelo que você pode dizer, nada
do que você pode fazer, salvará seu filho ou sua filha de enfrentar o mesmo
desastre e não impossivelmente chegar ao mesmo fim.
Agora,
estamos falando sobre despesas. Suponho que haja várias maneiras de nos
dirigirmos a alguma tentativa de descobrir o que essa palavra significa aqui.
Deixe-me colocar desta forma, que de um ponto de vista muito literal, os portos
e os portos e as ferrovias do país – a economia, especialmente dos estados do
Sul – não poderiam ser o que se tornou, se tivessem não teve, e ainda não tem,
na verdade por muito tempo, por muitas gerações, mão de obra barata. Estou
afirmando muito a sério, e isso não é um exagero: * Eu* colhi o algodão, * eu *
levei-o para o mercado e * eu * construí as ferrovias sob o chicote de outra
pessoa por nada. Por nada.
A
oligarquia do Sul, que ainda hoje tem tanto poder em Washington, e, portanto,
algum poder no mundo, foi criada pelo meu trabalho e meu suor, e pela violação
de minhas mulheres e o assassinato de meus filhos. Isso, na terra dos livres e
na casa dos bravos. E ninguém pode contestar essa afirmação. É uma questão de
registro histórico.
De
outra forma, esse sonho, e vamos chegar ao sonho em um momento, está às custas
do negro americano. Você assistiu a isso no Deep South[3] com grande alívio.
Mas não apenas no Deep South. No Deep South, você está lidando com um xerife ou
um senhorio, ou uma senhoria ou uma garota do balcão da Western Union, e ela
não sabe exatamente com quem está lidando, com isso quero dizer, se você não
uma parte da cidade, e se você é um negro do norte, isso se mostra de milhões
de maneiras. Então ela simplesmente sabe que é uma quantidade desconhecida, e
ela não quer ter nada a ver com isso porque ela não quer falar com você, você
tem que esperar um pouco para receber o seu telegrama. OK, todos nós sabemos
disso. Todos nós já passamos por isso e, quando você se torna um homem, é muito
fácil de lidar. Mas o que está acontecendo com a pobre mulher, a mente do pobre
é o seguinte:
Bem,
sugiro que, de todas as coisas terríveis que podem acontecer a um ser humano,
essa é uma das piores. Eu sugiro que o que aconteceu com os sulistas brancos é,
de certa forma, afinal, muito pior do que o que aconteceu com os negros lá
porque o xerife Clark em Selma, Alabama, não pode ser considerado – você sabe,
ninguém pode ser considerado um monstro total[4]. Tenho certeza que ele ama sua
esposa, seus filhos. Tenho certeza, você sabe, ele gosta de ficar bêbado.
Afinal, é preciso presumir que ele é visivelmente um homem como eu.
Mas
ele não sabe o que o leva a usar o porrete, a ameaçar com a arma e a usar o
aguilhão. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para poder colocar
um aguilhão no peito de uma mulher, por exemplo. O que acontece com a mulher é
horrível. O que acontece ao homem que o faz é, de certa forma, muito pior.
Afinal, isso está sendo feito não há cem anos, mas em 1965, em um país que é
abençoado com o que chamamos de prosperidade, uma palavra que não examinaremos
muito de perto; com um certo tipo de coerência social, que se autodenomina uma
nação civilizada e que defende a noção da liberdade do mundo. E é perfeitamente
verdade do ponto de vista agora simplesmente de um negro americano.
Qualquer
negro americano que assista a isso, não importa onde esteja, do ponto de vista
do Harlem, que é outro lugar terrível, tem que dizer a si mesmo, apesar do que
o governo diz – o governo diz que não podemos fazer nada a respeito – mas se
aquelas pessoas fossem brancas sendo assassinadas nas fazendas de trabalho do
Mississippi, sendo levadas para a prisão, se aquelas fossem crianças brancas
correndo para cima e para baixo nas ruas, o governo encontraria alguma maneira
de fazer algo a respeito.
Temos
um projeto de lei de direitos civis agora em que uma emenda, a décima quinta
emenda, quase cem anos atrás – odeio soar novamente como um profeta do Velho
Testamento – mas se a emenda não fosse honrada então, eu teria qualquer razão
para acreditar no projeto de lei de direitos civis será honrado agora. E depois
de todos estarem lá, desde antes, sabe, muitas outras pessoas chegaram lá. Se é
preciso provar o título de propriedade da terra, quatrocentos anos não bastam?
Quatrocentos anos? Pelo menos três guerras? O solo americano está cheio de
cadáveres de meus ancestrais. Por que é minha liberdade ou minha cidadania, ou
meu direito de viver lá, como isso é concebivelmente uma questão agora? E eu
sugiro ainda, e da mesma forma, a vida moral dos xerifes do Alabama e das
pobres senhoras do Alabama – senhoras brancas – suas vidas morais foram
destruídas pela praga chamada cor.
Correndo
o risco de soar excessivo, o que sempre senti, quando finalmente deixei o país,
e me encontrei no exterior, em outros lugares, e observei os americanos no
exterior – e esses são meus compatriotas – e me preocupo com eles, e até mesmo
se eu não fiz, há algo entre nós. Temos a mesma abreviatura, eu sei, se eu
olhar para um menino ou uma menina do Tennessee, de onde eles vieram no Tennessee
e o que isso significa.
Nenhum
inglês sabe disso. Nenhum francês, ninguém no mundo sabe disso, exceto outro
homem negro que vem do mesmo lugar. Observamos essas pessoas solitárias negando
o único parente que possuem. Falamos sobre integração na América como se fosse
um grande enigma novo.
O
problema na América é que estamos integrados há muito tempo. Coloque-me ao lado
de qualquer africano e você verá o que quero dizer. Minha avó não era uma
estupradora. O que não enfrentamos é o resultado do que fizemos. O que se leva
o povo americano a fazer por todos nós é simplesmente aceitar nossa história.
Eu estava lá não apenas como escrava, mas também como concubina. Afinal,
conhece-se o poder que pode ser usado contra outra pessoa se você tiver poder
absoluto sobre essa pessoa.
Ao
observar os americanos na Europa, pareceu-me que o que eles não sabiam sobre os
europeus era o que não sabiam sobre mim. Eles não estavam tentando, por
exemplo, ser desagradáveis com a garota francesa ou rudes com o garçom francês.
Eles não sabiam que feriam seus sentimentos. Eles não tinham nenhum senso de
que essa mulher em particular, este homem em particular, embora falassem outra
língua e tivessem maneiras e maneiras diferentes, era um ser humano.
E
eles andaram por cima deles, o mesmo tipo de ignorância branda,
condescendência, charme e alegria com que sempre me deram tapinhas na cabeça e
me chamaram de Shine e ficavam chateados quando eu ficava chateado. O que é
relevante nisso é que enquanto há quarenta anos, quando nasci, a questão de ter
que lidar com o que não é dito pelo subjugado, o que nunca é dito ao mestre, de
ter que lidar com essa realidade era uma possibilidade muito remota. Não estava
na mente de ninguém.
Quando
eu era criança, aprendi nos livros de história americanos que a África não
tinha história, nem eu. Que eu era um selvagem de quem quanto menos falava
melhor, que fora salvo pela Europa e trazido para a América. E, claro, eu
acreditei. Eu não tive muita escolha. Esses eram os únicos livros que existiam.
Todos os outros pareciam concordar.
Se
você sair do Harlem, sair do Harlem, no centro da cidade, o mundo concorda que
o que você vê é muito maior, mais limpo, mais branco, mais rico e mais seguro
do que onde você está. Eles recolhem o lixo. Obviamente, as pessoas podem pagar
seu seguro de vida. Seus filhos parecem felizes e seguros. Você não é. E você
volta para casa, e parece que, é claro, que é um ato de Deus que isso seja
verdade! Que você pertence ao lugar onde os brancos o colocaram.
Somente
a partir da Segunda Guerra Mundial que existe uma contra imagem no mundo. E
essa imagem não surgiu por meio de qualquer legislação ou parte de qualquer
governo americano, mas pelo fato de que a África de repente estava no palco do
mundo, e os africanos tinham que ser tratados de uma forma que nunca haviam
sido tratados antes. Isso deu a um negro americano, pela primeira vez, uma
sensação de si mesmo além do selvagem ou do palhaço. Ele criou e criará muitos
enigmas.
Uma
das grandes coisas que o mundo branco não sabe, mas acho que sei, é que os
negros são como todo mundo. Utilizou-se o mito do negro e o mito da cor para
fingir e supor que se tratava, essencialmente, de algo exótico, bizarro e
praticamente, segundo as leis humanas, desconhecido. Infelizmente, isso não é
verdade. Também somos mercenários, ditadores, assassinos, mentirosos. Nós
também somos humanos.
O
que é crucial aqui é que, a menos que consigamos aceitar, estabelecer algum
tipo de diálogo entre aquelas pessoas que eu finjo que pagaram pelo sonho
americano e aquelas outras pessoas que não o realizaram, estaremos em apuros
terríveis.
Quero
dizer, enfim, o último, é isso que mais me preocupa. Estamos sentados nesta
sala, e todos nós somos, pelo menos eu gostaria de pensar que somos
relativamente civilizados, e podemos conversar uns com os outros. Pelo menos em
certos níveis para que possamos sair daqui presumindo que a medida de nossa
iluminação, ou pelo menos, nossa polidez, tem algum efeito no mundo. Pode não
ser.
Lembro-me,
por exemplo, quando o ex-procurador-geral, senhor Robert Kennedy, disse que era
concebível que em quarenta anos, na América, pudéssemos ter um presidente
negro. Isso soou como uma declaração muito emancipada, suponho, para os
brancos. Eles não estavam no Harlem quando essa declaração foi ouvida pela
primeira vez. E eles não estão aqui, e possivelmente nunca ouvirão as risadas e
a amargura e o desprezo com que esta declaração foi saudada.
Do
ponto de vista do homem da barbearia do Harlem, Bobby Kennedy[5] só chegou aqui
ontem e já está a caminho da presidência. Estamos aqui há quatrocentos anos e
agora ele nos diz que talvez daqui a quarenta anos, se você for bom, podemos
deixá-lo se tornar presidente.
O
que é perigoso aqui é se afastar de – se afastar de – qualquer coisa que
qualquer americano branco diga. O motivo da hesitação política, apesar do
deslizamento de terra de Johnson, é que um foi traído por políticos americanos
por muito tempo. E eu sou um homem adulto e talvez eu possa argumentar com
isso. Eu certamente espero que possa ser.
Mas
eu não sei, e nem Martin Luther King[6], nenhum de nós sabe como lidar com
aquelas outras pessoas que o mundo branco ignorou por tanto tempo, que não
acreditam em nada que o mundo branco diz e não acreditam inteiramente qualquer
coisa que eu ou Martin estivermos dizendo. E não se pode culpá-los. Você
observa o que aconteceu com eles em menos de vinte anos.
Parece-me
que a cidade de Nova York, por exemplo – este é o meu último ponto – há muito
tempo tem negros nela. Se a cidade de Nova York foi capaz, como de fato tem
sido capaz, nos últimos quinze anos de se reconstruir, demolir prédios e
levantar outros novos, no centro da cidade e por dinheiro, e não fez nada
exceto construir conjuntos habitacionais no gueto para os negros. E, claro, os
negros odeiam.
Atualmente,
a propriedade realmente se deteriora porque as crianças não podem suportá-la.
Eles querem sair do gueto. Se as pretensões americanas estivessem baseadas em
uma avaliação mais sólida e honesta da vida e de si mesmos, não significaria
para os negros quando alguém disser “renovação urbana” que os negros podem simplesmente
ser jogados na rua. Isso é exatamente o que significa agora. Este não é um ato
de Deus.
Estamos
lidando com uma sociedade feita e governada por homens. Se o negro americano
não estivesse presente na América, estou convencido de que a história do
movimento operário americano seria muito mais edificante do que é. É uma coisa
terrível para um povo inteiro se render à noção de que um nono de sua população
está abaixo deles.
E
até aquele momento, até que chegue o momento em que nós, os americanos, nós, o
povo americano, possamos aceitar o fato, que eu tenho que aceitar, por exemplo,
que meus ancestrais são brancos e negros. Que naquele continente estamos
tentando forjar uma nova identidade para a qual precisamos uns dos outros e que
não estou sob a tutela da América.
Não
sou objeto de caridade missionária. Eu sou uma das pessoas que construiu o país
– até o momento, quase não há esperança para o sonho americano, porque as
pessoas a quem é negada a participação nele, por sua própria presença, irão destruí-lo.
E se isso acontecer, é um momento muito grave para o Ocidente.
Obrigado.
FONTE:
https://tokdehistoria.com.br/2022/01/18/o-famoso-debate-entre-o-escritor-james-baldwin-e-o-intelectual-william-f-buckley-na-universidade-cambridge/
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