A escrita da celebrada Scherezade brasileira, Nélida Piñon,
seduziu-me desde as suas primeiras publicações. Os romances Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961)
e Madeira feita
cruz (1962), os contos de Tempo
de frutas (1966) e a estrutura romanesca de Fundador (1969)
– narrativas míticas, iconoclastas a cânones, mas desveladoras de
novos caminhos estéticos – já na primeira leitura me encantaram.
Assim, o texto de Piñon
tornou-se, de há muito, objeto de minhas leituras e de
análises teóricas, exposições em palestras, cursos, seminários,
congressos, além de aprofundamentos nas aulas da pós-graduação da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tanto que, em 1994,
orientei a tese de doutorado de Maria Alice Pires de Aguiar aprovada com
conceito máximo, intitulada “O mito da origem na tríplice construção de Nélida
Piñon: arcaica, medieval e moderna nos romances Guia-mapa de Gabriel Arcanjo,
Madeira feita cruz e Fundador”.
Também proferi palestras
sobre a obra de Piñon em várias cidades do Brasil e na Espanha, principalmente
na Galícia, mítico território dos antepassados da autora, abordando
especificamente a obra A
república dos sonhos. Portanto, o encantamento pela sua ficção já vem de
longa data.
Em 2006, por indicação da própria acadêmica, o CEDIM
(Conselho Estadual dos Direitos da Mulher), sediado no Rio de Janeiro,
convidou-me para participar do vídeo “Projeto Memória Viva”, sobre
a significação da estética de Nélida Piñon no panorama feminino das
letras nacionais e no mundo. Na ocasião, além de aludir a seus múltiplos
outros aspectos ficcionais, mencionei a emoção que a sua letra
poética exerceu, em meu imaginário, a leitura do conto
“Ave do paraíso”, publicado em uma revista da época e depois
incluída na coletânea de Sala
de Armas (1973).
A dicção diferente, desconcertante, mas fundamentalmente
poética daquele conto, que minha amiga Eliana Bueno Ribeiro leu para mim na
cantina da UFF, impactou-nos já a partir do título com sua
estilística fônica, abrindo-se à polissemia de sentidos.
Se lido rápido, o sintagma "Ave do paraíso", pela fusão
da sonoridade das palavras, sugere estar o personagem masculino “ávido do
paraíso”. Isso tem lógica, porque, segundo a trama, o homem partia, mas sempre
voltava para a mulher, sua metafórica "ave do paraíso" que, sem
falta, o esperava com uma torta de chocolate. Após as frequentes
peregrinações pelo mundo, um dia ele veio para ficar. Descansou o cajado –
"Ávido do paraíso" – sem mais necessidade de voltar... Chegara
finalmente a ele, o definitivo éden doméstico.
Deste modo este conto comentado sem lê-lo no texto de Nélida,
esvai-se a sugestiva densidade com que foi trabalhado pela linguagem
refinada e poética da autora. Similar aos demais escritos da fase
introdutória da sua produção, “Ave do paraíso" é mais uma página
impregnada da inauguralidade mítica, em tensão com as palavras dicionarizadas
da língua.
Acionada
pelo vigor da linguagem, sua narrativa na visceral efabulação
da trama, reflete um mundo originário. Nela, os personagens, numa
paisagem totalmente primitiva, são inominados – apenas designados
por "o homem" e "a mulher", mas traduzem
momentos essenciais de situações humanas. Visceralmente humanas.
Cada
vez mais fascinada pela obra daquela então novel escritora, eu vasculhava
livrarias em busca desta estranha ficcionista que mexia com meu
inconsciente com histórias de tão aparente singeleza. Apenas um homem e uma
mulher, pródromos de um mundo novo da criação. E assim tudo que Piñon
produzia, imantava-me,
A
problemática do mito, do sagrado, do feminino tornara-se cada
vez mais intensa em minha vida. Comecei, então a escrever e a
publicar sobre seus livros que iam surgindo no mesmo clima de Inauguralidade.
Realçava, em palestras e em aulas à luz das categorias do mito e do sagrado, a
narrativa de A casa da
paixão, fascinante história de Marta, a jovem sacerdotisa do
Sol. Personagem que através do amor, revisitou com Jerônimo também o mito
edênico do paraíso.
Em fins de dezembro de 2007, estando eu já aposentada da
Faculdade de Letras da UFRJ, a Fundação Biblioteca Nacional financiou-me um
projeto de pesquisa para ser realizado em 2008 e 2009, referente à
coleta, seleção e análise das mais representativas entrevistas concedidas
por Nélida a diversificados jornais do Brasil e exterior.
Visava eu, assim, a iniciar a sua Fortuna Crítica, inexistente até então,
apesar de Piñon já ser uma das laureadas escritoras da cena literária
contemporânea, detentora de inúmeros prêmios, títulos, troféus no Brasil e
exterior.
Concluída, em 2009, minha tarefa para a FBN com o
cotejo e interpretação de bem mais de cinquenta de seus depoimentos dados à
mídia escrita, suas frases mais expressivas foram levantadas
em diálogo com muitos de seus livros no
nosso ensaio-prefácio Conversas
com Nélida. Com tal trabalho, compilatório e analítico –
pesquisado na Fundação Biblioteca Nacional, nos arquivos da
Biblioteca e da Memória da Academia de Letras e também
no acervo particular da própria autora, que gentilmente nos abriu seus
arquivos, já não se perdem, na efemeridade das notícias dos jornais e revistas,
páginas tão significativas com reflexões literárias, artísticas, filosóficas,
políticas, existenciais da escritora, embora, presentemente sua eficiente
secretária tenha composto primoroso acervo de toda a produção da
escritora.
Em
2012, por indicação da ficcionista, coparticipei do Projeto
HISTÓRIAS DE ACADÊMICOS - Nélida Piñon -“Palavra feita sensibilidade”,
concretizado pela TV Senado e levado ao ar em 4 de novembro do mesmo ano. No
depoimento filmado no Real Gabinete Português de Leitura, aludi às
manifestações proteicas de sua escritura continuamente em processo,
atualizando-se em compasso com as urgências do mundo.
Modernamente,
com a mudança do eixo de gravitação do nosso tempo – aceleração em todas as
instâncias do viver, fragmentação do sujeito, a vertigem da
sociedade pós-industrial e do espetáculo, a complexidade das relações aliada à
variedade de papeis exercidos pelos indivíduos, as interações das
vivências globalizadas – tudo isso refletiu na construção da obra
multifacetada da romancista.
Já
antecipando e acompanhando o fluxo das desconstruções, deslocamentos,
desterritorializações atuais, a produção da acadêmica foi-se também
transmutando com outras configurações em compasso com a dinâmica de outras
ideias da nova arte. Aliás, em entrevistas à imprensa e também em seus livros,
Piñon aludiu à sua característica camaleônica, proteica, transformado-se
continuamente, como o velho Proteu da lenda, que, após as mutações pelos três
reinos, ele retorna a seu originário ser.
Todavia, o que é significativo, similar a Proteu, Nélida Piñon,
audaz condutora das estratégias do novo, não perdeu seus emblemas originários,
centrados no mito, no sagrado, na memória, na Idade Média, na cultura grega, na
sua gênese galega de matrizes celtibéricas – alicerces, sobretudo temáticos,
transparentes nos livros primeiros. Nas rotas do devir histórico, a
escritora brasileira não
esmaeceu os signos das expressões originárias. Aliás, quem foi tocada pelas
chamas do atemporal preserva sempre suas marcas.
Com rara sabedoria, Nélida conseguiu estabelecer a verdadeira philia dialógica, ou
seja, a fecunda amizade interlocutiva entre os assuntos do passado
com os emblemas do presente e os anúncios do porvir. Por isso, não sem
razão, em suas várias entrevistas por mim comentadas no livro intitulado.
Conversas
com Nélida (a sair) – o quarto da minha coleção de cinco tomos, nomeada AVENTURAS NARRATIVAS DE
NÉLIDA PIÑON – ela se diz arcaica e moderna. De fato, Piñon transita em todos
os tempos. Sua obra e pancrônica.
Indo
aos fundamentos essenciais das coisas e do
mundo, a escritora lança, no presente, o arco da aliança do passado ao
futuro, articulando, a teoria unitária da arte, segundo venho
pretendendo demonstrar nos cinco livros que escrevi – três já
publicados “Nélida Piñon nos labirintos da memória”; ‘Nélida
Piñon entre contos e crônicas’’; “Aventuras narrativas de Nélida Piñon”,
complementados com “Conversas com Nélida” e “Nélida das astúcias e
artifícios da Arte’’, ao analisar toda a sua produção desde “Guia mapa de
Gabriel Arcanjo” até o momento de agora de “Um dia chegarei a Sagres”“.
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