O sol declinava sobre as águas da Guanabara, tingindo o céu de um laranja febril que parecia inflamar as folhas empoeiradas da goiabeira no quintal. Dona Augusta, sentada na cadeira de balanço de vime, observava o crepúsculo com a mesma impassibilidade com que encarava os anos escorrendo entre os dedos. Seus olhos, outrora um castanho vivo, agora carregavam a opacidade de pedras de rio polidas pelo tempo e pela resignação.
A goiabeira, testemunha muda de tantas manhãs e tardes, parecia compartilhar do seu silêncio. Seus galhos retorcidos, como braços cansados, ostentavam algumas poucas goiabas amareladas, frutos tardios de uma estação que já se esvaía. Dona Augusta nunca fora de muitos cuidados com a árvore. Deixava-a crescer ao sabor do vento e da chuva, colhendo os frutos apenas quando estes se ofereciam, maduros e perfumados, quase implorando para serem degustados.
Hoje, porém, seu olhar fixou-se em uma goiaba em particular. Não era a maior, nem a mais vistosa. Pelo contrário, escondia-se entre as folhas mais densas, quase camuflada. Mas havia algo nela, uma imperfeição sutil, uma pequena mancha escura em sua casca amarelada, que atraía a atenção de Dona Augusta como um imã.
Levantou-se com lentidão, as juntas protestando com
um estalo seco. Caminhou até a árvore, o chinelo arrastando-se pela cerâmica
fria do quintal. Aproximou-se da goiaba, o rosto enrugado quase tocando a sua
superfície lisa. A mancha escura não era um defeito, percebeu. Era um pequeno
orifício, quase invisível a distância, como a marca de uma agulha finíssima.
Um arrepio percorreu a espinha de Dona Augusta, um calafrio que não vinha do vento fraco que começava a soprar. Era uma sensação visceral, um reconhecimento mudo de algo que jazia oculto, silenciado sob a superfície aparentemente intacta.
Ela estendeu a mão trêmula e colheu a goiaba. Ao senti-la na palma, percebeu o seu peso estranho, desproporcional ao seu tamanho. Levou-a ao nariz, mas não sentiu o aroma doce e característico da fruta madura. Em vez disso, um cheiro sutil, quase metálico, emanava do pequeno orifício.
Dona Augusta apertou a goiaba entre os dedos. Uma pressão leve foi suficiente para que a casca cedesse, revelando um interior escurecido, quase pútrido. Não havia polpa suculenta, apenas uma massa disforme e escura, como um segredo há muito guardado e finalmente revelado.
Naquele instante, sob o céu em chamas e o olhar mudo da goiabeira, Dona Augusta sentiu um nó se formar em sua garganta. Não era nojo, nem repulsa. Era um reconhecimento profundo, uma identificação silenciosa com aquela goiaba. Ela também carregava em si marcas invisíveis, pequenos orifícios deixados por golpes silenciosos, por palavras não ditas, por sonhos murchos. Por dentro, talvez, houvesse também uma escuridão crescente, um grito silenciado que nunca encontrara eco.
Olhou para a goiaba em sua mão, a metáfora crua e dolorosa de sua própria existência. E pela primeira vez em muitos anos, Dona Augusta sentiu uma lágrima quente escorrer por sua face enrugada, molhando a terra seca do quintal. Não era uma lágrima de tristeza apenas, mas também de uma súbita e lancinante compreensão. A goiabeira, com seu fruto corrompido, havia finalmente lhe oferecido um espelho. E no reflexo sombrio, Dona Augusta reconheceu a urgência silenciosa de seu próprio grito abafado.
© Alberto Araújo
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