quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

MINHA ANTIGA CONVIVÊNCIA COM A OBRA DE NÉLIDA PIÑON TEXTO DE DALMA NASCIMENTO

 



 

A escrita da celebrada Scherezade brasileira, Nélida Piñon, seduziu-me desde as suas primeiras publicações.  Os romances Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961) e  Madeira feita cruz (1962), os contos de Tempo de frutas (1966) e a estrutura romanesca de Fundador (1969) –  narrativas míticas, iconoclastas a cânones, mas  desveladoras de novos caminhos estéticos – já na primeira leitura  me encantaram.

 

Assim, o texto de Piñon tornou-se, de há muito, objeto de  minhas leituras e de   análises teóricas,  exposições em palestras, cursos, seminários, congressos, além de aprofundamentos  nas aulas da  pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Tanto que, em 1994, orientei  a tese de doutorado de Maria Alice Pires de Aguiar aprovada com conceito máximointitulada “O mito da origem na tríplice construção de Nélida Piñon: arcaica, medieval e moderna nos romances Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, Madeira feita cruz e Fundador”.

Também proferi palestras  sobre a obra de Piñon em várias cidades do Brasil e na Espanha, principalmente na Galícia, mítico território dos antepassados da autora, abordando especificamente a obra A república dos sonhos. Portanto, o encantamento pela sua ficção já vem de longa data.

 

Em  2006, por  indicação da própria acadêmica, o CEDIM (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher), sediado no Rio de Janeiro, convidou-me para participar do vídeo “Projeto Memória Viva”,  sobre  a significação da estética de  Nélida Piñon no panorama feminino das letras nacionais e no mundo. Na ocasião, além de aludir a seus múltiplos  outros aspectos ficcionais,  mencionei a emoção  que a sua letra poética exerceu, em  meu imaginário,  a  leitura do conto  “Ave do paraíso”, publicado em uma  revista da época e  depois incluída  na  coletânea de Sala de Armas (1973).

   

A dicção diferente, desconcertante, mas fundamentalmente  poética daquele conto, que minha amiga Eliana Bueno Ribeiro leu para mim na cantina da UFF, impactou-nos já  a partir do título com  sua estilística fônica, abrindo-se  à polissemia de sentidos.

 

Se lido rápido, o sintagma "Ave do paraíso", pela fusão da sonoridade das palavras, sugere estar o personagem masculino “ávido do paraíso”. Isso tem lógica, porque, segundo a trama, o homem partia, mas sempre voltava para a mulher, sua metafórica "ave do paraíso" que, sem falta,  o esperava com uma torta de chocolate. Após as frequentes  peregrinações pelo mundo, um dia ele veio para ficar. Descansou o cajado – "Ávido do paraíso" – sem mais necessidade de voltar... Chegara finalmente a ele, o definitivo éden doméstico.

 

Deste modo este conto comentado sem lê-lo no texto de Nélida, esvai-se  a sugestiva densidade com que foi trabalhado pela linguagem refinada e poética da autora.  Similar aos demais escritos da fase introdutória da sua produção, “Ave do paraíso" é mais uma página impregnada da inauguralidade mítica, em tensão com as palavras dicionarizadas da língua.

 

Acionada pelo vigor da linguagem, sua narrativa  na  visceral  efabulação da trama, reflete  um mundo originário. Nela, os personagens, numa paisagem totalmente primitiva,  são inominados – apenas designados por  "o homem" e "a mulher",  mas traduzem  momentos essenciais de situações humanas.  Visceralmente humanas.    

   

Cada vez mais fascinada pela obra daquela  então novel escritora, eu vasculhava livrarias em busca desta estranha  ficcionista  que mexia com meu inconsciente com histórias de tão aparente singeleza. Apenas um homem e uma mulher, pródromos de um mundo novo da criação. E assim tudo que  Piñon produzia,  imantava-me,

 

A problemática  do mito, do  sagrado, do feminino  tornara-se cada vez mais intensa em minha vida.  Comecei, então  a escrever e a publicar sobre seus livros que iam surgindo no mesmo clima de Inauguralidade. Realçava, em palestras e em aulas à luz das categorias do mito e do sagrado, a narrativa de A casa da paixão,  fascinante história de Marta, a jovem sacerdotisa do Sol. Personagem que através do amor, revisitou  com Jerônimo também o mito edênico do paraíso.  

 

Em  fins de dezembro de 2007, estando eu já aposentada da Faculdade de Letras da UFRJ, a Fundação Biblioteca Nacional financiou-me um projeto de pesquisa para ser realizado  em  2008 e 2009, referente à coleta, seleção e análise  das mais representativas entrevistas concedidas por Nélida  a diversificados jornais do Brasil e exterior.  Visava  eu, assim, a iniciar a sua Fortuna Crítica, inexistente até então, apesar de Piñon já ser uma das laureadas escritoras da cena literária contemporânea, detentora de inúmeros prêmios, títulos, troféus no Brasil e exterior.

 

Concluída, em 2009,  minha tarefa para a FBN  com o cotejo e interpretação de bem mais de cinquenta de seus depoimentos dados à mídia escrita, suas  frases mais expressivas foram levantadas em   diálogo com muitos de seus   livros no  nosso  ensaio-prefácio Conversas com Nélida.  Com tal trabalho, compilatório e analítico – pesquisado na Fundação Biblioteca Nacional, nos arquivos  da Biblioteca  e  da Memória da Academia de Letras   e também no acervo particular  da própria autora, que gentilmente nos abriu seus arquivos, já não se perdem, na efemeridade das notícias dos jornais e revistas, páginas tão significativas com reflexões literárias, artísticas, filosóficas, políticas, existenciais da escritora,  embora, presentemente sua eficiente secretária tenha  composto primoroso  acervo de toda a produção da escritora.

 

Em 2012,  por indicação da ficcionista, coparticipei do Projeto  HISTÓRIAS DE ACADÊMICOS - Nélida Piñon -“Palavra feita sensibilidade”,  concretizado pela TV Senado e levado ao ar em 4 de novembro do mesmo ano. No depoimento filmado no Real Gabinete Português de Leitura, aludi às manifestações proteicas de sua escritura continuamente em processo, atualizando-se em compasso com as urgências do mundo.

 

Modernamente, com a mudança do eixo de gravitação do nosso tempo – aceleração em todas as instâncias do viver, fragmentação do sujeito,  a vertigem da  sociedade pós-industrial e do espetáculo, a complexidade das relações aliada à variedade de papeis exercidos pelos indivíduos, as  interações  das vivências globalizadas – tudo isso refletiu  na construção da obra multifacetada da romancista.

 

Já antecipando e acompanhando o fluxo das  desconstruções, deslocamentos, desterritorializações  atuais, a produção  da acadêmica foi-se também transmutando com outras configurações em compasso com a dinâmica  de outras ideias da nova arte. Aliás, em entrevistas à imprensa e também em seus livros, Piñon aludiu à sua característica  camaleônica, proteica, transformado-se continuamente, como o velho Proteu da lenda, que, após as mutações pelos três reinos, ele retorna a seu originário ser. 

           

Todavia, o que é significativo, similar a Proteu, Nélida Piñon, audaz condutora das estratégias do novo, não perdeu seus emblemas originários, centrados no mito, no sagrado, na memória, na Idade Média, na cultura grega, na sua gênese galega de matrizes celtibéricas – alicerces, sobretudo temáticos, transparentes nos  livros primeiros. Nas rotas do devir histórico, a escritora brasileira não esmaeceu os signos das expressões originárias. Aliás, quem foi tocada pelas chamas do  atemporal preserva sempre suas marcas.

 

Com rara sabedoria, Nélida conseguiu estabelecer a verdadeira philia dialógica, ou seja,  a fecunda amizade interlocutiva entre os  assuntos do passado com os emblemas do presente e  os anúncios do porvir. Por isso, não sem razão, em suas  várias entrevistas por mim comentadas no livro intitulado.

 

Conversas com Nélida  (a sair) – o quarto  da minha coleção de cinco tomos, nomeada AVENTURAS NARRATIVAS DE NÉLIDA PIÑON – ela se diz arcaica e moderna. De fato, Piñon transita em todos os tempos. Sua obra e pancrônica.

 

Indo aos fundamentos essenciais das coisas e do mundo, a escritora lança, no presente, o arco da aliança do  passado ao futuro,  articulando, a  teoria unitária da arte,  segundo venho pretendendo  demonstrar  nos cinco livros  que escrevi – três já publicados  “Nélida Piñon  nos labirintos da memória”;  ‘Nélida Piñon  entre contos e crônicas’’; “Aventuras narrativas de Nélida Piñon”, complementados com “Conversas com Nélida”  e “Nélida das astúcias e artifícios da Arte’’, ao analisar toda a sua produção desde “Guia mapa de Gabriel Arcanjo”  até o momento de agora de “Um dia chegarei a Sagres”“.








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