PALAVRAS DE AMOR
Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.
Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que a palavra ou discurso poderia
Dizer amor na língua da semente?
- José Saramago, em "Provavelmente alegria".
Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
PEQUENO COSMOS
Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.
Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.
Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.
Talvez, enfim, o aço apure e faça
Do espelho em que me veja e redefina.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed.,
Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
PROCESSO
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed.,
Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
Galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante premio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. A 24 de Agosto de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada e a 3 de Dezembro de 1998 foi elevado a Grande-Colar da mesma Ordem, uma honra geralmente reservada apenas a Chefes de Estado. A título póstumo, em 2021, no âmbito da abertura oficial das comemorações do centenário do seu nascimento, foi condecorado com o grau de Grande-Colar da Ordem de Camões por "serviços únicos prestados à cultura e à língua portuguesas", o primeiro membro titular desta ordem honorífica recém-instituída.
O seu livro Ensaio sobre a Cegueira foi adaptado para o
cinema e lançado em 2008, produzido no Japão, Brasil, Uruguai e Canadá,
dirigido por Fernando Meirelles (realizador de O Fiel Jardineiro (filme) e
Cidade de Deus). Em 2010 o realizador português António Ferreira adapta um
conto retirado do livro Objeto Quase, conto esse que viria dar nome ao filme
Embargo, uma produção portuguesa em coprodução com o Brasil e Espanha. Também
foi adaptado para o cinema o livro O Homem Duplicado, no filme de 2014 dirigido
por Denis Villeneuve e estrelado por Jake Gyllenhaal.
O Memorial do Convento foi adaptado num ópera de Azio Corghi, Blimunda, criada na Scala de Milão em 1990.
JOSE SARAMAGO poeta, escritor, jornalista e dramaturgo,
nasceu em 16 de Novembro de 1922, em Azinhaga/Portugal - faleceu em 18 de Junho
de 2010, em Lanzarote, Ilhas Canárias/Espanha. Nobel de Literatura 1998.
Palavras do escritor: Nasci numa família de camponeses sem
terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na
margem direita do rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus
pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido
também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria
iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai
era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta
herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência,
serviam como alimento na cozinha dos pobres). Só aos sete anos, quando tive de
apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a
saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago… Não foi este, porém,
o único problema de identidade com que fui fadado no berço. Embora tivesse
vindo ao mundo no dia 16 de Novembro de 1922, os meus documentos oficiais
referem que nasci dois dias depois, a 18: foi graças a esta pequena fraude que
a família escapou ao pagamento da multa por falta de declaração do nascimento
no prazo legal.
Talvez por ter participado na Grande Guerra, em França, como
soldado de artilharia, e conhecido outros ambientes, diferentes do viver da
aldeia, meu pai decidiu, em 1924, deixar o trabalho do campo e trasladar-se com
a família para Lisboa, onde começou a exercer a profissão de polícia de
segurança pública, para a qual não se exigiam mais “habilitações literárias”
(expressão comum então…) que ler, escrever e contar. Poucos meses depois de nos
termos instalado na capital, morreria meu irmão Francisco, que era dois anos
mais velho do que eu. Embora as condições em que vivíamos tivessem melhorado um
pouco com a mudança, nunca viríamos a conhecer verdadeiro desafogo económico.
Já eu tinha 13 ou 14 anos quando passámos, enfim, a viver numa casa
(pequeníssima) só para nós: até aí sempre tínhamos habitado em partes de casa,
com outras famílias. Durante todo este tempo, e até à maioridade, foram muitos,
e frequentemente prolongados, os períodos em que vivi na aldeia com os meus
avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha.
Fui bom aluno na escola primária: na segunda classe já
escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em
um só ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois anos, com notas
excelentes no primeiro, bastante menos boas no segundo, mas estimado por
colegas e professores, ao ponto de ser eleito (tinha então 12 anos…) tesoureiro
da associação académica… Entretanto, meus pais haviam chegado à conclusão de
que, por falta de meios, não poderiam continuar a manter-me no liceu. A única
alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino
profissional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi o ofício de
serralheiro mecânico. O mais surpreendente era que o plano de estudos da
escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais
técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura. Como não
tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro
emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares
de Português, pelo seu carácter “antológico”, que me abriram as portas para a
fruição literária: ainda hoje posso recitar poesias aprendidas naquela época
distante. Terminado o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como
serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis. Também por essas
alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento,
uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas
guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela
leitura se desenvolveu e apurou.
Quando casei, em 1944, já tinha mudado de actividade, passara
a trabalhar num organismo de Segurança Social como empregado administrativo.
Minha mulher, Ilda Reis, então dactilógrafa nos Caminhos de Ferro, viria a ser,
muitos anos mais tarde, um dos mais importantes gravadores portugueses.
Faleceria em 1998. Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante,
publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por
conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escrevi
ainda outro romance, Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e principiei um
outro, que não passou das primeiras páginas: chamar-se-ia O Mel e o Fel ou
talvez Luís, filho de Tadeu… A questão ficou resolvida quando abandonei o
projecto: começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que
valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas
Possíveis , estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido
pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.
Por motivos políticos fiquei desempregado em 1949, mas,
graças à boa vontade de um meu antigo professor do tempo da escola técnica,
pude encontrar ocupação na empresa metalúrgia de que ele era administrador. No
final dos anos 50 passei a trabalhar numa editora, Estúdios Cor, como
responsável pela produção, regressando assim, mas não como autor, ao mundo das
letras que tinha deixado anos antes. Essa nova actividade saramago_antiga
permitiu-me conhecer e criar relações de amizade com alguns dos mais
importantes escritores portugueses de então. Para melhorar o orçamento
familiar, mas também por gosto, comecei, a partir de 1955, a dedicar uma parte
do tempo livre a trabalhos de tradução, actividade que se prolongaria até 1981:
Colette, Pär Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, André Bonnard, Tolstoi,
Baudelaire, Étienne Balibar, Nikos Poulantzas, Henri Focillon, Jacques Roumain,
Hegel, Raymond Bayer foram alguns dos autores que traduzi. Outra ocupação
paralela, entre Maio de 1967 e Novembro de 1968, foi a de crítico literário.
Entretanto, em 1966, publicara Os Poemas Possíveis, uma colectânea poética que
marcou o meu regresso à literatura. A esse livro seguiu-se, em 1970, outra
colectânea de poemas, Provavelmente Alegria, e logo, em 1971 e 1973
respectivamente, sob os títulos Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante
, duas recolhas de crónicas publicadas na imprensa, que a crítica tem
considerado essenciais à completa compreensão do meu trabalho posterior.
Tendo-me divorciado em 1970, iniciei uma relação de convivência, que duraria
até 1986, com a escritora portuguesa Isabel da Nóbrega.
Deixei a editora no final de 1971, trabalhei durante os dois
anos seguintes no vespertino Diário de Lisboa como coordenador de um suplemento
cultural e como editorialista. Publicados em 1974 sob o título As Opiniões que
o DL teve, esses textos representam uma “leitura” bastante precisa dos últimos
tempos da ditadura que viria a ser derrubada em Abril daquele ano. Em Abril de
1975 passei a exercer as funções de director-adjunto do matutino Diário de
Notícias, cargo que desempenhei até Novembro desse ano e de que fui demitido na
sequência das mudanças ocasionadas pelo golpe político-militar de 25 de daquele
mês, que travou o processo revolucionário. Dois livros assinalam esta época: O
Ano de 1993, um poema longo publicado em 1975, que alguns críticos consideram
já anunciador das obras de ficção que dois anos depois se iniciariam com o
romance Manual de Pintura e Caligrafia, e, sob o título Os Apontamentos , os
artigos de teor político que publiquei no jornal de que havia sido director.
Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstâncias da
situação política que então se vivia, sem a menor possibilidade de o encontrar,
tomei a decisão de me dedicar inteiramente à literatura: já era hora de saber o
que poderia realmente valer como escritor. No princípio de 1976 instalei-me por
algumas semanas em Lavre, uma povoação rural da província do Alentejo. Foi esse
período de estudo, observação e registo de informações que veio a dar origem,
em 1980, ao romance Levantado do Chão, em que nasce o modo de narrar que
caracteriza a minha ficção novelesca. Entretanto, em 1978, havia publicado uma
colectânea de contos, Objecto Quase, em 1979 a peça de teatro A Noite, a que se
seguiu, poucos meses antes da publicação de Levantado do Chão, nova obra
teatral, Que Farei com este Livro?. Com excepção de uma outra peça de teatro,
intitulada A Segunda Vida de Francisco de Assis e publicada em 1987, a década
de 80 foi inteiramente dedicada ao romance: Memorial do Convento, 1982, O Ano
da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de
Lisboa, 1989. Em 1986 conheci a jornalista espanhola Pilar del Río. Casámo-nos
em 1988.
Em consequência da censura exercida pelo Governo português
sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), vetando a sua
apresentação ao Prémio Literário Europeu sob pretexto de que o livro era
ofensivo para os católicos, transferimos, minha mulher e eu, em Fevereiro de
1993, a nossa residência para a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias.
No princípio desse ano publiquei a peça In Nomine Dei, ainda escrita em Lisboa,
de que seria extraído o libreto da ópera Divara, com música do compositor
italiano Azio Corghi, estreada em Münster (Alemanha), em 1993. Não foi esta a
minha primeira colaboração com Corghi: também é dele a música da ópera
Blimunda, sobre o romance Memorial do Convento, estreada em Milão (Itália), em
1990. Em 1993 iniciei a escrita de um diário, Cadernos de Lanzarote, de que
estão publicados cinco volumes. Em 1995 publiquei o romance Ensaio sobre a
Cegueira e em 1997 Todos os Nomes e O Conto da Ilha Desconhecida. Em 1995
foi-me atribuído o Prémio Camões, e em 1998 o Prémio Nobel de Literatura.
Em consequência da atribuição do Prémio Nobel a minha
actividade pública viu-se incrementada. Viajei pelos cinco continentes,
oferecendo conferências, recebendo graus académicos, participando em reuniões e
congressos, tanto de carácter literário como social e político, mas, sobretudo,
participei em acções reivindicativas da dignificação dos seres humanos e do
cumprimento da Declaração dos Direitos Humanos pela consecução de uma sociedade
mais justa, onde a pessoa seja prioridade absoluta, e não o comércio ou as
lutas por um poder hegemónico, sempre destrutivas.
Creio ter trabalhado bastante durante estes últimos anos.
Desde 1998, publiquei Folhas Políticas (1976-1998) (1999), A Caverna (2000), A
Maior Flor do Mundo (2001), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez
(2004), Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005), As Intermitências da
Morte (2005) e As Pequenas Memórias (2006). Agora, neste Outono de 2008,
aparecerá um novo livro: A Viagem do Elefante, um conto, uma narrativa, uma
fábula.
No ano de 2007 decidiu criar-se em Lisboa uma Fundação com o
meu nome, a qual assume, entre os seus objectivos principais, a defesa e a
divulgação da literatura contemporânea, a defesa e a exigência de cumprimento
da Carta dos Direitos Humanos, além da atenção que devemos, como cidadãos
responsáveis, ao cuidado do meio ambiente. Em Julho de 2008 foi assinado um
protocolo de cedência da Casa dos Bicos, em Lisboa, para sede da Fundação José
Saramago, onde esta continuará a intensificar e consolidar os objectivos a que se
propôs na sua Declaração de Princípios, abrindo portas a projectos vivos de
agitação cultural e propostas transformadoras da sociedade.
Nota: Depois de A Viagem do Elefante, José Saramago escreveu
Caim e O Caderno I e O Caderno II, livros que não chegou a acrescentar à sua
Autobiografia.
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Fonte: Fundação José Saramago/Autobiografia de José Saramago.
Disponível no (acessado em 2.4.2015). link.
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