segunda-feira, 9 de junho de 2025

DALTON TREVISAN - UM SÉCULO DE NARRATIVAS URBANAS E HUMANAS - HOMENAGEM DO FOCUS PORTAL CULTURAL

 

O Focus Portal Cultural registrando em suas páginas os 100 Anos de Dalton Trevisan, o "Vampiro de Curitiba" 

Em 2025, o universo literário se volta para a celebração do centenário de Dalton Trevisan, o 'Vampiro de Curitiba'. Reconhecido por sua prosa seca, cortante e muitas vezes perturbadora, Trevisan construiu uma obra que mergulha nas minúcias da existência humana, revelando paixões, angústias e a trivialidade do dia a dia. No Focus Portal Cultural, convidamos você a revisitar a genialidade desse mestre do conto, cuja escrita ainda ecoa com uma relevância surpreendente. 

O centenário de nascimento de Dalton Trevisan, o inesquecível "Vampiro de Curitiba". Nascido em 14 de junho de 1925, na capital paranaense, Trevisan dedicou sua vida a esquadrinhar as profundezas da alma humana em contos que se tornaram ícones da nossa literatura. 

Com uma reclusão quase lendária e uma dedicação visceral à escrita, Dalton Trevisan construiu uma obra singular, onde a cidade de Curitiba não era apenas cenário, mas personagem viva de suas narrativas. Seus contos, marcados por um realismo cru, direto e sem rodeios, desnudam as complexidades das relações humanas, os dramas cotidianos de personagens anônimos e as hipocrisias da vida urbana. Mestre da concisão, sua prosa é afiada como um bisturi, revelando as mazelas e as belezas tortas da existência com uma ironia peculiar e um olhar incisivo.

Neste ano emblemático, o Focus Portal Cultural convida todos a mergulharem ou revisitarem a obra de Dalton Trevisan. É uma oportunidade ímpar para se reencontrar com o "Vampiro" que, de sua solidão criativa, nos legou um espelho contundente da sociedade e da condição humana. Celebremos juntos o legado desse gigante da contística brasileira, cuja influência e originalidade ecoam até os dias de hoje. Que suas histórias continuem a nos provocar e a nos fazer ver a vida por ângulos que só um olhar tão perspicaz seria capaz de traduzir. 

Dalton Trevisan, o "Vampiro de Curitiba", foi um dos mais importantes e originais contistas da literatura brasileira. 

Nascido em Curitiba, Paraná, em 14 de junho de 1925, e falecido na mesma cidade em 9 de dezembro de 2024, sua vida e obra foram intrinsecamente ligadas à capital paranaense, que se tornou cenário e personagem central de seus escritos. 

Advogado por formação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Trevisan nunca exerceu a profissão. Sua dedicação foi integral à literatura, à qual se entregou com uma obstinação e um rigor admiráveis. Viveu uma vida reclusa e avessa à publicidade, características que contribuíram para a aura de mistério em torno de sua figura e para a construção do apelido "Vampiro de Curitiba", dado pela imprensa em referência à sua aversão a sair de casa e a se expor.

Sua estreia literária se deu em 1946, com o livro de contos "Sete Anos de Pastor", publicado em edição artesanal. No entanto, sua obra começou a ganhar reconhecimento mais amplo a partir da década de 1950, com a publicação de contos em revistas e jornais literários.

A cidade de Curitiba, com seus becos, cafés, hotéis baratos e personagens marginais, é o palco quase exclusivo de seus contos. Ele explorava as nuances da vida urbana, as relações humanas e os dramas cotidianos de gente comum.

Realismo Cru e Direto: Sua escrita é marcada por um realismo pungente, que não hesita em expor as misérias, as frustrações e as hipocrisias da sociedade. A linguagem é concisa, objetiva, quase telegráfica, despojada de floreios.

Seus protagonistas são, em sua maioria, indivíduos anônimos: prostitutas, operários, donas de casa, boêmios, casais em crise. Ele mergulhava na psicologia desses personagens, revelando suas complexidades e contradições.

Dalton Trevisan foi um mestre do conto, formato que explorou com mestria ao longo de sua carreira. Raramente se aventurou em outros gêneros. 

Apesar do tom muitas vezes sombrio, seus contos são permeados por uma fina ironia e um humor ácido, que ressaltam o absurdo e a tragicidade da condição humana. 

As relações amorosas e sexuais, em suas diversas manifestações – desejo, traição, frustração, rotina –, são temas recorrentes em sua obra, abordados de forma crua e sem moralismo. 

Principais Obras: 

Entre suas obras mais célebres, destacam-se: 

Novelas Nada Exemplares (1959)

Cemitério de Elefantes (1964)

O Vampiro de Curitiba (1965) – o título que lhe rendeu o famoso apelido.

A Polaquinha (1972)

Abjeção (1993)

234 (1994)

Pico na veia (1997)

Ah, é? (2002)

Morte na Praça (2016)

Apesar de sua reclusão, Dalton Trevisan recebeu diversos prêmios importantes ao longo de sua carreira, que atestam a relevância de sua contribuição para a literatura brasileira. Entre eles, destacam-se o Prêmio Jabuti em várias ocasiões, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (pelo conjunto da obra) em 2012, e o Prêmio Camões em 2012, um dos mais prestigiados da literatura de língua portuguesa. 

Dalton Trevisan deixou um legado literário vasto e singular, que continua a fascinar leitores e críticos pela sua profundidade, originalidade e pela capacidade de desnudar a alma humana em suas múltiplas facetas. Sua obra permanece como um testemunho poderoso da vida urbana e das complexas relações que a tecem. 

Ao longo de um século, a voz de Dalton Trevisan se firmou como uma das mais singulares da literatura brasileira. A celebração de seu centenário pelo Focus Portal Cultural é um tributo merecido a um autor que desafiou convenções e nos presenteou com um legado de contos inesquecíveis. Se você ainda não mergulhou no universo trevisaniano, este é o momento perfeito para descobrir por que o 'Vampiro de Curitiba' continua a morder a imaginação de tantos leitores. 

© Alberto Araújo




















CONTOS DE DALTON TREVISAN


Namorada

Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. 

Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque?

A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.

Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.

Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.

Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Morte.

Em guarda no portão, as mãos suadas, fumando. Ela aparece: um caramanchão florido de glicínia azul. Olhinho esquivo que fixa e foge. O sorriso (uma virgem fatal?) na pequena boca fresca.

Um dentinho ectópico no lado esquerdo, onde a palavra tiau esbarra quando sai. Ah, se ela deixar, passa o resto da vida adorando esse dentinho.

Espera outras vezes, fumando aflito, um cigarro aceso no outro. Ele mesmo um cigarro em chamas. A mocinha não quer lhe dar a mão. Como pode, uma santinha disfarçada na terra? Depois, deu.

Brava, ainda mais linda. Toda rosa, o lenço no pescoço, gatinha na janela depois do banho. A curva altaneira da testa, os cachos loiros arrepiados ao vento.

Ai, não, uma pérola na orelha. A pérola da orelha. Uma divina orelhinha esquerda, sabe o que é?

A voz meio rouca: Adivinhe o que eu tenho na mão? “Bem, pode ser tanta coisa.” Bala de mel, seu bobo. Pra você que não merece.

Já esquecido de timidez e feiura: “Sabe o que eu mais quero? É embalar você no colo.”

Pronto, ofendida, lhe negaceou o rosto.

De mal, até amanhã. Amanhã nosso herói vai cultivar uma barbicha.


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O Anjo

É um anjo, não há dúvida: apalpo, um tantinho gordo e cheiro, um pouco suado. Tem uns apóstolos-suspeitos, que inventam cada milagre! Um anjo, para falar a verdade, decaído, sujo, asa esquerda rasgada. Ao que se soube, dera um salto duplo (tentativa sacrílega de suicídio?) do terceiro vitral na igreja do Bom Jesus.

Feliz da vida, agora se diverte atirando batatinha frita na cabeça das damas da noite que às três da matina tomam sopa de cebola no Bar do Luís. Saúda pelo nome quem chega, sabe os segredos íntimos de todo mundo, cafifas, bofes e coronéis.

De repente a confusão: acusa um guarda-noturno de ter-lhe surrupiado o relógio de pulso (anjo, é sabido, odeia relógio). O guarda exige sua carteira de identidade, ele declara a condição de anjo --- epa! leva um murro no olho.

O anjo numa cuspidela muda-o em botelha de rum da Jamaica, que bebemos todos, o anjo a piscar o olhinho roxo.

Senta uma dama alegre no colo e quer por força um ósculo (linguagem de anjo, ósculo!). Ela se nega, a boca é para beijar o filhinho. O anjo a arrasta pelos cabelos para baixo da mesa onde, entre ossos de frango e espuma de cerveja, dorme por sete dias (na versão de-jornais sensacionalistas).

Invocado, o anjo estranha a costeleta do leiteiro que chega manhã cedinho. Xinga-o de quanto nome feio, o leiteiro saca uma navalha, epa! risca em cruz o nariz do anjo. Esse não pode ver sangue e cai durinho de costas.

Pronto levanta, sacode o pó da asa em frangalhos, cadê o leiteiro? Se escafedeu, longe na carrocinha a galope. Tempo de afastar a atenção geral. Pudera, um anjo baderneiro!

Estala os dedos: encarna as moscas sobre a mesa em bombons de licor, que oferece às musas dos inferninhos. E os garçons em aves do paraíso que se penduram nos globos de luz.

Nessa hora, para ver o anjo, há barricadas nas portas e feros combates na cozinha.

O fim do anjo é triste: surge do meio do nada o maestro Remo de Pérsis e, abraçados, rompem em dó de peito a protofonia do Guarani.

Fatal: antes que puxe do braço uma terceira asa de reserva... Ai, não, linchado pela multidão em fúria. Aos berros de Morte ao tarado!

Mortinho, ninguém mais duvida. É anjo de verdade, na roupinha nova de marinheiro.

Ainda não vi outro anjo.

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Roma

De Roma eu lembro da sede e dos degraus na rua. Inútil falar de qualquer monumento. Só da sede que me resseca a língua, andando nas ruas com escadas.

Soube pela primeira vez do sol em Roma ao ver as pessoas em fuga rente às fachadas brancas. Nas ruas todos seguem de cabeça baixa no lado da sombra. Atravessar uma praça é salto mortal de olho fechado na piscina ofuscante de luz.

Pela manhã ao erguer a cabeça do travesseiro você deixa a tua face molhada no lenço de Verônica.

Posso lavar o rosto com o próprio suor do rosto. Um fósforo aceso não apaga, queima até o fim.

Do vento em junho aqui não há notícia. Esses nichos nas fachadas, com a imagem de santos em santos louça, as únicas manhas negras nos paredões de luz.

Na próxima esquina eu mergulho a cabeça debaixo da fonte. Na seguinte, morrendo de sede, bebo na concha da mão a água cuspida por feias carrancas de pedra.

Os museus são corredores frescos, por onde passeio com sono e sede. Lá fora, as ruínas no meio da cidade --- da história antiga ou da última guerra?

É a estação do sol, do prato fundo de macarrão com garfo e colher, do vinho e, muito mais, da água. Ao refrigério das fontes luminosas me acolho para sentir no rosto os pingos do repuxo.

Paisagem menos de palácio, museu, estátua que das poderosas romanas. Nutrientes fatias de polenta na chapa. Nalgas fornidas, a pé ou de vespa, os longos cabelos esvoaçantes ao vento, num bando de anjos barulhentos.

Suas prendas têm mais cores que as madonas dos museus. Elas, sim, as próprias madonas vivas.

A carne, o osso --- ah, esses braços nus roubados da Vitória de Samotrácia!

Como entender a estátua se não viu a moça, vera loba romana? Ode a uma urna de água fresca do Tibre na epifania do amor.

Ó jarra de vinho generoso para matar a tua sede!














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