sexta-feira, 14 de novembro de 2025

CLARA CAMARÃO - A PALAVRA COMO ARMA E LEGADO – HOMENAGEADA DE ANA MARIA TOURINHO, NA OBRA “MULHERES EXTRAORDINÁRIAS , VOL. 4.” - ENSAIO LITERÁRIO DE ALBERTO ARAÚJO


Em tempos em que a memória histórica é disputada com a mesma intensidade que os territórios outrora conquistados, o projeto “Mulheres Extraordinárias — O resgate histórico do legado pela palavra escrita” surge como um gesto de resistência e reconstrução. Organizado por Dyandreia Portugal – Presidente da Rede Sem Fronteiras e Coordenado por Ana Maria Tourinho, Vice-Presidente Cultural Mundial da Rede Sem Fronteiras, o projeto chega ao seu quarto volume com a força de quem sabe que escrever é também um ato político.

O lançamento oficial, ocorrido na Feira do Livro de Lisboa, reverberou por diversos países, e agora, em novembro, será celebrado na Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro, durante a Confraternização de Final de Ano da RSF. Mais do que um evento, trata-se de uma cerimônia de reconhecimento, onde a palavra escrita se transforma em tributo àquelas que, por séculos, foram silenciadas. 

Entre as vozes resgatadas nesta edição, destaca-se a de Clara Camarão, personagem central do capítulo assinado por Ana Maria Tourinho, da página 65 a 68. A escolha não é casual. Clara representa a interseção entre gênero, etnia e resistência, sendo uma mulher indígena que, no século XVII, ousou ocupar um espaço que lhe era negado: o campo de batalha. Sua história, embora fragmentada pelas lacunas dos registros coloniais, é reconstruída com sensibilidade e rigor pela autora, que compreende que o silêncio dos arquivos não é ausência de protagonismo, mas reflexo de uma historiografia que privilegiou os vencedores. 

Clara Filipa Camarão nasceu às margens do rio Potengi, na região hoje conhecida como Igapó, em Natal, no Rio Grande do Norte. Pertencente ao povo potiguara, ela viveu em um tempo de intensas disputas territoriais, marcado pelas invasões holandesas no Nordeste brasileiro. Casada com Filipe Camarão, líder indígena convertido ao cristianismo e aliado dos portugueses, Clara não se limitou ao papel de esposa. Ao contrário, assumiu a liderança de um pelotão feminino, composto por guerreiras indígenas que lutaram contra os invasores. Essa atuação, embora pouco documentada, é reconhecida por relatos que a situam na escolta de famílias colonas em fuga, em Porto Calvo, no ano de 1637. 

A imagem de Clara Camarão à frente de um grupo de guerreiras desafia não apenas os estereótipos de gênero, mas também as narrativas coloniais que relegaram as mulheres indígenas ao papel de coadjuvantes. Ana Maria Tourinho, ao escrever sobre Clara, não apenas resgata uma figura histórica, mas também propõe uma releitura do passado, onde as mulheres não são apenas testemunhas, mas agentes da história. O ensaio da autora é, portanto, uma arqueologia da memória, escavando entre os escombros do esquecimento os traços de uma mulher que ousou lutar.

A escassez de fontes sobre Clara Camarão é, paradoxalmente, um convite à imaginação crítica. Tourinho não se limita a repetir os poucos dados disponíveis; ela os interpreta, os contextualiza, e os insere em uma narrativa maior, que é a da resistência feminina. Ao destacar que, entre alguns povos nativos, as mulheres participavam das atividades de guerra, a autora rompe com a visão eurocêntrica que associa o feminino à passividade. Clara, nesse sentido, é símbolo de uma tradição guerreira que foi apagada, mas não extinta. 

O projeto “Mulheres Extraordinárias” é, em sua essência, um gesto de reparação. Ao reunir vozes femininas de diferentes origens, ele constrói um mosaico de protagonismos que desafiam a linearidade da história oficial. Ana Maria Tourinho, como coordenadora do Grupo de Estudos Literários, imprime à coletânea uma curadoria sensível e comprometida com a diversidade. Seu capítulo sobre Clara Camarão é exemplar nesse sentido: não apenas pela escolha da personagem, mas pela forma como a narrativa é construída, com respeito às complexidades culturais e históricas envolvidas.

O lançamento no Rio de Janeiro, marcado para o dia 18 de novembro, será mais do que uma celebração editorial. Será um rito de passagem, onde a palavra escrita se transforma em ponte entre o passado e o presente. A entrega de homenagens a autoridades e parceiros reforça o caráter coletivo do projeto, que não se limita ao âmbito literário, mas se estende ao campo da ação cultural. Trata-se de um evento fechado, com reserva prévia, destinado a membros oficiais, parceiros e seus acompanhantes, um espaço de reconhecimento mútuo, onde o legado das mulheres extraordinárias é celebrado com a dignidade que lhes foi negada por séculos. 

Ao escrever sobre Clara Camarão, Ana Maria Tourinho não apenas dá voz a uma mulher silenciada, mas também convoca o leitor a refletir sobre os mecanismos de apagamento histórico. A ausência de registros sobre a vida de Clara após a morte de seu marido, Filipe Camarão, é sintomática. Ela revela o quanto a história oficial depende de documentos que, muitas vezes, ignoram os sujeitos subalternizados. Tourinho, ao contrário, aposta na reconstrução simbólica, na força da narrativa como instrumento de justiça. 

O mapa de Joan Blaeu, de 1665, citado pela autora, é uma prova visual de que as mulheres acompanhavam as tropas. Essa representação, ainda que rara, confirma que a presença feminina nas guerras coloniais não era exceção, mas parte de uma prática incorporada pelas milícias. Clara Camarão, portanto, não foi uma anomalia, mas expressão de uma tradição que a historiografia teimou em ocultar. Ao trazer essa imagem à tona, Tourinho amplia o campo de visão do leitor, convidando-o a enxergar além dos limites impostos pelos arquivos coloniais.

O ensaio de Ana Maria Tourinho é, em última instância, um manifesto. Um manifesto pela memória, pela justiça histórica, e pela valorização das vozes femininas que moldaram o Brasil. Clara Camarão, com sua coragem e liderança, é símbolo de uma luta que transcende o tempo. Sua história, agora resgatada pela palavra escrita, ecoa como um grito ancestral que atravessa os séculos. E é esse grito que o projeto “Mulheres Extraordinárias” transforma em livro, em evento, em celebração. 

Ao final, resta ao leitor a certeza de que a escrita é uma forma de resistência. E que, ao escrever sobre Clara Camarão, Ana Maria Tourinho não apenas honra uma mulher extraordinária, mas também reafirma o compromisso da Rede Sem Fronteiras com a construção de uma memória plural, inclusiva e profundamente humana. 

© Alberto Araújo

Focus Portal Cultural






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