quarta-feira, 4 de junho de 2025

O SILÊNCIO DAS PEDRAS: A JORNADA FINAL DA TECELÃ DO TEMPO PROSA DE ALBERTO ARAÚJO – HOMENAGEM A NIÈDE GUIDON (IN MEMORIAM)

04 de junho de 2025. Há vozes que se calam, mas seu eco se eterniza. Na poeira dourada do tempo, onde os ventos da história sussurram segredos antigos, Niède Guidon ergueu-se como a guardiã das memórias mais remotas. Com mãos que pareciam sentir o calor de eras esquecidas, ela recolheu os últimos fragmentos do homem pré-histórico no Brasil. Cada lasca de pedra, cada traço de tinta nas grutas, cada vestígio fossilizado era um verso em um poema milenar, e Niède, a poeta incansável, soube ler e reescrever essa epopeia em um mundo que teimava em não ouvir. 

Ela não apenas escavou; ela ouviu. Ouviu o clamor de vidas que se foram há dezenas de milhares de anos, de culturas que floresceram sob um sol primordial. Sua insistência, muitas vezes solitária, em afirmar a presença humana no continente americano em tempos imemoriais, não foi teimosia, mas a convicção de quem via o invisível, de quem sentia o pulso de um passado que a muitos parecia impossível. Com ela, a Serra da Capivara deixou de ser apenas um lugar geográfico para se tornar um santuário de revelações, um espelho que nos devolve a imagem de nossos ancestrais mais distantes. 

E agora, que a tecelã do tempo partiu, o chão do Piauí parece chorar a ausência de seus passos. Mas sua partida não é um fim, e sim a continuidade de um ciclo cósmico. Niède não se vai; ela se dilui na eternidade, fundindo-se com as próprias pedras que desvendou, com a areia que pacientemente peneirou, com o ar que respirou nas grutas sagradas. Sua mente, antes debruçada sobre enigmas terrenos, agora se lança aos mistérios do universo, carregando consigo a sabedoria de milênios. 

O legado de Niède Guidon é mais que ciência; é poesia, é a celebração da persistência, da curiosidade e do amor por uma terra que ela ensinou a olhar com outros olhos. Que sua jornada para a eternidade seja tão grandiosa quanto a história que ela nos ajudou a reescrever. O silêncio que agora a envolve é apenas o véu para uma nova forma de existência, onde a arqueóloga se torna, ela mesma, parte inseparável da história que tanto amou. 

© Alberto Araújo 



 

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