A obra de Dalma Nascimento, "Charles Baudelaire: Um avatar da lírica moderna no trânsito da existência em transe", publicada em Niterói em 2021 pela Parthenon Centro de Arte e Cultura, com 318 páginas e diagramação de Mauro Carreiro Nolasco, emerge como uma contribuição significativa para os estudos baudelaireanos, enriquecida pelas perspicazes palavras de seu editor, o próprio Mauro Carreiro Nolasco, nas orelhas do livro.
Longe de ser apenas mais uma biografia ou análise literária, o livro de Nascimento propõe uma leitura instigante que conecta a figura de Charles Baudelaire não só como um precursor da lírica moderna, mas também como um indivíduo imerso em um estado de "transe existencial".
A originalidade da abordagem reside na lente através da qual Dalma Nascimento examina a vida e a obra de Baudelaire. Como bem aponta Mauro Carreiro Nolasco nas orelhas, a estrutura da obra é singular: inicia-se com minicapítulos confessionais em primeira pessoa, revelando o amor precoce e duradouro da autora por Baudelaire. Esse prólogo íntimo cede espaço ao cerne do estudo, composto por capítulos analíticos rigorosos, sustentados por um arcabouço teórico consistente e uma escrita impessoal que mergulha na obra, na vida e na "maldição" da diferença de Baudelaire, contextualizando seu momento histórico em uma Paris em ebulição.
A noção de "trânsito da existência em transe" sugere, como explorado anteriormente, um estado de constante deslocamento, tanto físico quanto metafórico, característico da modernidade e profundamente sentido por Baudelaire. Dalma Nascimento, com a precisão detalhada por Mauro Nolasco, discute questões cruciais para a compreensão do poeta, como sua visão do sagrado, a natureza do Belo, as dicotomias existenciais que o atormentavam, a perda da Aura benjaminiana, a alegoria como modo de expressão, a controversa "prostituição literária", a onipresente melancolia e suas significativas afinidades eletivas com figuras como Guys, Poe e De Quincey.
A autora não se esquiva de analisar os complexos desacertos com a mãe e a intrincada dinâmica de sua bipolaridade amorosa, bem como os traços de misoginia presentes em sua obra, complementando a análise com a interpretação de poemas específicos.
A figura do flâneur, central na compreensão do poeta, é elevada a um patamar de observador privilegiado e, ao mesmo tempo, de partícipe angustiado desse "transe". As ruas de Paris, palco de intensa transformação, tornam-se o locus dessa experiência liminar, onde a beleza e a sordidez, o sublime e o grotesco, coexistem e se interpenetram. A análise da obra poética de Baudelaire, à luz dessa perspectiva, ganha novas nuances, enriquecida pela contextualização histórica e biográfica que Nascimento oferece.
O apêndice da obra, como destaca Mauro Nolasco, representa um retorno à narrativa em primeira pessoa, tecendo uma surpreendente tapeçaria que entrelaça realidade e fantasia. Temas, personagens, amigos, familiares, alegorias e amores revisitados na parte teórica ressuscitam em um encontro onírico de Dalma Nascimento com Baudelaire em Paris, durante sua viagem para celebrar seus 80 anos em 2015, marcada pelo atentado ao Charlie Hebdo. A notícia, trazida por um lixeiro saído dos versos do poeta, funde o século XIX com o presente em uma atmosfera surreal.
O "encontro marcado" com Baudelaire, a celebração do aniversário em meio à comitiva fantasmagórica e o bilhete enigmático para um novo encontro no Pays de Cocagne ou em uma Paris festiva conferem à obra uma dimensão poética e insólita, como bem sublinha o editor. Essa narrativa final em primeira pessoa, precedida pela análise teórica rigorosa, demonstra a profunda imersão da autora no universo baudelaireano, transformando o estudo acadêmico em uma experiência quase pessoal.
Conforme a estrutura delineada, a primeira parte do livro se inicia com o ensaio fundamental: "Charles-Pierre Baudelaire e a maldição da diferença". Este ensaio inaugural estabelece o tom da obra, explorando a singularidade de Baudelaire e sua percepção de estar à margem da sociedade de seu tempo, uma "maldição" que, paradoxalmente, se revela como fonte de sua genialidade e de sua visão crítica da modernidade.
A segunda parte, intitulada "Algumas questões baudelairianas", aprofunda temas cruciais para a compreensão do universo do poeta. É nesta seção que Nascimento, como detalhado anteriormente, provavelmente se debruça sobre o sagrado, o Belo, as dicotomias existenciais que permeiam sua obra, a perda da Aura na modernidade, o uso da alegoria como ferramenta expressiva, a complexa questão da "prostituição literária", a melancolia spleenética e suas afinidades eletivas com figuras como Guys, Poe e De Quincey. A análise dos desacertos com a mãe e da bipolaridade amorosa, bem como as nuances de sua misoginia, encontram espaço nesta seção temática.
A terceira parte, "Baudelaire no trânsito da existência em transe", representa o núcleo da tese central de Nascimento. Aqui, a autora desenvolve plenamente sua perspectiva inovadora, conectando a experiência de Baudelaire com o estado de constante deslocamento e estranhamento característico da modernidade. A figura do flâneur e a atmosfera mutante da Paris do século XIX são, sem dúvida, exploradas em profundidade nesta seção, demonstrando como o poeta não apenas observou, mas vivenciou intensamente esse "trânsito" existencial.
A quarta parte oferece uma análise mais detida de "alguns outros poemas de variados temas", complementando a interpretação de obras específicas mencionada nas orelhas. Esta seção permite ao leitor aprofundar sua compreensão da diversidade temática e estilística da poesia de Baudelaire, à luz da perspectiva teórica desenvolvida nas partes anteriores.
Finalmente, o apêndice da obra enriquece a experiência do leitor ao apresentar "várias imagens de Baudelaire". Esta adição visual não apenas humaniza a figura do poeta, mas também oferece um contexto visual para a análise de sua vida e obra, permitindo uma conexão mais íntima com o homem por trás dos versos.
A estrutura da obra de Dalma Nascimento, portanto, demonstra um cuidado metodológico em conduzir o leitor desde a apresentação da tese central até a exploração de temas específicos, a análise textual aprofundada e, finalmente, um encontro visual com a imagem do poeta. Essa organização multifacetada reforça o potencial da obra como uma contribuição significativa para os estudos baudelaireanos, oferecendo uma imersão completa no complexo e fascinante universo de Charles Baudelaire.
"Charles Baudelaire: Um avatar da lírica moderna no trânsito da existência em transe" de Dalma Nascimento, com a chancela de Mauro Carreiro Nolasco, se configura como um estudo essencial e multifacetado. A obra não apenas ilumina a complexa relação entre Baudelaire, sua obra e o turbulento cenário do século XIX, mas também oferece uma leitura original e envolvente, marcada pela paixão da autora e pela solidez de sua análise teórica, culminando em um apêndice que desafia as fronteiras entre a erudição e a imaginação. É um convite irrecusável a mergulhar na alma de um poeta que, nas palavras de Dalma Nascimento, personifica a própria experiência da modernidade em seu "trânsito da existência em transe".
CHARLES BAUDELAIRE: UMA BIOGRAFIA ATRAVÉS DAS SOMBRAS DA MODERNIDADE
Charles Pierre Baudelaire nasceu em
Paris, em 9 de abril de 1821, marcando o início de uma vida que se entrelaçaria
de forma indelével com a emergente modernidade e a própria essência da poesia
lírica. Sua infância foi precocemente sombreada pela perda do pai em 1827, um
evento que ressoaria profundamente em sua sensibilidade. O casamento de sua
mãe, Caroline Archimbault-Dufays, com o General Jacques Aupick no ano seguinte
introduziu na vida do jovem Charles uma figura paterna austera e distante, com
quem ele jamais estabeleceu um vínculo afetivo genuíno, gerando um conflito
familiar latente que o acompanharia por toda a vida.
Desde a juventude, Baudelaire manifestou uma natureza indomável e uma forte aversão aos valores burgueses de sua época. Sua rebeldia o levou à expulsão do prestigioso Lycée Louis-le-Grand, um episódio que prenunciava seu caminho marginal e sua busca por experiências que transcendessem a conformidade social. Mergulhou na vida boêmia parisiense, frequentando os círculos artísticos e literários e experimentando substâncias como o haxixe e o ópio, em uma busca por novas sensações estéticas e talvez por um escape das angústias existenciais que já o assombravam. Essa fase de experimentação sensorial e intelectual foi fundamental na forja de sua visão de mundo singular e de sua estética inovadora.
Na tentativa de afastá-lo de seus hábitos considerados dissolutos, sua família o enviou para uma viagem à Índia em 1841. Contudo, a experiência se revelou um fracasso. Baudelaire detestou a jornada e retornou à França antes do previsto, decidido a viver de sua arte e a explorar as profundezas de sua própria alma. A herança paterna, embora modesta, permitiu-lhe manter uma independência financeira relativa e dedicar-se à literatura com fervor.
Sua estreia no cenário literário ocorreu como crítico de arte, revelando um olhar arguto e uma capacidade de análise perspicaz das novas correntes artísticas. No entanto, foi em 1857, com a publicação de "Les Fleurs du mal" ("As Flores do Mal"), que Baudelaire incendiou o mundo literário e a moralidade burguesa. A obra, um mergulho nas profundezas do vício, da morte, da sensualidade ambígua e do spleen moderno, foi recebida com escândalo e indignação. Acusado de obscenidade e ofensa à moral pública, Baudelaire e seus editores foram levados a julgamento, resultando na censura de alguns poemas. Paradoxalmente, a controvérsia catapultou a obra para a notoriedade, consagrando-a como um marco inaugural da poesia moderna.
A vida de Baudelaire foi marcada por uma constante luta contra as dificuldades financeiras, exacerbadas por seu estilo de vida boêmio e pela lenta aceitação de sua obra. A instabilidade econômica se somou a uma saúde precária que se deteriorou progressivamente ao longo dos anos. Seus relacionamentos amorosos foram igualmente complexos e turbulentos, caracterizados por uma intensidade passional e uma instabilidade emocional. Destacam-se suas ligações com Jeanne Duval, uma dançarina mestiça que se tornou musa inspiradora de muitos de seus versos, e com Apollonie Sabatier, uma figura da sociedade parisiense por quem nutriu um amor platônico e idealizado.
Os últimos anos de sua vida foram particularmente dolorosos. Em 1866, durante uma viagem à Bélgica, Baudelaire sofreu um derrame que o deixou parcialmente paralisado e com severas dificuldades de comunicação. Retornou a Paris em um estado de saúde debilitado e faleceu em 31 de agosto de 1867, aos 46 anos, deixando um legado literário de profundidade e influência inestimáveis.
Apesar de uma existência relativamente breve e permeada por sofrimento, incompreensão e marginalização, Charles Baudelaire revolucionou a poesia, abrindo caminho para a exploração das complexidades da psique humana e das ambiguidades da modernidade urbana. Sua obra ressoou em gerações de poetas e artistas, consolidando-o como uma figura central na transição do romantismo para o simbolismo e como um dos pilares da literatura moderna. Sua capacidade de extrair beleza do grotesco, de explorar as sombras da alma e de capturar a essência fugaz do mundo moderno o consagrou como um visionário da palavra e um eterno habitante das fronteiras entre a luz e a escuridão.
© Alberto Araújo
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