terça-feira, 28 de outubro de 2025

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO — A ESCURIDÃO QUE REVELA A HUMANIDADE - RESENHA DE ALBERTO ARAÚJO

Imagine uma cidade qualquer. Um homem para no semáforo e, de repente, perde a visão. Não há ferimento, não há explicação. Apenas um branco leitoso que o envolve. Assim começa “Ensaio sobre a cegueira”, romance do Nobel português José Saramago, publicado em 1995. O que se segue é uma espiral de colapso social, moral e existencial, uma alegoria brutal e poética sobre a fragilidade da civilização e a resiliência do espírito humano. 

A PREMISSA: A CEGUEIRA COMO METÁFORA

A cegueira que se espalha como uma epidemia não é a escuridão habitual, mas uma luz branca, leitosa, que cega os olhos e, mais profundamente, a alma. Saramago não está interessado em diagnósticos médicos ou explicações científicas. Seu foco é outro: o que acontece com uma sociedade quando sua estrutura de controle, leis e convenções desaparece? O que resta do ser humano quando tudo o que o civiliza é arrancado?

A resposta é desconcertante. O autor nos conduz a um mundo onde a barbárie se instala com rapidez assustadora. Os cegos são confinados em quarentena, abandonados pelo Estado, e logo se veem mergulhados em um microcosmo de violência, sujeira, fome e desespero. A cegueira, aqui, é menos uma deficiência física e mais uma metáfora da ignorância, da indiferença e da perda de empatia. 

No centro da narrativa está a mulher do médico, a única que não perde a visão. Sua lucidez, no entanto, não é um privilégio, mas um fardo. Ela vê tudo: a degradação, a miséria, os abusos. E, por isso mesmo, carrega o peso da responsabilidade. É ela quem guia, alimenta, limpa, consola. Sua visão é o fio que mantém o grupo unido, e sua humanidade é o último bastião contra o colapso total.

Saramago constrói essa personagem com uma força silenciosa. Ela não é heroína no sentido clássico, mas uma mulher comum que, diante do caos, escolhe não ceder à selvageria. Sua resistência é feita de gestos simples: lavar um corpo, dividir um pão, proteger os mais fracos. Em um mundo cego, ela é os olhos, mas também a consciência. 

ESTILO E FORMA: A LINGUAGEM COMO DESAFIO 

Ler Saramago é, por si só, um exercício de imersão. Sua prosa é densa, fluida, sem parágrafos convencionais, sem travessões para diálogos, com pontuação mínima. Isso exige do leitor uma atenção redobrada, quase como se também estivéssemos tateando no escuro, buscando sentido em meio ao caos das palavras. Mas há método nessa aparente desordem: o estilo reflete o próprio conteúdo do livro. A ausência de nomes (os personagens são “o médico”, “a rapariga dos óculos escuros”, “o velho da venda preta”) reforça a ideia de despersonalização e anonimato diante da catástrofe.

A linguagem de Saramago é ao mesmo tempo crua e lírica. Ele descreve cenas de horror com uma beleza desconcertante, como se dissesse: mesmo na lama, há poesia. Mesmo na cegueira, há luz. 

TEMAS E SIMBOLISMOS: O ESPELHO DA SOCIEDADE 

“Ensaio sobre a cegueira” é uma obra profundamente simbólica. A cegueira coletiva pode ser lida como crítica à alienação moderna, à burocracia desumanizante, à passividade diante da injustiça. O colapso da ordem revela o que há de mais primitivo no ser humano, mas também o que há de mais nobre.

Saramago nos obriga a encarar perguntas incômodas: o que nos torna humanos? O que é civilização senão um verniz frágil que se desfaz ao menor sinal de crise? Por que precisamos perder a visão para enxergar o outro? 

A cegueira, nesse sentido, é reveladora. Ela desnuda as estruturas de poder, expõe a hipocrisia, escancara a desigualdade. E, paradoxalmente, é na escuridão que os personagens descobrem a solidariedade, a compaixão, o amor. 

A ATUALIDADE DO CAOS

Embora escrito nos anos 1990, o romance ganhou nova relevância em tempos de pandemia, crises políticas e colapsos sociais. A quarentena dos cegos, o medo do contágio, a negligência do Estado, a luta por recursos básicos, tudo ecoa de forma assustadora com os eventos recentes do mundo real.

Mais do que uma distopia, “Ensaio sobre a cegueira” é um espelho. Um lembrete de que a barbárie não está lá fora, mas dentro de nós, à espreita, esperando a oportunidade de emergir. E também um apelo à empatia, à lucidez, à coragem de ver.

IMPACTO E LEGADO

A obra de Saramago não é confortável. Ela incomoda, desafia, perturba. Mas é justamente por isso que é tão necessária. Ao nos colocar diante do abismo, o autor nos convida a escolher: ceder à escuridão ou buscar a luz. 

“Ensaio sobre a cegueira” é um livro que transforma. Não apenas pela força de sua narrativa, mas pela profundidade de sua reflexão. Ao final da leitura, não somos mais os mesmos. Algo em nós se desloca, se inquieta, se ilumina. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

José Saramago escreveu um romance que transcende o tempo e o espaço. Sua crítica à condição humana é feroz, mas não desesperançada. Há, no fundo, uma crença de que é possível resistir, reconstruir, recomeçar. A mulher do médico, com sua visão silenciosa, é a prova disso.

Ler “Ensaio sobre a cegueira” é como atravessar um túnel escuro, tateando paredes, tropeçando em escombros, ouvindo gritos ao longe. Mas, ao final, há uma fresta de luz. E, com ela, a possibilidade de ver, de verdade.

UM POUCO SOBRE JOSÉ SARAMAGO: O HOMEM QUE ENSINOU A VER

Nasceu em Azinhaga, uma aldeia portuguesa de nome miúdo, mas de alma vasta. José Saramago veio ao mundo em 1922, entre campos de oliveiras e o rumor das águas do Tejo. Era filho de gente simples, de mãos calejadas e olhos que sabiam ler o tempo. Cresceu entre livros emprestados e silêncios férteis, onde a imaginação germinava como trigo em terra boa. 

Não foi menino de berço dourado, mas de chão batido. Aprendeu cedo que as palavras podiam ser abrigo, ponte, espada e bálsamo. E fez delas seu ofício, sua casa, sua revolução íntima.

Saramago não escrevia, ele esculpia frases como quem talha pedra. Sua prosa é um rio sem margens, que corre livre, semeando ideias e inquietações. Os parágrafos se estendem como paisagens, os diálogos se entrelaçam como vozes em coro, e a pontuação se dissolve, como se o texto respirasse por conta própria. 

Ler Saramago é entrar num labirinto onde cada parede tem ouvidos, cada sombra tem história, e cada silêncio tem sentido. Ele não nos oferece respostas fáceis — nos convida a perguntar melhor. 

Seus romances são mundos paralelos onde o absurdo é cotidiano e o impossível é apenas uma questão de perspectiva. Em “Memorial do Convento”, o amor constrói catedrais e voa com asas de sonho. Em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, o divino é humano e o humano é divino. Em “Ensaio sobre a cegueira”, a luz é cegueira e a escuridão revela. 

Saramago não escrevia para entreter, escrevia para inquietar. Seus livros são espelhos que não refletem o rosto, mas a alma. São convites à lucidez, à dúvida, à compaixão. 

Mais do que escritor, Saramago foi um pensador. Um homem que acreditava na responsabilidade da palavra. Para ele, escrever era um ato ético, um gesto de resistência contra a indiferença. Seus personagens não são heróis, são gente comum, que tropeça, que sofre, que ama, que escolhe. 

E é nessa escolha que reside sua grandeza. Porque, em seus livros, o livre-arbítrio é semente de transformação. A mulher do médico, que vê em meio à cegueira, escolhe cuidar. Baltasar e Blimunda escolhem voar. Ricardo Reis escolhe permanecer entre os vivos e os mortos. E nós, leitores, escolhemos ver. 

Saramago deixou mais do que livros, deixou uma forma de olhar o mundo. Seu legado literocultural é uma constelação de ideias que continuam a iluminar leitores em todos os cantos. Foi traduzido em dezenas de línguas, lido por milhões, estudado, debatido, amado. 

Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, mas sua verdadeira consagração está nas bibliotecas vivas que habitam os corações dos que o leem. Está nas escolas que discutem seus textos, nos jovens que descobrem sua voz, nos adultos que reencontram sua lucidez. 

José Saramago partiu em 2010, mas não morreu. Porque quem escreve com verdade não morre, transforma-se em verbo. E Saramago é verbo: ver, pensar, sentir, resistir.

Hoje, sua casa em Lanzarote é museu, mas também é santuário. Seus livros continuam a ser publicados, relidos, reinterpretados. Sua voz continua a ecoar, como um farol em tempos de névoa.

José Saramago foi um mestre da palavra, um escultor de ideias, um jardineiro da lucidez. Sua obra é um convite à consciência, uma celebração da dúvida, uma ode à humanidade. 

© Alberto Araújo


 












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