O CONCERTO DAS ESTRELAS SILENCIOSAS
MINICONTO
O sol daquela tarde de outono em Niterói pintava o céu com tons de laranja e violeta, mas para o pequeno Tiago, de apenas sete anos, as cores vibrantes se esvaíram em um instante de gritos e areia. A brincadeira de pique-bandeira na praia, que antes era pura alegria e correria, terminou em um choque inesperado, uma queda abrupta e a escuridão impiedosa engolindo a luz dos seus olhos.
Os primeiros dias foram um turbilhão de dor física e emocional. A saudade das cores da sua pipa, do azul infinito do mar que tanto amava, do sorriso da sua mãe, era uma ferida constante. Tiago se fechou em um mundo de silêncio e lágrimas, onde a escuridão era a única constante. Seus pais, com o coração em pedaços, buscavam incessantemente uma forma de reacender a chama da vida no pequeno corpo fragilizado.
Foi Dona Helena, uma senhora doce e de mãos enrugadas que frequentava a igreja do bairro, quem trouxe uma nova melodia para a vida de Tiago. Ela era professora de Braille e, com uma paciência infinita, começou a apresentar ao menino um universo de possibilidades através de pontos em relevo. As letras dançavam sob seus dedos, formando palavras, frases e, aos poucos, abrindo as portas de um novo aprendizado.
Paralelamente ao aprendizado do Braille, Tiago descobriu um refúgio inesperado no velho piano da sala. Inicialmente, eram apenas toques hesitantes, notas soltas que ecoavam a sua tristeza. Mas, com o tempo, seus dedos ganharam firmeza e sensibilidade. Ele passava horas explorando as teclas, sentindo a vibração das cordas, deixando que a música preenchesse o vazio da sua visão perdida.
Um professor de música local, o Maestro Ricardo, percebeu o talento bruto e a paixão que emanavam dos dedos de Tiago. Ele se ofereceu para ensiná-lo, guiando-o pelos intrincados caminhos da harmonia e da melodia. Maestro Ricardo não via a cegueira de Tiago como uma limitação, mas sim como uma porta para uma percepção musical mais profunda. Ele o ensinou a ouvir as nuances, a sentir as emoções em cada acorde, a traduzir em som o que seus olhos não podiam mais ver.
Anos se passaram, e Tiago se tornou um pianista virtuoso. Seus concertos lotavam teatros em todo o Brasil. Sua música era carregada de uma emoção palpável, uma intensidade que tocava a alma de cada ouvinte. Críticos o aclamavam, não apenas pela sua técnica impecável, mas pela forma como ele parecia conversar com o piano, extraindo dele melodias que pintavam quadros na mente de quem o escutava.
Na noite de um concerto especial, realizado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a plateia estava em silêncio reverente enquanto Tiago se preparava para tocar sua peça mais ambiciosa, uma composição original que ele havia dedicado à sua jornada. As luzes se apagaram, e seus dedos deslizaram pelas teclas com uma precisão e uma paixão avassaladoras. A música que emanava do piano era ora suave como um sussurro, ora forte como um trovão, carregando consigo a dor da perda, a perseverança do aprendizado e a alegria da descoberta através do som.
Ao final da apresentação, a plateia explodiu em aplausos fervorosos. Tiago curvou-se, um sorriso sereno iluminando seu rosto. Mas o momento mais impactante ainda estava por vir.
Após os aplausos cessarem um pouco, uma voz familiar ecoou do meio da plateia: "Meu filho...". Era a voz embargada de sua mãe. Tiago ergueu a cabeça na direção da voz, um brilho diferente nos seus olhos antes opacos.
Sua mãe se aproximou do palco, guiada
por seu pai. Ela segurava algo em suas mãos. Ao chegar perto de Tiago, ela
colocou em suas mãos um pequeno objeto. Os dedos sensíveis do pianista
exploraram a superfície, reconhecendo instantaneamente o formato familiar. Era
a pequena bandeirinha de tecido desbotado, a mesma que ele segurava naquele
fatídico dia na praia.
Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto de Tiago enquanto seus dedos percorriam as dobras do tecido. Naquele momento, não havia escuridão. Através do toque, ele revivia a memória daquele dia, não com dor, mas com uma compreensão profunda. Aquele acidente, que lhe roubou a visão, paradoxalmente o havia conduzido a um universo de sons e sensações que ele jamais teria explorado de outra forma.
Com a voz embargada pela emoção, Tiago disse ao microfone: "Esta bandeirinha... ela me tirou a luz dos olhos, mas me deu a luz da música. Ela me ensinou que, mesmo na mais profunda escuridão, existem estrelas silenciosas esperando para serem ouvidas."
O silêncio que se seguiu foi mais eloquente do que qualquer aplauso. A plateia, comovida, compreendeu a profundidade daquelas palavras. Tiago não havia apenas superado a sua cegueira; ele a havia transformado em sua maior força, encontrando na ausência da visão uma sinfonia de possibilidades que ecoava em cada nota do seu piano, um concerto eterno para as estrelas que brilhavam em seu coração.
© Alberto Araújo
Junho de 2018, Inspirado, após assistir
ao filme “Música do Silêncio” baseado na vida de Andrea Bocelli. Musical.
Direção: Michael Radford | Roteiro Michael Radford. Elenco: Toby Sebastian,
Antonio Banderas, Jordi Mollà.
MENSAGEM DE ALBERTO ARAÚJO DO FOCUS
PORTAL CULTURAL PARA AQUELES QUE NAVEGAM PELO MUNDO SEM O FAROL DA VISÃO, MAS
COM A BÚSSOLA DA CORAGEM NO CORAÇÃO.
Que a ausência da luz dos olhos jamais ofusque o brilho da sua alma. Vocês são a prova viva de que os obstáculos são apenas desvios no caminho, e não barreiras intransponíveis. Cada toque que desvenda um novo mundo em Braille, cada melodia que ecoa da ponta dos seus dedos, cada passo firme em direção aos seus sonhos é um testemunho da força indomável que reside em vocês.
Lembrem-se que a visão vai além do que
os olhos podem ver. Vocês possuem uma percepção aguçada, uma sensibilidade
profunda e uma capacidade de superação que inspira e transforma. O mundo se
revela a vocês de maneiras únicas, e em cada desafio conquistado, vocês
reescrevem a definição de limite.
Não se deixem definir pela ausência,
mas sim pela presença vibrante da sua resiliência, da sua inteligência e da sua
paixão. O caminho pode parecer mais tátil, mais sonoro, mas ele é igualmente
rico e cheio de possibilidades infinitas.
Continuem a trilhar seus caminhos com
a certeza de que a verdadeira visão reside no coração e na mente. O mundo
precisa da persistência de vocês, da sabedoria que conquistaram e da luz
interior que irradia em cada vitória. Vocês são faróis de esperança, maestros
da superação e a melodia inspiradora de uma vida sem limites. Sigam em frente,
com a força que só vocês possuem. O futuro é tão vasto e promissor quanto a
imaginação dos seus corações.
© Alberto Araújo
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