sexta-feira, 25 de abril de 2025

UM ENCONTRO ALÉM DO TEMPO: DALMA NASCIMENTO E A NAVEGAÇÃO AFETIVA COM O VELHO AMIGO CAMÕES

 

Em "Meu encontro com o velho amigo Camões", Dalma Nascimento tece uma narrativa que ultrapassa a mera análise literária, convidando o leitor a testemunhar um diálogo íntimo e perene com um dos pilares da língua portuguesa. Desde o limiar da obra, a autora estabelece uma relação pessoal e carinhosa com Luís Vaz de Camões, desvendando como a sua poesia e épica ressoam em distintas camadas de sua experiência de vida, transformando a leitura em um encontro afetivo que desafia as barreiras temporais e históricas. 

A frase inaugural, "Navegando pelos mares da lusofonia com meu velho amigo português", ecoa como um convite a uma jornada que ultrapassa a simples revisitação de um clássico. Trata-se de uma imersão profunda no vasto universo linguístico e cultural que Camões emblematicamente representa, guiada por uma voz que o apresenta não como uma estátua literária distante, mas como um companheiro próximo e familiar. Essa humanização da figura canônica estabelece um tom singular para a análise, onde a erudição se encontra permeada pela sensibilidade da experiência pessoal. 

A construção desse laço afetivo com Camões se revela progressivamente através da evocação de memórias da infância, nas quais o poeta já marcava presença de forma sutil, mediado pelas figuras maternas e paternas. A mãe, educadora da língua pátria, apresentava a riqueza da épica e da lírica camoniana em suas aulas preparatórias, desvelando a musicalidade dos versos e a atemporalidade dos temas com uma didática que contrastava com a abordagem puramente gramatical vivenciada por outros. No âmbito familiar, a autoridade paterna ecoava nos versos de Os Lusíadas, utilizados para pacificar ânimos e introduzir, mesmo que inconscientemente, a força e a sabedoria da poesia camoniana no cotidiano. Essas reminiscências delineiam um encontro inaugural indireto, sedimentando um apreço que antecede a análise formal.

A profundidade da relação de Dalma Nascimento com Camões se intensifica no ambiente acadêmico, sob a orientação do insigne Professor Leodegário Amarante de Azevedo Filho. A inclusão de um texto do professor na obra não se limita a uma homenagem póstuma, mas serve como um farol teórico que ilumina a compreensão da grandiosidade da obra camoniana. A estrutura do livro, ao transitar da crônica pessoal para a erudição do mestre e, posteriormente, para a análise da influência de Camões na literatura brasileira, demonstra uma articulação cuidadosa entre a experiência individual e o conhecimento especializado.

A análise da orelha do livro, com os precisos apontamentos do Professor Leodegário sobre a natureza multifacetada de Os Lusíadas, ressalta a complexidade da obra que Dalma Nascimento se propõe a explorar. A interpenetração da história, da mitologia e da invenção poética, a coexistência do maravilhoso pagão e cristão, e a impecável estrutura formal da epopeia oferecem um vasto campo para a investigação da autora, que busca os ecos da "dicção camoniana" em autores posteriores, atestando a perenidade de seu legado.

Em "Meu encontro com o velho amigo Camões", Dalma Nascimento, ao longo de suas 200 páginas publicadas pela H. P. Comunicação e Associados (2024), com a esmerada diagramação de Paulo França no Rio de Janeiro, nos oferece mais do que um ensaio crítico. Compartilha uma jornada pessoal e intelectual, um diálogo afetuoso com um gigante da literatura, convidando-nos a redescobrir a atualidade e a beleza da voz de Camões, aquele que soube cantar a pequenez humana com a grandiosidade da poesia épica.

SONETO DE CAMÕES 

Amor é fogo que arde sem se ver é um soneto de Luís Vaz de Camões (1524-1580). O famoso poema foi publicado na segunda edição da obra Rimas, lançada em 1598.

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

 

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

 

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor 

O clássico soneto de Camões. Uma joia da nossa língua que explora as profundezas paradoxais do amor. 

PRIMEIRO QUARTETO: A NATUREZA CONTRADITÓRIA DO AMOR

"Amor é fogo que arde sem se ver,": Que imagem poderosa! O fogo, elemento de intensa energia e transformação, aqui é invisível. Sugere a força avassaladora do amor, sentida profundamente, mas que muitas vezes não se manifesta de forma óbvia ou compreensível para os outros. É um sentimento íntimo e, por vezes, secreto.

"é ferida que dói, e não se sente;": Outro paradoxo intrigante. A dor da paixão é real e pungente, mas, paradoxalmente, pode ser desejada ou até mesmo não reconhecida conscientemente em sua totalidade pelo apaixonado. Há uma certa masoquismo inerente ao sentimento amoroso. 

"é um contentamento descontente,": Como pode haver contentamento na insatisfação? Camões aponta para a natureza inquieta do amor. Mesmo nos momentos de felicidade, paira uma sombra de desejo por mais, de insegurança ou de uma melancolia inerente à própria intensidade do sentimento.

"é dor que desatina sem doer.": A dor aqui é de ordem emocional, capaz de desorientar e perturbar a razão ("desatina"), mas que não se manifesta necessariamente como um sofrimento físico. É uma angústia da alma, uma perturbação interna. 

SEGUNDO QUARTETO: AS ATITUDES PARADOXAIS DO AMANTE 

"É um não querer mais que bem querer;": O amante se debate entre a razão e a emoção. Há uma parte que reconhece o sofrimento e talvez deseje se libertar, mas a força do "bem querer" é mais poderosa, mantendo-o preso à paixão.

"é um andar solitário entre a gente;": Mesmo cercado por pessoas, o indivíduo apaixonado vive em um mundo à parte, absorto em seus sentimentos. Há uma sensação de isolamento, pois a intensidade da experiência amorosa o distancia, de certa forma, do convívio comum.

"é nunca contentar-se de contente;": Retoma a ideia da insatisfação constante. A felicidade alcançada no amor nunca é plena ou duradoura o suficiente, sempre existindo uma ânsia por mais, um desejo de perpetuar ou intensificar o sentimento. 

"é um cuidar que ganha em se perder.": O ato de amar implica uma entrega, um abandono de si mesmo em favor do outro. Paradoxalmente, nessa perda de individualidade, o amante encontra uma nova forma de ganho, seja emocional, espiritual ou existencial.

TERCETOS: A INTERROGAÇÃO FINAL SOBRE A NATUREZA DO AMOR 

"É querer estar preso por vontade;": Aqui se explicita a escolha do amante de permanecer na "prisão" do amor. Não é uma coerção externa, mas uma decisão interna, mesmo que essa prisão traga sofrimento. Há uma aceitação voluntária do jugo amoroso. 

"é servir a quem vence, o vencedor;": O amante se coloca em posição de submissão diante da pessoa amada, que o "vence" com seu afeto ou sua indiferença. Essa servidão é paradoxal, pois o "vencedor" muitas vezes é aquele que causa o sofrimento. 

"é ter com quem nos mata, lealdade.": A intensidade do amor pode levar a situações de grande sofrimento, como a rejeição ou a traição. No entanto, mesmo diante dessa "morte" emocional, o amante muitas vezes mantém uma inexplicável lealdade ao objeto de seu amor.

"Mas como causar pode seu favor": O tom muda para uma indagação direta. Diante de tantas contradições e sofrimentos inerentes ao amor, como ele pode, afinal, gerar "favor", ou seja, benefícios, alegria e bem-estar nos corações humanos?

"nos corações humanos amizade,": A pergunta se torna ainda mais específica, questionando como um sentimento tão paradoxal pode levar à "amizade", entendida aqui como um sentimento positivo e de reciprocidade. 

"se tão contrário a si é o mesmo Amor?": O soneto culmina nessa interrogação retórica, que resume a essência do poema: a natureza intrinsecamente contraditória do amor. Camões não oferece uma resposta fácil, mas nos convida a contemplar a complexidade desse sentimento universal.

O soneto de Camões é uma profunda meditação sobre a natureza paradoxal do amor. Através de uma série de antíteses e paradoxos, o poeta explora as contradições que habitam o coração apaixonado: dor que não se sente, contentamento descontente, liberdade na prisão, ganho na perda.

A genialidade de Camões reside em não tentar resolver essas contradições, mas em expô-las de forma eloquente, capturando a complexidade e a irracionalidade do sentimento amoroso. O soneto não oferece respostas fáceis, mas nos convida a reconhecer a ambiguidade e a intensidade que caracterizam essa experiência humana fundamental. A pergunta final ecoa através dos séculos, convidando cada leitor a refletir sobre a natureza misteriosa e, por vezes, dolorosa do amor.

LUÍS VAZ DE CAMÕES: UMA VIDA ENTRE A GLÓRIA LITERÁRIA E AS VICISSITUDES DO MUNDO 

Luís Vaz de Camões, personagem central do Renascimento em Portugal e um dos maiores expoentes da língua portuguesa, nasceu provavelmente em Lisboa, por volta de 1524 ou 1525. Oriundo de uma família com raízes na nobreza, mas de escassos recursos financeiros, Camões trilhou um percurso de vida marcado tanto pela genialidade poética quanto pelas adversidades do destino.

Sua formação intelectual, acredita-se, foi sólida, possivelmente com estudos em Coimbra, onde seu talento precoce para a poesia e seu fascínio pela cultura clássica floresceram. A juventude de Camões foi marcada por um espírito inquieto e aventureiro. Serviu como militar em Ceuta, no norte da África, onde perdeu um olho em combate, uma cicatriz física que se somaria às marcas de uma vida intensa. De volta a Lisboa, envolveu-se em episódios controversos, chegando a conhecer os cárceres da cidade. 

Em 1553, Camões embarcou rumo à Índia, uma jornada que se estenderia por cerca de dezessete anos e que se revelaria crucial para a gestação de sua obra-prima. No Oriente, vivenciou naufrágios, dificuldades financeiras e a rica tapeçaria cultural do mundo ultramarino português. Há relatos que sugerem que parte de Os Lusíadas foi concebida nas terras de Macau.

O retorno a Portugal, em 1570, trouxe consigo o manuscrito da epopeia que celebraria os feitos marítimos lusitanos e a história gloriosa da nação. Os Lusíadas viram a luz em 1572, dedicados ao jovem rei D. Sebastião, e consagraram Camões como um poeta de estatura ímpar, elevando a língua portuguesa a um patamar de excelência literária.

Contudo, a glória literária não se traduziu em prosperidade material. Os últimos anos de vida de Camões foram permeados pela pobreza e pela obscuridade. O poeta que cantou os heróis do mar em versos imortais faleceu em Lisboa, por volta de 1580, ironicamente em um período de declínio do império português.

Para além da monumental epopeia, Camões legou uma vasta e rica obra lírica, explorando com maestria sonetos, odes, éclogas e outras formas poéticas. Seus versos abordam a complexidade do amor, a beleza da natureza, a melancolia da condição humana e o fervor patriótico, revelando um profundo domínio da linguagem e uma sensibilidade artística ímpar.

 

© Alberto Araújo 











Nenhum comentário:

Postar um comentário