quinta-feira, 1 de maio de 2025

EU-COISA – ALBERTO ARAÚJO PARAFRASEANDO O POEMA “EU ETIQUETA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Meu corpo veste marcas, gritos mudos de produtos que não me definem, que nunca sequer toquei. Calças, blusas, meias, tênis - um desfile ambulante de logotipos, ordens silenciosas de consumo. Sou um outdoor humano, preso às etiquetas que visto. 

E sinto um prazer amargo em ser assim, "estar na moda", mesmo que isso signifique negar quem eu realmente sou. Troco minha identidade única por uma coleção de marcas, abdicando da minha individualidade pensante, sensível e solidária.

Agora sou anúncio, em qualquer língua, exibindo com orgulho essa etiqueta global. Pago para anunciar, para me vender como um produto nos mais diversos cenários. Meu corpo desiste de ser a expressão de uma essência viva e independente. 

Onde perdi meu gosto pessoal, minhas escolhas, minhas idiossincrasias que se refletiam em cada detalhe do meu ser? Hoje sou fabricado em série, um objeto pulsante retirado da vitrine, um signo de outros objetos tarifados. 

Por ostentar essa não-identidade industrial, peço que meu nome seja mudado. "Homem" já não me serve. Meu novo nome é "coisa". Eu sou a coisa, coisamente.




EU ETIQUETA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome… estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. 

Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. 

Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou – vê lá – anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. 

Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. 

Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente. 

ANÁLISE DO POEMA "EU ETIQUETA" DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 

O poema "Eu Etiqueta" de Carlos Drummond de Andrade é uma crítica mordaz e profundamente melancólica à sociedade de consumo e à perda da individualidade no mundo moderno. Através de uma linguagem direta e carregada de ironia, o eu lírico se apresenta como um "homem-anúncio itinerante", escravo das marcas que veste e que, paradoxalmente, definem sua suposta identidade. 

TÍTULO: "EU ETIQUETA"

O título já prenuncia a temática central do poema. O pronome pessoal "Eu", que deveria remeter à individualidade e à subjetividade, é imediatamente associado à palavra "Etiqueta", um objeto impessoal que designa um produto, uma marca. Essa justaposição inicial revela a tensão fundamental da obra: a anulação do ser em prol do ter e do aparentar. 

PRIMEIRA ESTROFE: A COISIFICAÇÃO DO CORPO 

A primeira estrofe estabelece a imagem chocante do eu lírico como um suporte para marcas. As roupas que veste não representam suas escolhas ou preferências, mas sim logotipos de produtos que ele sequer consome ou aprecia. A repetição da estrutura "Meu [substantivo] traz [marca/produto]" enfatiza a invasão da identidade pessoal pelo universo do consumo. As marcas são descritas como "letras falantes", "gritos visuais", "ordens de uso", que transformam o corpo em um veículo de propaganda, um "homem-anúncio itinerante". A expressão "escravo da matéria anunciada" explicita a perda da autonomia e a submissão ao sistema de consumo. 

SEGUNDA ESTROFE: A DOCE ILUSÃO DA MODA E A PERDA DA IDENTIDADE 

A segunda estrofe revela a ambiguidade do eu lírico em relação a essa condição. Há um reconhecimento de que "estar na moda" é "doce", mesmo que essa doçura custe a negação da própria identidade. A troca do "ser eu que antes era" por "mil" identidades representadas pelas marcas demonstra a fragmentação do sujeito e a sua adesão à lógica do mercado. A nostalgia do "mim-mesmo", do ser "pensante, sentinte e solidário", contrasta com a superficialidade da identidade construída pelas etiquetas. 

TERCEIRA ESTROFE: A ANULAÇÃO VOLUNTÁRIA E A IRONIA CRUEL

A terceira estrofe aprofunda a crítica através de uma ironia ainda mais contundente. O eu lírico se "compraz" e tira "glória" de sua própria anulação. Ele não é um anúncio contratado, mas paga para sê-lo, para exibir essa "etiqueta global". A imagem do corpo que "desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente" é poderosa e ilustra a renúncia à autenticidade em favor da aceitação social e da cultura do consumo. 

QUARTA ESTROFE: A PERDA DA ESCOLHA E DA ESTÉTICA PESSOAL 

Nesta estrofe, o eu lírico lamenta a perda de suas "idiossincrasias tão pessoais", que antes se manifestavam em seu rosto, gestos e até mesmo nas roupas. A metáfora de ser "costurado", "tecido", "gravado de forma universal" sugere a padronização imposta pela sociedade de consumo, que anula a individualidade e a estética pessoal. A comparação com um objeto retirado da "vitrina" e recolocado reforça a ideia de que o indivíduo se tornou uma mercadoria, um "signo de outros objetos estáticos, tarifados". 

QUINTA ESTROFE: A REIVINDICAÇÃO DA COISIFICAÇÃO 

A estrofe final é um golpe seco e desesperançoso. Diante da sua transformação em "artigo industrial", o eu lírico abdica da sua humanidade e pede para ser chamado de "coisa". A repetição de "Eu sou a coisa, coisamente" enfatiza a completa desumanização e a aceitação resignada de sua condição de objeto de consumo. 

LINGUAGEM E ESTILO: 

Drummond utiliza uma linguagem coloquial e direta, o que torna a crítica ainda mais acessível e impactante. A repetição de palavras e estruturas sintáticas reforça a ideia de aprisionamento e padronização. A ironia permeia todo o poema, revelando o absurdo da situação descrita. As metáforas e comparações ("homem-anúncio itinerante", "escravo da matéria anunciada", "objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos") são eficazes para ilustrar a coisificação do ser humano. 

TEMAS CENTRAIS: 

O poema é uma contundente crítica à cultura do consumo que valoriza a posse de bens materiais e a exibição de marcas em detrimento da essência e da individualidade. A busca por aceitação e a pressão para se encaixar nos padrões da moda levam à perda da identidade autêntica e à construção de um "eu" superficial e dependente de marcas. 

O indivíduo é reduzido a um objeto, um mero suporte para anúncios, perdendo sua subjetividade e autonomia. O eu lírico se sente alienado de si mesmo e de sua própria humanidade, vivendo em função de um sistema que o explora e o define externamente. 

A ironia presente em todo o poema serve para intensificar a crítica e o tom pessimista em relação ao futuro da individualidade em uma sociedade cada vez mais massificada.

"Eu Etiqueta" é um poema atemporal e profundamente relevante, que ecoa as angústias e os questionamentos sobre o papel do indivíduo na sociedade contemporânea. A maestria de Drummond em utilizar uma linguagem simples e direta para abordar temas complexos e universais garante a força e a atualidade desta obra, que nos convida a refletir sobre as etiquetas que vestimos e a verdadeira identidade que reside em nós. 

© Alberto Araújo


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário