quinta-feira, 19 de junho de 2025

O CORPO DE DEUS E A ALMA DO POVO - A POESIA VIVA DE CORPUS CHRISTI - REFLEXÃO TEOLÓGICO-LITERÁRIA E CULTURAL

PROCISSÃO DE CORPUS CHRISTI UMA PINTURA DE ADOLPH MENZEL
Pintor e ilustrador alemão (1815-1905)

Há datas que se inscrevem não apenas no calendário, mas na alma do tempo. Corpus Christi é uma delas. Muito mais do que um rito ou uma liturgia, é a celebração de um mistério que atravessa os séculos e que se deixa tocar nas ruas, nos gestos, nos cânticos e, sobretudo, na fé do povo. Ali onde o sagrado desce ao chão colorido dos tapetes, o invisível se revela, e o pão se torna presença. 

A essência de Corpus Christi pulsa no coração da Igreja como um hino de adoração e memória. Instituído para afirmar com força e beleza a real presença de Cristo na Eucaristia, essa solenidade carrega consigo uma poética singular: a de um Deus que se faz alimento, que se reparte, que se oferece. A procissão, nesse sentido, não é apenas uma caminhada litúrgica, mas um cortejo de fé que transforma as cidades em altares a céu aberto. 

Desde a visão da freira Juliana de Mont Cornillon até o milagre de Bolsena, que moveu o Papa Urbano IV a instituir oficialmente a festa, a história de Corpus Christi é marcada por sinais e encantamento. Não se trata de uma invenção humana, mas de uma resposta espiritual à sede de transcendência. O Corpo de Cristo, portado nas ruas, envolve o povo em uma aura de silêncio e reverência, enquanto o Lauda Sion entoa a mais bela poesia teológica do Doutor Angélico, São Tomás de Aquino. 

Culturalmente, a solenidade é um mosaico de expressões artísticas e simbólicas. Os tapetes de sal, de serragem, de flores, feitos por mãos anônimas e devotas, são ícones de uma arte que nasce da fé. Cada cor, cada figura, cada traço desenhado no chão é uma oração visual, uma catequese em pigmentos. É o povo transformando a rua em capela, o chão em altar, o cotidiano em milagre. 

Literariamente, Corpus Christi é um poema processional, um salmo que se escreve com passos e cantos. Ao caminhar com o Santíssimo, a comunidade faz memória e presença, repete em seus gestos o gesto maior de Cristo na Última Ceia: “Tomai e comei... tomai e bebei... fazei isto em memória de mim.” A memória torna-se ato vivo, contemporâneo, ressoando entre gerações que, como fiéis escribas do sagrado, perpetuam a tradição.

No Brasil, especialmente nas cidades históricas, essa celebração ganha contornos de festa popular e de resistência espiritual. Em Pirenópolis, Ouro Preto, Salvador, Niterói e tantas outras, a fé do povo é o cimento que sustenta a ponte entre o céu e a terra. Corpus Christi é, assim, uma expressão de religiosidade que unifica: o altar da igreja e o da rua; o clero e o povo; o mistério e a matéria.

Celebrar Corpus Christi é deixar que o coração reconheça a presença de Deus não apenas nos altares, mas na vida. É afirmar que a Eucaristia não é apenas dogma, é caminho; não é apenas doutrina, é encontro. É permitir que o pão consagrado nos torne também consagrados no amor, na partilha, na doação.

Corpus Christi é cultura, é arte, é fé encarnada. É o Corpo de Deus pulsando no corpo do povo. É um tempo em que a cidade ajoelha e o céu se inclina. Um tempo em que os passos viram versos e as flores, oferendas. Um tempo em que o silêncio diz mais que as palavras e o mistério se deixa ver, não com os olhos da carne, mas com os olhos da alma.

E ao final da procissão, quando tudo se desfaz, o que permanece é a certeza: Ele esteve ali. Caminhou conosco. E caminha ainda.

@ Alberto Araújo 


 

CORPUS CHRISTI EM PARIS (FÊTE-DIEU) - THEODORE TURPIN DE CRISSÉ

Pintor francês (1782-1859)


Procissão em Ouro Preto - Elias Lyon
Pinto brasileiro contemporâneo

Procissão de Corpus Christi na Espanha

Procissão de Corpus Christi - Carl Emil Doepler
Pintor e ilustrador alemão (1824-1905)


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