Era um domingo de sol, desses que parecem ter sido escritos à mão por um poeta distraído. A Praça Getúlio Vargas, em Icaraí, pulsava com o murmúrio das palavras soltas ao vento, embaladas pela curadoria sensível de Paulo Roberto Cecchetti no projeto Escritores Ao Ar Livro. Ali, sob o céu aberto e entre palmeiras, vivi um dos momentos mais preciosos da minha jornada: ao lado do meu mestre, Sávio Soares de Sousa.
Sávio não era apenas um amigo. Era uma estrela-guia, um clarão sereno que iluminava caminhos com palavras, ideias e silêncios cheios de sentido. Falávamos de Literatura, Educação, Cultura — e, claro, de Cinema. Ah, a Sétima Arte! Para ele, não era apenas arte, era alquimia. Sabia tudo: os nomes, os rostos, os enquadramentos, os silêncios que falam mais que os diálogos. Era um rei nesse reino de celuloide e memória. E eu, ao seu lado, aprendia. Aprendia com os olhos, com os ouvidos, com o coração.
Ele tinha o dom raro de transformar uma simples conversa em aula magna. Bastava alguém mencionar um filme, e logo ele abria um leque de referências: diretores, épocas, estilos, bastidores. Falava de Bergman como quem fala de um velho amigo, de Fellini como quem descreve um sonho recorrente, de Glauber Rocha como quem evoca um profeta. E quando se tratava do Cinema Brasileiro, sua voz ganhava ainda mais vigor. Ele não apenas conhecia os filmes — ele os vivia, como se cada cena fosse uma extensão de sua própria memória.
Mas Sávio não se limitava ao cinema. Ele transitava com a mesma naturalidade pela poesia, pela filosofia, pela história da educação. Era confrade em diversas academias de Letras, e mesmo ali, entre tantos mestres, sua presença era singular. Não havia arrogância em seu saber. Havia generosidade. Ele oferecia conhecimento como quem oferece sombra num dia quente, ou água fresca a quem atravessa o deserto. Ouvia com atenção, respondia com calma, e sempre deixava no ar uma pergunta que nos fazia pensar além do óbvio.
Recordo-me de como ele falava da importância da cultura como alimento da alma. Para ele, a educação não era apenas transmissão de conteúdos, mas formação de espírito. “Educar é libertar”, dizia, e essa frase ecoa em mim até hoje. Talvez por isso nossas conversas nunca terminassem: elas se prolongavam no silêncio, nos livros que eu buscava depois, nos filmes que reassistia com outros olhos, nas reflexões que me acompanhavam madrugada adentro.
Sávio nos deixou em 25 de maio de 2022. Sua partida foi como o apagar súbito de um projetor em plena cena decisiva. O silêncio que se seguiu foi denso, quase físico. Mas, paradoxalmente, sua ausência é também presença. Está nos livros que leio, nas ideias que cultivo, nas palavras que escolho com mais cuidado. Está nas academias de Letras onde fomos confrades, nos encontros onde sua falta é sentida como uma cadeira vazia que, de algum modo, continua ocupada.
E eu me pergunto: quem era o mestre? Quem era o discípulo? Talvez a resposta esteja no próprio ato de compartilhar. Talvez sejamos todos mestres e discípulos uns dos outros, em uma dança eterna de saberes e afetos. Sávio me ensinou isso — que aprender é também ensinar, que ouvir é também falar, que viver é também lembrar. Ele me mostrou que a verdadeira sabedoria não se impõe, se oferece. Não se guarda, se reparte. Não se encerra, se multiplica.
Naquele domingo, sob o sol de Icaraí, não havia apenas conversa. Havia legado. Havia a certeza de que a amizade também é uma forma de pedagogia, e que a saudade, quando bem vivida, é continuidade. Hoje, neste tempo de ausência, sigo seus ensinamentos como quem segue uma trilha de luz. Porque o verdadeiro mestre não é aquele que aponta o caminho, mas aquele que acende a lanterna para que o discípulo descubra o seu próprio.
E assim sigo, com gratidão e reverência, sabendo que em cada palavra que escrevo, há um pouco de Sávio. Em cada reflexão que compartilho, há um eco de sua voz. Em cada silêncio que cultivo, há a lembrança de sua presença. Para mim, ele não foi apenas um mestre ou um confrade: foi um segundo pai. E talvez seja isso o maior legado, descobrir que o mestre e o discípulo se confundem, porque o amor e o saber que nos unem são eternos.
©
Alberto Araújo
21
de outubro de 2025
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