sexta-feira, 7 de novembro de 2025

LIMA BARRETO - O CRONISTA DA ALMA BRASILEIRA

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, quando o Império ainda sustentava as amarras da escravidão e a abolição era apenas um rumor distante. Filho de João Henriques, um tipógrafo ligado à imprensa progressista, e de Amália Augusta, professora dedicada, herdou dos pais o amor pelas letras e a consciência de que o saber podia ser uma forma de libertação. Sete anos depois de seu nascimento, a Lei Áurea seria assinada, e o Brasil aboliria oficialmente a escravidão. Mas Lima Barreto cresceu e amadureceu num país que, mesmo livre no papel, ainda estava moral e espiritualmente acorrentado. 

Desde cedo, enfrentou o peso duplo da pobreza e do preconceito racial. O menino negro, de olhar curioso e inteligência precoce, aprendeu a observar o mundo de fora, do lado dos que raramente são ouvidos. Essa posição marginal se tornaria, com o tempo, o ponto de vista privilegiado de sua literatura. Barreto escreveu não a partir dos salões, mas das ruas; não dos gabinetes, mas das esquinas. Sua pena era uma extensão da sua indignação e da sua ternura. 

Em sua juventude, estudou engenharia na Escola Politécnica, mas o destino o conduziu a outro tipo de construção, a das palavras. Quando ingressou no serviço público, já levava dentro de si uma inconformidade que o tornaria, mais tarde, uma das vozes mais corajosas da literatura brasileira. Trabalhando como jornalista, Lima Barreto adotou uma linguagem direta, viva e próxima do povo. Escrevia como quem conversa, sem ornamentos, sem máscaras, sem medo. Essa simplicidade, vista com desconfiança por seus contemporâneos, seria celebrada anos depois pelos modernistas como sinal de autenticidade e ruptura. 

O Rio de Janeiro do início do século XX,  dividido entre o brilho da modernização e a miséria das periferias, foi o cenário em que Lima Barreto fincou sua pena. Enquanto a elite sonhava com a Paris tropical, ele caminhava pelos subúrbios, observando o drama silencioso dos que não tinham voz. Era nesses bairros pobres, entre carroças, cortiços e bondes barulhentos, que ele encontrava a verdadeira alma do país. 

Em suas crônicas e romances, o Brasil aparecia sem retoques: racista, burocrático, hipócrita, mas também cheio de uma humanidade resistente. Barreto não buscava idealizar, e sim desvelar. Seu olhar era o de quem amava o povo, mas desprezava as ilusões da pátria. Não por acaso, uma de suas frases mais conhecidas, escrita em Marginália (1911), resume sua descrença nas instituições e na passividade nacional: “O Brasil não tem povo; tem público.” 

Nessa ironia amarga, Lima Barreto apontava o espetáculo social em que a cidadania se confundia com plateia. 

Entre suas obras, Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) permanece como o retrato mais fiel de sua visão crítica do país. O protagonista, funcionário público exemplar e patriota convicto, acredita na pureza dos ideais nacionais e dedica sua vida ao engrandecimento da pátria. Mas o sonho de Policarpo — como o do próprio Lima, colide com a realidade de um Brasil cínico, atrasado e injusto. O nacionalismo que deveria unir, oprime; o patriotismo que deveria salvar, destrói.

O fim trágico de Quaresma é também o presságio do desfecho de Lima Barreto: um homem esmagado pela indiferença de sua época. O autor usa o riso e a sátira como instrumentos de denúncia, transformando o grotesco em espelho. Ao escrever que “as classes conservadoras querem conservar a sua gordura e o seu sossego, e não o país”, ele não apenas descrevia uma elite, mas desnudava uma mentalidade que ainda persiste, o egoísmo disfarçado de patriotismo. 

Em Clara dos Anjos, publicado postumamente em 1948, Lima Barreto volta seus olhos para outro tipo de tragédia: a da mulher negra em uma sociedade que lhe nega o direito de existir plenamente. Clara, ingênua e sonhadora, é vítima de um mundo que a julga pela cor e pela origem. O romance, iniciado em 1904 e trabalhado até 1922, reflete o amadurecimento de um autor que transformou sua própria dor em instrumento de crítica. 

Através de Clara, Barreto expõe a brutalidade cotidiana do racismo e a ausência de perspectivas para os que nascem à margem. Não há melodrama em suas páginas, mas um realismo seco, feito de pequenas humilhações e silêncios. Com ela, o escritor amplia sua denúncia: não se trata apenas de injustiça social, mas de uma estrutura histórica de exclusão. 

O jornalista e o romancista se confundem em Lima Barreto. Sua vida foi uma sequência de enfrentamentos: contra o preconceito, contra o esquecimento, contra a própria solidão. Internado duas vezes no Hospício Nacional, vítima do alcoolismo e das pressões da miséria, ele transformou a loucura em matéria literária.

Em O Cemitério dos Vivos, romance inacabado escrito entre 1919 e 1922, Barreto faz de sua internação uma alegoria da sociedade. Ali, entre os muros do hospício, ele vê o reflexo de um país inteiro, onde a razão e a sensatez parecem enclausuradas. 

“Julgaram-me louco. Mas a loucura é ver o mundo como ele é e não querer consertá-lo.”

Essa confissão revela mais do que dor, traz a lucidez de quem compreende a impossibilidade de mudar sozinho um sistema doente. Lima Barreto não enlouqueceu por delírio, mas por lucidez. Sua sanidade o feriu mais do que a doença. 

Em vida, foi desprezado pelas elites literárias. Tentou entrar na Academia Brasileira de Letras, mas seu nome foi recusado. O escritor negro, de linguagem direta e coração insubmisso, não cabia na etiqueta dos salões. Morreu em 1922, aos 41 anos, praticamente esquecido, enquanto a Semana de Arte Moderna acontecia em São Paulo. Ironia do destino: os modernistas, que o aclamariam como precursor, celebravam a liberdade estética que ele já havia vivido, solitário, nas páginas dos jornais e dos livros. 

A morte, contudo, não o silenciou. Com o tempo, Lima Barreto foi se tornando um símbolo, não apenas da literatura social, mas da resistência intelectual e moral. Sua obra atravessou o século como um espelho incômodo, refletindo as mesmas feridas que insistimos em não curar. 

Hoje, ele é lido não só como romancista, mas como cronista do Brasil profundo, esse país mestiço, desigual e contraditório. Em tempos de discursos fáceis, suas palavras permanecem afiadas, revelando o quanto ainda estamos presos aos mesmos fantasmas. 

Lima Barreto nos ensinou que a literatura pode ser um ato de coragem. Que escrever é mais do que criar mundos imaginários — é resistir à mentira. Sua pena, guiada pela empatia e pela raiva justa, abriu caminhos para autores que, décadas depois, também ousariam falar do povo sem paternalismo, e da dor sem medo. 

Seu legado é de inquietação e esperança. Porque, apesar de toda a amargura, havia em Lima Barreto uma fé silenciosa na humanidade. Ele acreditava que o Brasil poderia se reinventar, não a partir dos palácios, mas das calçadas, das escolas públicas, das pequenas dignidades cotidianas.

A obra de Lima Barreto é, em última instância, um convite à lucidez. Um apelo para que olhemos o país sem filtros e sem retórica. Porque, enquanto houver desigualdade, racismo e indiferença, suas palavras continuarão a nos interpelar, como uma voz antiga que ainda ecoa: “Escrever, para mim, é um ato de desespero e de fé.” 

Lima Barreto não foi imortalizado pela Academia, mas pelo tempo. Sua imortalidade nasceu do inconformismo e o inconformismo, quando nasce do amor, é a forma mais pura de literatura. 

Para conhecer melhor a obra do autor, segue abaixo a lista de obras para download: 

Clara dos Anjos – Download

Os Bruzundangas – Download

Marginália – Download

O homem que falava Javanês – Download

O triste fim de Policarpo Quaresma – Download

Contos – Download

Crônicas – Download

A mulher de Anacleto – Download

A Nova Califórnia – Download

Carta de um defunto rico – Download

Eficiência Militar – Download

Foi buscar lã… – Download

Histórias e Sonhos… – Download

Manel Carpinteiro – Download

Milagre do Natal – Download

Numa e Ninfa – Download

O caçador doméstico – Download

O cemitério dos vivos – Download

O falso Dom Henrique V – Download

O filho de Gabriela – Download

O número da sepultura – Download

O pecado – Download

O subterrâneo do Morro do Castelo – Download

O Único Assassinato de Cazuza – Download

Quase Ela deu o “sim”, mas… – Download

Recordações do Escrivão Isaías Caminha – Download

Três Gênios de Secretária – Download

Um especialista – Download

Um que vendeu sua alma – Download

Vida Urbana – Download

O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos – Download

Diário – Download

 (Download via Domínio público)


© Alberto Araújo

Focus Portal Cultural 




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